Lola – A flor proibida

O filme é dedicado a Max Ophuls, autor do clássico Lola Montés, claramente a inspiração para o primeiro filme do francês Jacques Demy. Roland Cassard é um jovem desencantado com seus dias, frustrado com o trabalho. Quando chega atrasado para um dia de trabalho é repreendido pelo chefe e declara, citando a frase de um romance que está lendo: “Não há dignidade possível, não existe vida real para um homem que trabalha doze horas por dia sem saber por que ele trabalha.” É despedido e, em suas andanças pela cidade, reencontra Cecile, paixão de infância, que agora trabalha como dançarina com o nome de Lola. 

A narrativa é feita destes encontros, paixões do passado se contrapondo a outras que aflora – uma mulher de meia-idade, mãe de uma garota também chamada Cécile, se apaixona por Roland, enquanto Cecile se apaixona por um jovem marinheiro americano que por sua vez é amante de Lola. Tudo enquadrado pela câmera sensível, bela, que explora em cada frame a deliciosa vida cotidiana quando entregue aos flertes, aos amores possíveis ou não. 

Lola – A flor proibida (Lola, França, 1961), de Jacques Demy. Com Anouk Aimée (Lola), Marc Michel (Roland Cassard), Jacques Harden (Michel), Alan Scott (Frankie), Elina Labourdette (Madame Desnoyers). 

Artesão pickpocket

No final do filme, uma frase revela: “Todo este filme foi interpretado por atores não profissionais.” A influência neorrealista é expressa não só nesta declaração, mas em toda a narrativa. Xiao Wu ganha a vida batendo carteiras nas ruas da cidade. Se considera quase um artista em sua profissão e reluta em abandonar a atividade, a exemplo de alguns de seus antigos companheiros. Xiao fica sabendo que um destes amigos, com quem compartilhara grandes momentos, está de casamento marcado. O batedor de carteira não é convidado para o casamento e passa por um grande conflito. Ele começa a frequentar um bordel e se apaixona por uma prostituta, mas tem dificuldades em se entregar ao relacionamento. 

A câmera segue o protagonista pelas ruas da cidade como uma testemunha das ações e das pequenas transformações dos personagens. Em determinado momento, Xiao, depois de inúmeras recusas, decide cantar com a prostituta em um jogo de karaokê. Entrega-se à canção com emoção reveladora. São as nuances deste cinema realista e ao mesmo tempo intimista que marca as obras de Jia Zhangke. A conjunção destas duas características é de uma tristeza perturbadora na sequência final, quando Xiao é humilhado diante de dezenas de pessoas na rua.  

Artesão pickpocket (I Xiao Wu, China, 1997), de Jia Zhangke. Com Wang Hong Wei, Hao Hong Jian, Zuo Bai Tao, Ma Jin Rei. 

Ankur

Surya é um jovem rico e idealista que se diverte com os amigos nas ruas da cidade. Ele quer estudar artes, mas é confrontado pelo pai, que não admite esta escolha e o envia para tomar conta das propriedades rurais da família no interior da Índia. Surya, seguindo as tradições indianas, já está casado com uma jovem de sua casta, mas, durante a estada na fazenda, seduz e possui a jovem Laxmi, empregada da casa. 

A transformação de Surya é aterradora, passo a passo se revela um jovem intransigente e cruel com os empregados e com a própria família. A sequência final, entre açoites, desespero e olhares passivos, demonstra como tradições seculares foram criadas para preservar o domínio de uma classe abastada, cruel, às vezes sanguinária. 

Ankur (Índia, 1974), de Shyam Benegal. Com Shabana Azmi (Laxmi), Anant Nag (Surya), Mirza Qadirali Bai (Pai de Surya). 

Amor à tarde

É o último filme da série “Seis Contos Morais”. Fréderic vive um casamento feliz com Hélène, que está grávida do segundo filho. Moram na periferia de Paris, mas narração em off do protagonista revela sua predileção pelo centro da cidade, onde trabalha em meio à confusão de pessoas e trânsito. Um dia, Chloe, antiga amizade de Fréderic, entra em seu escritório. Começa, entre os dois, um jogo de flertes, encontros, insinuações sedutoras e erotismo declarado. 

O filme aborda o cotidiano de pessoas da classe média parisiense que vivem entre os afazeres domésticos, o trabalho, os estudos (segundo Chloe, Fréderic é um burguês que finge amar a mulher enquanto seduz outras mulheres em suas andanças pela cidade). Preste atenção na divertida sequência na qual Fréderic, imaginando estar enfeitiçado por um medalhão, aborda diretamente várias mulheres na rua. Mas o destaque de Amor à tarde é a sedutora presença de Zouzou (Chloe) que provoca o espectador sem pudor cada vez que aparece em cena. 

