O pai segura firme a mão da filha caçula ao atravessar a rua. Anda rápido no calçamento de pedras, olha entre um sentido e outro preocupado com carros. Ele sequer olha para trás, pois desde cedo ensinara os filhos homens a se cuidarem sozinhos. Mesmo assim, meu irmão mais velho me prende pela gola da camisa, acelerando os passos ao notar minha distração no meio da rua.
O trânsito de Belo Horizonte, no início dos anos 70, não era de provocar receios. Adolescentes ao volante sem carteira conviviam com velhos motoristas. Antes dos 14 anos, meu irmão já dirigia o Gordini branco do pai, atravessando a cidade, geralmente à noite, quando guardas de trânsito preparavam os lençóis. Dirigia como experiente motorista, despreocupado, até que a família sentiu o temor da polícia bater à porta.
Nestes anos de farda no país, o menor sinal de polícia fazia tremer. Domingo à tarde, meu irmão saiu de carro e foi surpreendido poucos quarteirões depois por uma viatura. Apesar dos insistentes sinais da polícia, acelerou o carro, empreendendo uma fuga até a porta de nossa casa. Vizinhos saíram à rua, meninos correram em volta da viatura que parou atrás do Gordini, mulheres assustadas correram a gritar os maridos.
Meu irmão entrou correndo em casa e o pai, com a tranquilidade que irritava seus adversários mais ferrenhos na porrinha, saiu à rua e entabulou conversa à boca miúda com os dois policiais. Minutos depois, estavam todos sentados no sofá da sala. Na cozinha, a mãe andava de um lado para o outro, sem saber direito onde estava o bule de café.
Meia hora depois, os policiais trocavam apertos de mãos com o pai na porta de casa. Um deles, ante o olhar atento dos vizinhos, fez uma repreensão severa à qual o patriarca respondeu com promessa de nunca mais deixar o filho roubar seu carro.
O pai passava o tempo ensimesmado em suas tarefas diárias. O aperto de um parafuso nas velhas máquinas que tanto e tão bem consertava. Os olhos parados na TV em preto e branco, assistindo a desenhos dos estúdios Hanna Barbera. O remexo do garfo no prato de comida de um jeito calmo, como quem não tem mais nada a fazer.
A língua do pai se soltava depois de um ou dois copos de cerveja, quando, no bar, começava a discutir cinema com um amigo. Os dois passavam horas conversando sobre clássicos do cinema.
– Qual o melhor faroeste de todos os tempos?
– Rastros de ódio. – respondia de pronto o amigo.
– Prefiro Johnny Guitar. – retrucava o pai, bebericando a cerveja. – E a cena de Jane Russell deitada na grama… Quem é mesmo o diretor do filme?
– Howard Hawks.
– Não, é o outro Howard… Hughes.
Homem de hábitos, um deles, levar os filhos todo domingo às sessões matinais do Cine São Carlos, no início da Rua Padre Eustáquio. Ele deixa o carro na Rua Rio Casca e segue na frente com a filha caçula segura pela mão. Os filhos homens andam atrás, enfrentando pequenos desafios da vida como atravessar ruas. O caminho para minhas primeiras sessões de cinema.
Na porta do cinema, o pai segue até a pequena abertura na parede, protegida por grossas barras de ferro. Ingressos na mão, beija a face da filha, passa a mão nos meus cabelos, fita o primogênito, recomenda:
– Cuide de seus irmãos. E se comportem. Sala de cinema é um templo, quando a luz do projetor se acender, silêncio… . – à medida que a fila anda, conta pelo menos uma cena do desenho.
– Vocês vão ver uma das imagens mais impressionantes, nem parece filme infantil. Os abutres voando pelo desfiladeiro… bem, não posso contar o final.
– Ninguém consegue segurar as lágrimas quando Bambi vê a mãe… deixa pra lá.
– Você já viu um elefante bêbado? – solta uma risada leve, quase sem som.
O pai nunca entrava conosco. Voltava para nos buscar perto do horário de almoço.
Naquele domingo, como de costume, ele espera os filhos passarem pela roleta. Quando entramos no saguão do cinema, o irmão comenta.
– Uê! Ele não contou nada do filme.
Assim que sentia os filhos em segurança dentro do cinema, o pai dava meia volta em direção à Rua Rio Casca. Logo depois, a gente corria para dentro do cinema, já participando da algazarra que tomava conta da sala. Naquele domingo, o pai continua parado na porta do cinema. As mãos, como de costume, enfiadas no bolso. Até que, sem mais nem menos, ele grita, desviando o olhar para o cartaz afixado na parede lateral.
– Ei, ele pode voar.