Pela segunda noite seguida, Iracema não consegue dormir. A frente fria chegara a Belo Horizonte na véspera. “O inverno nessa cidade não é mais confiável”, dizia seu marido, sempre que as noites se apresentavam serenas e no dia seguinte o sol castigava as paredes do prédio onde moravam. Mas não era o inverno que a incomodava. Do frio, do aconchego das roupas e do cobertor ela gostava. Era o vento.
O vento passava pelo 18º andar num uivo desenfreado. Um lamento sem fim, como o gemido de um batalhão atingido por morteiros, granadas. Ouviu a história de um amigo italiano de seu pai. Na primeira grande guerra, os homens saíam a campo às centenas, tentando conquistar alguns poucos metros de terreno. Os que restavam, voltavam exaustos para as trincheiras, deixando para trás companheiros. À noite, o vento trazia o gemido dos feridos abandonados. Os soldados se encolhiam nas trincheiras, as mãos nos ouvidos tentando interromper aquele sofrimento que entrava por todo o corpo.
Iracema rola na cama, anda pela casa, reza o terço. Às vezes, uma forte rajada de vento estremece as janelas como se fosse arrancar vidros, persianas, como se fosse arrancar ela mesma daquele tormento solitário. Quando criança, na pequena cidade do interior de Minas, onde o frio chegava com raiva, impiedoso, a mãe reunia Iracema e os irmãos na cozinha. Eles se apertavam próximos ao fogão à lenha, a mãe sempre avivando o fogo, silenciosa, sem lamentar a escassez de roupas e cobertores para os filhos.
Sentavam-se todos no chão, a palha do milho espalhada pela cozinha, forrando os colchões. Dormiam, acordavam, dormiam de novo, a mãe ali, de vigília. Nada dizia, não sabia ler nem escrever, o rádio estava sempre com o marido, ligado em jogos e notícias do Botafogo do Rio. Seu caminho diário era da casa para a igreja. Era uma mulher sem histórias para contar. De vez em quando, cantarolava uma canção, as crianças sem entender a letra, apenas um murmúrio acompanhado pelo vento lá fora. Quando o frio castigava tanto que o fogo mal dava conta, a mãe juntava os filhos em volta, apertando-os com seus longos braços.
Iracema apertou os braços sobre os seios, ouvindo o vento bater forte na janela do quarto, revoltado com a impossibilidade de entrar e testar de vez a resistência daquela velha mulher que enfrentou tempestades, mas em noites de vento se encolhe no canto do quarto. Ela pensa na ausência do marido, enterrado cinco anos atrás em uma tarde de verão. Na filha, morando no Canadá, no filho cada dia mais distante, com mil afazeres e família para cuidar. Em noites assim, o filho chegava de mansinho, parava na porta do quarto, o travesseiro nas mãos, esperando autorização. Bastava um sorriso, um aceno de cabeça e ele se enfiava debaixo do cobertor. Sentia o calor do corpo do pai, os braços da mãe enlaçando-o todo.
Agora Iracema sente o frio da cama vazia. Adormece, o vento amainando, os primeiros raios de sol refletindo na vidraça. Um sono bom, reconfortante, sonhos se confundindo com lembranças. Acorda às oito da manhã, descansada. Antes de abrir os olhos, um último vestígio do sonho: enxerga a mãe ao lado do fogão à lenha, o bule de café deixando escapar um pequeno vapor.
Levanta-se devagar como em todas as manhãs. Ouve um leve barulho de vento, um pequeno batido no vidro. Abre completamente a janela do quarto e deixa o vento bater forte em seu rosto, olhos fechados.