Amor à tarde (L’Amour, L’Après, França, 1972), de Éric Rohmer. Com Zouzou (Chloe), Bernard Verley (Fréderic), Françoise Verley (Hélène), Daniel Ceccaldi (Gérard).

Coisas modernas

Quando escrevo, evito palavras desgastadas. Modernidade. Detesto a palavra, pode ser birra, mas reconheço, não consigo imaginar mais a vida sem essas coisas modernas. Tenho uma amiga que jura, “nunca vou ter celular”. Mas ela é viciada em mensagens eletrônicas. Um dia, ela me enviou o trecho final do conto Os Mortos, de James Joyce, o que me lembrou de tempos bons da literatura e do cinema.

Quando assisti a Os vivos e os mortos (The dead, 1987, EUA), de John Huston (1906-1987), adaptado do conto de James Joyce, saí do cinema com aquele sentimento incompreensível que nasce diante da verdadeira obra de arte. O trecho final do conto, interpretado pelo ator irlandês Donal McCann, “enquanto ele ouvia a neve cair suave através do universo, cair brandamente – como se lhes descesse a hora final – sobre todos os vivos e todos os mortos”, é o que se chama poesia no cinema. Harmonia perfeita de cinema e literatura. Passei a garimpar os filmes de John Huston. Coisa de cinéfilo, a gente faz uma relação de filmes e não sossega enquanto não assistir a todos.

John Huston foi boxeador, criador de cavalos, pintor, escritor. Para sorte nossa, se decidiu pelo cinema. Excêntrico, exigiu que as filmagens de Uma aventura na África (The African Queen, EUA, 1952) fossem realizadas em locações no continente africano. Queria caçar um elefante. Chegava a parar as filmagens por dias e saía à caça de seu elefante. Clint Eastwood contou esta história no filme Coração de caçador (White hunter, Black heart, EUA, 1990). John Huston levou uma vida apaixonada, entre bebidas, mulheres, viagens, filmes. No final da vida, doente e debilitado, dirigiu Os vivos e os mortos na cadeira de rodas e mostrou ao mundo o cinema que já não existia.

Tenho ido pouco ao cinema – meio por falta de tempo, meio por preguiça, muito por não ter o que ver. O cinema contemporâneo mostra a falta que fazem John Huston, Billy Wilder, Alfred Hitchcock, John Ford, Luchino Visconti, François Truffaut. Eles estão hoje naquelas prateleiras esquecidas que levam a etiqueta Clássicos. Imagino a sensação que meu pai, meu tio que era porteiro do Cine Jacques, sentiram vendo filmes como Rocco e seus irmãos (Rocco i suoi fratelli, Itália, 1960), de Luchino Visconti, naquela tela grande e mágica do cinema. Não tinham nada além do cinema naquela época. Creio que bastava.

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Feliz ano novo

A mãe fez o sinal da cruz assim que o carro passou pela ponte sobre o rio das Velhas. Voltou o rosto com olhar carinhoso para os filhos no banco de trás da perua Dodge, roçou de leve a mão do pai no volante. Era seu jeito de encarar com otimismo os sessenta quilômetros de estrada de terra que nos separavam do sopé da Serra do Cipó.

Cerca de três horas antes, o pai cumpriu seu ritual de arrumar cuidadosamente as bagagens no carro. No porta-malas traseiro, mochilas das crianças, a pesada mala da mãe, panelas, pratos e talheres, mesa de acampamento, banquinhos dobráveis, fogareiro de três bocas, dois pequenos botijões de gás – um para o fogo da comida, outro para o lampião. No bagageiro acoplado em cima do carro, a barraca de dois quartos, colchões, travesseiros e roupas de cama.

– Não esqueceu nada? – perguntou à mãe enquanto dava voltas com a corda de nylon, apertando a lona de plástico sobre as bagagens. Um dos meus desejos ainda é aprender a dar aquele nó de marinheiro no final, a corda rigidamente esticada, prensando a lona.

À medida que o Dodge vencia as lombadas da estrada, o barulho de panelas e talheres batendo se misturava às músicas de Nat King Cole, Elvis Presley e Frank Sinatra saídas da fita cassete gravada pelo pai. O sol forte da manhã castigava o interior do carro, os vidros abertos, a poeira começava a impregnar em cada um de nós.

– Mãe, meu estômago tá embrulhando.

– Falta pouco meu filho, já estamos chegando.

