Sol na pele

O sol bateu no meu rosto naquele amanhecer de verão. Sempre que sinto este calor dos raios na pele, lembro-me dos conselhos da dermatologista, soando em meus ouvidos como determinação: “evite sol na pele, principalmente nos braços.” Há tempos sofro da doença de pele chamada de poroceratose actínica, que pode ser traduzida levianamente como pequenas manchas espalhadas pelos braços, provocada, segundo médicos, pela exposição ao sol.

Bem, eram os anos setenta e jovens estavam mais interessados em bronzear a pele do que cuidar da saúde. Ninguém pensava em protetor solar, ao contrário, bolsas e mochilas carregavam bronzeadores e outros experimentos como óleo queimado.

Eu não dormi no ônibus. A viagem de Belo Horizonte a Marataízes transcorreu aos solavancos provocados por estradas em condições precárias, assim como o próprio ônibus da Viação São Geraldo. O amigo dormia ao lado, a cabeça resvalando para o meu ombro vez ou outra, até que um buraco maior o fazia acordar sobressaltado. Segundos depois, a cabeça pendia novamente.

Chegamos em Marataízes por volta de seis horas da manhã. Caminhamos até a casa, distante pouco mais de dez minutos da rodoviária, quer dizer, uma rua que servia como parada de ônibus. O pai estava acordado, à porta, esperando. A mãe, preparando o café cheiroso. Pão quente, um pedaço de bolo, nada caseiro, coisas da padaria mesmo, mas que remetiam àquelas manhãs de férias em família. O pai e a mãe já estavam na praia há uma semana. Eu começara a trabalhar naquele ano, estava aproveitando o feriado, três dias corridos, para correr atrás de um dos prazeres que me acompanha desde criança e, creio, se estenderá até o fim: o mar.

Enquanto tomava café, meus pensamentos já estavam na areia, na brisa no rosto, no sol,  nos mergulhos cortando as ondas. Vocês vão dormir um pouco? perguntou a mãe. Não. Vamos para a praia, onde chegamos poucos minutos depois.

Era novembro. Não um novembro úmido e chuvoso na alma de Ismael. Um novembro ensolarado. Sentei-me na areia, os olhos presos no azul, os ouvidos entregues ao bater das ondas, as mãos brincando com a areia. Deitei-me, como fazia quando criança, olhos fechados, vagando entre devaneios poéticos, imagens à tôa da namorada que deixei em Belo Horizonte, não me recordo bem, memórias da adolescência são apenas imagens que se traduzem em textos para o escritor.

Acordei quarenta minutos depois, sentindo ardência pelo corpo. Estava sozinho, o amigo deve ter saído para caminhar. As sombrinhas de praia se espalhavam pela areia, famílias chegavam com suas caixas de isopor, brinquedos de plástico para as crianças e demais quinquilharias que fazem do dia na praia verdadeiro acampamento. Meu corpo estava em brasa. Mal consegui me levantar e caminhar até a casa. A mãe esteve prestes a desmaiar ao ver um corpo irreconhecível, fumegante, entrar pela porta. Providenciou um banho frio, ordenou ao pai corrida à farmácia e, minutos depois, me lambuzava de cremes, se assustando com pequenos gemidos à medida que deslizava as mãos pelo meu corpo. Passei o dia buscando posições em cadeiras, impossível deitar. À noite, bolhas tomaram as costas. Quando eu chegava ao espelho, imaginava a pele despregando de meu rosto, quase filme de terror.

Passei os três dias do feriado às voltas com estes tormentos da pele, rezando para que, como camaleão, eu pudesse retomar a cor original. Isso aconteceu meses depois, à medida que as bolhas cederam lugar a manchas espalhadas e a pele queimada foi se desgrudando lentamente, me transformando em um ser de tonalidades indistintas.

Eram os anos setenta. Deixaram memórias de noites passadas em bancos desconfortáveis de ônibus, pai e mãe radiantes ao ver o filho sentado à mesa do café da manhã, o cheiro do mar, o sol da manhãzinha revigorando, mãos materna lambuzadas de creme, deslizando cuidadosamente pelas minhas costas. Marcas que ficaram, assim com esta poroceratose actínica.

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