Humphrey

Humphrey Bogart. Você se parecia com Humphrey Bogart naquela noite de chuva. – Elza bateu com força a pequena pá de jardim na terra seca, tentando cavar um buraco, pequeno que fosse.

– Lembra? Sapatos pretos, uma das mãos no bolso do sobretudo cinza, daqueles que a gente só vê no cinema, a outra segurando o cigarro nos lábios, um charme!, chapéu cinza.  A aba do chapéu, levemente inclinada, fazia sombra no seu rosto. – as mãos doíam, ela pegou o regador e molhou um pouco mais a terra, com cuidado, jogando água nos rasgos que já fizera, ajudando com a pá, tentando penetrar no solo resistente.

– Você se escondia da chuva, debaixo da marquise, encostado na porta lateral da igreja. A luz da rua fraquinha, piscando, o tempo estava tão ruim. Em noites de chuva, a praça ficava vazia, os pais não confiavam, mandavam chamar, pra casa!, a cidade deserta, nem as estrelas apareciam. – deixou a pá de lado e tirou a terra do buraco com as mãos.

– Como é mesmo o nome do filme? Isso. A Condessa descalça. Muitos anos depois, vimos o filme no Cine Brasil. Acho que é uma das primeiras cenas, Humphrey Bogart na chuva, assistindo a um enterro. Quando a gente ia ao cinema você nunca olhava para mim, olhava fascinado o tempo todo para a tela, às vezes me dava um ciúme. Mas eu fiquei olhando para você e descobri que na noite em que te vi pela primeira vez, debaixo da marquise da igreja, você se parecia com aquele ator de chapéu e sobretudo na chuva.

– Humphrey Bogart, trabalhou em Casablanca, O tesouro de Sierra Madre, você me disse entusiasmado quando perguntei o nome daquele homem charmoso. – Elza colocou a muda, ainda com o plástico preto em volta, no pequeno buraco.

– Nome complicado. Falta pouco agora.

Ela retirou a muda, molhou mais um pouco a terra, a água formou uma pequena poça, demorando a  infiltrar. Voltou a escavar lentamente, a ponta da pá fazendo pequenos rasgos, as mãos doendo, princípios de calos latejando na confluência dos dedos.

Retirou o plástico preto da muda, espalhou um pouco de adubo no buraco, em seguida uma pequena medida de esterco. Colocou cuidadosamente a planta no lugar, misturou terra preta, esterco e húmus em uma vasilha, espalhando a solução em volta da muda. As mãos ajudavam a terra fértil a tomar seu lugar, o buraco do terreno árido ganhando uma cor viva, a muda pronta para florescer. Nivelou a terra na superfície, por fim molhou com carinho o seu trabalho, a água infiltrando rápida, fácil.

Elza levantou-se, as mãos nas costas tentando parar a leve dor, pequenas pontadas, – nada de mais na minha idade. O sol já encostava na montanha, deixando o céu no tom amarelo de que tanto gostava. Era hora de sentar na varanda, aproveitar a última luz e contemplar suas plantas, suas flores, seu recanto agora solitário.

Abaixou-se novamente, roçou a palma da mão levemente nas minúsculas folhas de murta, como se formasse uma aura em volta de toda a planta. Duas lágrimas escorreram por seu rosto.

– Você se parecia com Humphrey Bogart, meu querido.

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