– Um humm… – insinuou o irmão mais velho, sorriso nos lábios, olhos presos no intenso movimento de final de ano da estrada. Carros abarrotados de bagagens no teto, pneus arriados pelo peso, passageiros se espremendo nos bancos. O pai cortou um fusquinha, a mãe reclamou da imprudência naquela estrada perigosa.

– Perigo nada, olha a reta. – disse o pai, voltando a se concentrar no volante, nas lombadas sem fim que faziam meu estômago dar voltas sobre ele mesmo.

– Não tome o pozinho que fica no fundo do copo. – alertou a mãe enquanto misturava o bicarbonato com limão. Fechei os olhos e tomei o líquido de um gole só. Ela entrou na barraca para acabar de arrumar os colchões, as mãos passando sobre os lençóis estendidos para tirar as dobras e deixar aquele suave toque de mãe na cama dos filhos.

A barraca tinha dois quartos separados que se prendiam na armação de tubos de alumínio. Uma lona cobria toda a extensão dos quartos, deixando um vão em frente a eles que servia como uma espécie de sala. Após o fecho que encerrava o interior, uma extensão retangular servia de varanda. O pai estava agachado do lado de fora, martelo na mão, batendo ainda mais nos piquetes, esticando as cordas que prendiam o teto de lona no chão.

– Tá vendo a cachoeira? Nesta época do ano costuma cair um toró no alto da serra, chuva forte, a enchente desce de repente, não dá nem tempo de correr. Por isso nunca podemos armar acampamento perto do rio. Aqui é seguro e não há vento que levante isto. – o pai tocou com os dedos a corda esticada.

Naquela noite, sentados na grama do lado de fora da barraca, o pai abriu uma garrafa de vinho, a mãe distribuiu refrigerante para os filhos. Uma garoa começou a incomodar, esfriar a noite quente de verão. As camisinhas presas nos bocais dos liquinhos iluminavam o acampamento. Perto das luzes, famílias e amigos reunidos, alguns rindo alto, outros silenciosos observavam o tempo, casais abraçados, crianças deitadas em pequenos colchões, um cachorro pequinês irritava com latidos agudos.

A garoa deu lugar a pesadas gotas de chuva. Recolhemos às pressas os banquinhos, o isopor com as bebidas, a garrafa de vinho. Um raio caiu no alto da serra seguido de um estrondo ensurdecedor. A chuva mudava de lado de uma hora para outra, o vento forte começou a balançar os tetos das barracas. A mãe olhava assustada para o alto da serra, estremecendo com os raios, se benzendo a cada trovão.

Entramos em um dos quartos da barraca. O vento balançava o teto, fortes rajadas de chuva batiam em cima, nos lados. A irmã caçula estava sentada no canto, os braços segurando as pernas dobradas, a cabeça pousada nos joelhos. A mãe puxou-a para junto de si.

Ouvi gritos do lado de fora, passos de gente correndo, mais gritos. Saí do quarto e abri o fecho da porta, o irmão também espiava. Solto, o teto da barraca em frente balançava ao vento. Três homens seguravam as cordas que ainda restavam presas no chão. Quando o vento diminuía, a lona descia sobre a barraca e logo a seguir uma forte rajada a levantava de novo. As mulheres no interior gritavam, uma delas não resistiu ao desespero, saiu correndo e entrou no carro, parado pouco à frente.

Ao lado, a lona de outra barraca rasgou-se ao meio. A água invadiu o interior, o casal tirava roupas de cama e mochilas, indo e voltando correndo do carro. De repente, todos os ventos se reuniram no alto da serra e desceram juntos pelo acampamento, foi assim que a mãe contou a história às amigas depois. O vento varreu quase tudo que encontrou pelo caminho. Tetos de barraca voaram, alguns bateram na copa das árvores e ficaram estendidos sobre os galhos, outros caíram no rio. Roupas de cama espalharam-se pela grama, panelas rolaram. Um estrondo alastrou-se pelo céu, ecoando em cada montanha que achou à sua frente.

A mãe gritou pelos filhos. Entramos assustados no quarto da barraca. Ela abriu os braços, nos aconchegando em seu peito, sua cabeça acima das nossas, olhos atentos a cada movimento, ouvidos presos nos trovões.

– Onde está seu pai? Onde está seu pai? – seus braços apertaram mais ainda os filhos.

Poucos segundos depois, o pai entrou. Seu rosto respingando água, roupas encharcadas. Ele correu os olhos por toda a barraca, passando as mãos pelo teto, às vezes ajoelhava-se em um canto mais difícil. Por fim, sentou-se do lado de fora dos quartos, pegou seu copo de vinho que permanecia intacto em cima da mesinha de acampamento.

