O fascínio pelo automóvel

Assisti à cena a seguir duas vezes, no restaurante onde almoço. Um senhor de meia-idade está sentado próximo à rua, a cadeira e a mesa quase na beirada do meio-fio. Ao seu lado, um imponente carro importado. Para ficar próximo ao seu carro, enquanto toma cerveja, o feliz proprietário desrespeita leis de trânsito. O restaurante fica em uma praça e o carro está parado na esquina da rua à direita. A traseira está tomando parte da rua que contorna a praça. O motorista que quiser virar à direita, deve fazer delicada manobra, desviando da traseira do carro estacionado de forma irregular. Além disso, o carro está parado exatamente em cima da faixa de pedestre, quem atravessa a rua deve se desviar do automóvel para subir no passeio. Para admirar orgulhoso o carro, enquanto toma sua cerveja, o feliz proprietário desrespeita leis básicas de trânsito e de convivência em sociedade. É como se dissesse: “que se danem os outros, preciso ficar ao lado do meu carro.” E o pior: quando acabar de beber, vai embora dirigindo. A vida dos outros também não importa muito.

É cena comum em portas de bares e restaurantes. O carro, esse estranho objeto de desejo, deve ficar à vista do seu dono. E para isso vale parar em locais proibidos, em cima dos passeios, na porta de garagem, em frente a pontos de ônibus. A publicidade reforça esses absurdos comportamentos ao trabalhar nas mais diversas campanhas conceitos de status, poder, glamour e ostentação. Antiga campanha dos Postos Ipiranga anunciava: “Para os apaixonados por carro, tudo.”

Sábado, romance de Ian McEwan, narra um dia na vida de Henry Perowne, importante neurocirurgião inglês. É sábado, logo pela manhã o médico pensa ver um acidente de avião. Ao sair de casa para jogar squash, o médico se depara com uma passeata contra a guerra do Iraque. Nesse trajeto, ele se rende ao fascínio de seu carro luxuoso, “um Mercedes cor prata S500, com estofamento de cor creme”.

Enquanto dirige, o médico pensa sobre o carro: “é apenas um componente sensual daquilo que ele considera como o seu quinhão super generoso dos bens do mundo.” Ele relembra de uma pescaria: “Numa tarde úmida, ao olhar sobre o ombro, enquanto lançava a linha, Henry viu seu carro a cem metros de distância. Estacionado em linha oblíqua, numa rampa da trilha, colhido por uma luz suave, contra o fundo formado por uma bétula, uma urze florida e o céu negro trovejante – a concretização de uma visão de publicitário – e sentiu, pela primeira vez, uma doce e inebriante alegria de posse.”

O escritor Ian McEwan desenvolve a seguir, essa visão de publicitário: “Como os fabricantes pretendiam e prometiam, o carro tornou-se uma parte dele.” Em outro trecho da narrativa, ao descrever as sensações do médico dirigindo seu carro, o escritor reproduz sarcasticamente clichês das propagandas de carros.

“Ele liga o rádio, que toca aplausos contínuos, respeitosos, enquanto ele manobra para fora da garagem, deixa o portão de aço baixar, às suas costas… . Desavergonhadamente, sempre desfruta a cidade de dentro do seu carro, onde o ar é filtrado e o som de alta-fidelidade confere um páthos aos detalhes mais modestos – um trio de cordas de Schubert engrandece a rua estreita por onde ele agora desliza.”

Esse momento publicitário do proprietário dentro de seu imponente automóvel termina com um acidente banal, quase insignificante, mas que vai desencadear uma série de acontecimentos inesperados no dia do médico. Ao sair do carro, ele vai se defrontar com a realidade das ruas, realidade que a maioria dos publicitários que anunciam automóveis parece não conhecer.

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