– Dei uma olhada nos piquetes lá fora, estão todos bem presos, as cordas no lugar, olha só, a barraca nem se mexe. – disse olhando para o teto. Em seguida, levantou o copo de vinho no gesto característico, a mãe ainda agarrada aos filhos.

– Feliz ano novo.

Ulisses

Em 1954, Agnès Varda produziu e fotografou a famosa cena em uma praia coberta de pedregulhos no Sul da França. Ulisses é o nome do menino sentado, olhando a cabra morta. 

No curta, realizado na década de 80, a cineasta volta ao local da foto, conversa com os protagonistas, buscando as memórias daquele tempo, daquele registro. Através de imagens passadas e presentes, o curta é uma reflexão sobre a natureza de fotografar, sobre memórias perdidas, resgatadas, sobre pessoas simples que são, em determinados momentos, apenas um flash um suas vidas, eternizadas pela arte.  

Ulisses (Ulysse, França, 1983), de Agnès Varda. 

24 City

O filme é um misto de documentário e ficção. A narrativa acompanha personagens de três gerações, interpretados por atores profissionais, que trabalharam em uma fábrica de construção de peças para a aeronáutica. A fábrica, desativada e em ruínas, serve como elemento de transição entre os depoimentos que são prestados direto para a câmera, assim como nos documentários mais tradicionais. As histórias pessoais traduzem também as importantes transformações políticas e econômicas que acompanham a China. Em determinado momento, é apresentado a maquete de um empreendimento residencial de luxo que ocupará o espaço da antiga fábrica. 

Realidade e encenação se encontram em momentos emocionantes, a exemplo do encontro entre um funcionário e seu antigo mestre na fábrica, agora um ancião entregue às lembranças de seu trabalho. Outro ponto de destaque é a trilha sonora, recheada de canções pops a embalar a narrativa.

24 City (Er shi si cheng ji I, China, 2008), de Jia Zhangke. Com Joan Chen, Lu Liping, Zhao Tao, Chen Jianbin. 

Gotas de óleo

Um dia jogo óleo nos cabos desse elevador.

– Pensando na vida Seu Joaquim? – perguntou Dona Marta, depois de observar por alguns segundos o vizinho olhando para o teto do elevador.

Há quase quarenta anos morando naquele prédio, Joaquim tinha a impressão que cabos, roldanas, máquinas e portas daquele elevador nunca tinham visto lubrificação. Depois de acabar com a pequena fortuna que o avô lhe deixara, ele fora ganhar a vida consertando pequenas máquinas. Joaquim tinha prazer em esguichar óleo Singer nas junções, fazer a engrenagem funcionar lentamente até deixar de ouvir completamente o ruído de máquina contra máquina. Ele voltou os olhos para Dona Marta. Lembrou-se sem saudade de uma noite lá pelos anos cinqüenta. O marido viajando, os dois no mesmo elevador. A porta se abriu no andar onde ela morava. Marta ficou olhando para Joaquim, a porta voltou a se fechar e ela subiu para o apartamento dele.

– É a única coisa que a gente faz agora Dona Marta, pensar na vida  – respondeu Joaquim. O elevador parou no andar de Dona Marta. Ela saiu lentamente, sem mesmo se despedir.

Joaquim entrou no apartamento pensando na vergonhosa derrota daquela noite. Eu nunca deveria ter deixado o rei sem proteção. Rainhas foram feitas para isso, proteger os reis. Pensou em outros jogos, em noites no Cassino da Urca rodeado de fichas e dançarinas. Talvez fosse a sua sina, perder, perder e sair com uma garota pendurada em seu pescoço, cheirando a bebida, para uma noite qualquer em quarto de hotel.

Preciso me concentrar. Amanhã pego de jeito aquele velhaco do Valdir. Abriu a janela da sala. Ouviu irritado o ranger de janela velha. Armou o tabuleiro de xadrez na mesa para pensar. Amanhã pego o Valdir de jeito.

O silêncio do apartamento. Não consigo me concentrar. Música, música. Preciso de música. A voz de Frank Sinatra invadiu seus ouvidos. Há muitos e muitos anos, em que ano Joaquim? não me lembro mais, final de década de 30, sim, é isso, estava em Nova Iorque. Fui com amigos a um bar, final de noite, uma orquestra desconhecida cantando sabe-se Deus para quem. A plateia mais preocupada com o último uísque, homens e mulheres cheirando a álcool, fumo, extasiados da noite. No palco, um rapaz de uma magreza tímida e feia cantava. Alguém disse: É o Frank Sinatra. Esse menino vai longe.

Virou a capa do disco. “Para Joaquim, amor da minha vida. Da sua Eleonora”. A voz de Frank Sinatra tomou conta “And now, the end is near, and so I face, the final curtain / my friend, I’ll say it clear / I’ll state may case, of wich I’m certain / I’ve lived, a life that’s full / I’ve traveled each every highway / And more, much more than this / I did it my way.”

Quem é Eleonora? Não consigo me lembrar. Eleonora. É a Nora? Não. Nora tinha cabelos vermelhos, um jeito inesquecível de descer pelo meu corpo. Preciso me concentrar, pegar o Valdir de jeito amanhã. Vou dormir. Fechou a janela. Esse barulho.

Joaquim foi até a dispensa, pegou sua caixa de ferramentas. O velho tubo de óleo Singer. Derramou algumas gotas na janela, começou o lento movimento de vai e vem. Mais algumas gotas, vai e vem, o ruído sumindo aos poucos. Mais algumas gotas, mais, a janela agora desliza suave, sem barulho. Joaquim podia ouvir até mesmo a brisa solitária da noite.

Confeitaria Colombo

“Oi. Chegou há muito tempo?”

“Não. Acabei de chegar.”

Pedro olhou para o copo com resto de água turva, mistura de gelo derretido e coca, em cima da mesa.

“Desculpe. Fiquei perdido, faz tempo que não venho ao Rio, acabei me confundindo ….”

“Não precisa explicar, eu, eu…. cheguei cedo, eu sempre chego cedo, você me conhece, eu ….”

Pedro apertou a mão de Ângela levemente. Ela desviou o rosto, escondendo os olhos molhados, escondendo o rosto levemente vermelho de ansiedade, escondendo de si mesma a vontade de olhar fundo nos olhos dele. “Cheguei. Chegaste. Vinhas fatigada / E triste, e triste e fatigada eu vinha.”

“Olavo Bilac freqüentava esse lugar. Todos os dias no final da tarde. Ficava na calçada conversando até não poder mais. Conversava com os amigos, até com estranhos que lhe pediam autógrafos. Ele adorava a fama. Você consegue imaginar a beleza de tudo isso? poetas, escritores, você consegue imaginar as conversas, as ideias, os amores que nasciam nas calçadas. Naquela época as pessoas conversavam, Pedro.”

O garçom chegou com o bloquinho nas mãos.

“Um conhaque, por favor.”

“Ângela! Você não bebe.”

Ela olhou distraída para a porta de entrada. “Tinhas a alma de sonhos povoada, e a alma de sonhos povoada eu tinha….”

“É verdade.” Ângela fez um gesto para o garçom.

“Um capuccino. Sem conhaque.”

“Dois, por favor.”

Um casal de idosos entrou, sentaram-se à mesa perto da porta da confeitaria. Um breve ressentimento tomou conta de Ângela. “Era ali que o poeta ficava, sentado nos finais de tarde”. Seus olhos encontraram de passagem os da velha senhora que percorriam o ambiente, como se fosse a primeira vez. Ângela passou a olhar para a decoração que tanto conhecia, envolvida pelo longo silêncio que se interpôs entre ela e Pedro. Ela ficava sempre fascinada com as bancadas de mármore, os lustres, aquela mobília de época, uma belle époque de poesias, de romance. “E paramos de súbito na estrada / Da vida: longos anos, presa à minha / A tua mão, a vista deslumbrada / Tive da luz que teu olhar continha”.

“Quanto tempo você fica fora dessa vez?”

Pedro demorou alguns segundos a responder, buscando tempo na colher mexendo o café.

“Dois anos. Talvez mais. É um grande projeto, a fábrica aprovou a ideia, esse carro, não sei, esse carro é o projeto da minha vida.”

“Eles não conversam.”

“O que?”

“O casal de idosos sentado na mesa de Bilac. Ela fica olhando a decoração, presta atenção nas pessoas que entram. Ele lê uma revista. Existe esse tempo? Basta apenas estar perto um do outro, assim, perto, respirando juntos. Ou é um tempo em que nem a beleza diz mais nada. Sua mulher vai com você?”

“Vai.” Pedro respondeu rapidamente, largando a colher de súbito dentro da xícara  ”Nós vamos procurar uma casa em Turim. É uma fase nova na minha vida, eu preci….”

“Nel mezzo del camin….”

“Como?”

Ângela tomou um pequeno gole do cappuccino, sentiu o gosto quente e doce tocando sua língua, deixou o líquido deitar na sua boca antes de deixá-lo descer pela garganta. “Na partida / Nem o pranto os teus olhos umedece”.

“Seu café está esfriando.”