Vontade indômita

O filme tem uma sequência antológica, reverenciada pelo valor estético e simbólico. Dominique Francon, jovem da alta sociedade, está na mansão de seu pai no interior. Ela ouve sons estridentes que a incomodam pela manhã e se encaminha até a pedreira próxima da casa. Do alto, ela vislumbra Howard Roark, um arquiteto desempregado, tentando cortar a pedra com uma enorme furadeira. Ele está suado, olha para cima e vê, em um profundo contre-plongée, a figura charmosa, cabelos ao vento, roupas brancas, da bela Dominique. Outra cena famosa e polêmica da narrativa é o início das relações físicas, marcado pela violência, entre o casal de protagonistas, no quarto de Dominique.

Vontade indômita é baseado na obra literária A nascente, da escritora russo-americana Ayn Rand. O livro é um dos grandes best-sellers da literatura americana, trazendo um tema caro à formação da sociedade capitalista estadunidense: o direito ao individualismo, a centrar o comportamento e os atos, principalmente o trabalho, em favor próprio, não pensando na sociedade. 

Howard Roark é um ambicioso arquiteto que não aceita interferências de espécie alguma em seus projetos. Perde grandes trabalhos por esta intransigência, vai a falência e, enquanto tenta se recuperar, trabalha na pedreira do pai de Dominique. O amor entre os protagonistas também se espelha na individualidade, os dois negam o relacionamento em favor de suas convicções.

Gary Cooper e Patricia Neal viveram um fervoroso relacionamento amoroso durante as filmagens, ajudando a construir o mito sobre este melodrama com a marca visual do diretor King Vidor. Ayn Rand escreveu o roteiro e seguiu a ferro e fogo os princípios defendidos em seu livro. Ela escreveu o longo discurso final de Howard Roark, diante do tribunal. Vidor tentou cortar parte do texto, mas foi impedido pela escritora, que ameaçou processar o estúdio. O que se vê na tela é um Gary Cooper sem muita convicção (ele próprio declarou sua insatisfação quando viu a cena) durante a interpretação do discurso, o mais longo monólogo da história do cinema até aquele momento. 

Vontade indômita (The fountainhead, EUA, 1949), de King Vidor. Com Gary Cooper (Howard Roark), Patricia Neal (Dominique Francon), Raymond Massey (Gail Wynand), Kent Smith (Peter Keating), Robert Douglas (Ellsworth Toohey).

Estrela ditosa

Mary Tucker é uma jovem muito pobre que mora em uma propriedade rural junto com a mãe. Vende leite e ovos na estrada e aplica pequenos golpes, como fingir que não recebeu o pagamento, tentando ganhar um dinheiro a mais. Em uma dessas artimanhas, ela é flagrada por Tim, funcionário de uma empresa de telefones. Ele aplica umas palmadas em Mary, como lição para tentar ser honesta. É o início de um relacionamento amoroso que vai ser interrompido pelo início da Primeira Guerra Mundial e consequente alistamento de Tim, que vai lutar na Europa. 

Estrela ditosa é considerado um dos grandes melodramas de todos os tempos, é um primor da narrativa visual, com fotografia primorosa das imagens campestres (reproduzidas em estúdio). Preste atenção na longa sequência na neve, quando Tim (que perdeu os movimentos das pernas em batalha) luta para chegar até a estação de trem pelos campos nevados, atrás de sua Mary. O final sugere um milagre surrealista, antecipando o final de A bela da tarde (1967), de Luis Buñuel. 

Estrela ditosa (Lucky Star, EUA, 1929), de Frank Borzage. Com Janet Gaynor (Mary Tucker), Charles Farrell (Tim Osborn), Guinn “Big Boy” Williams (Martin Wren), Hedwiga Reicher (Sra. Tucker). 

Era uma vez um sonho

Vez por outra o espectador se depara com filmes que se destacam apenas pela forte atuação dos protagonistas. É o caso de Era uma vez um sonho, cujo destaque reside na interpretação de Glenn Close, indicada ao Oscar de Atriz Coadjuvante pelo papel de Mamaw, uma avó, fortemente maquiada, que assume os cuidados de seu neto, Vance.

A história, baseada em fatos reais, segue o ponto de vista de Vance, primeiro na infância, quando passava férias com os avós, depois como um jovem advogado, morando com a família em Ohio. O tema central são as conturbadas relações familiares, marcadas por sugestões de abusos domésticos, alcoolismo e profundas crises depressivas. Sem grandes destaques narrativos, a história segue os contornos do melodrama familiar, centrados na relação entre Vance e sua mãe, que luta contra a depressão e o alcoolismo. 

Era uma vez um sonho (Hillbilly Elegy, EUA, 2020), de Ron Howard. Com Amy Adams (Bev), Glenn Close (Mamaw), Gabriel Basso (Vance), Haley Bennett (Lindsay), Bo Hopkins (Papaw).  

Thelma

A  jovem Thelma estuda em uma universidade de Oslo. É a primeira vez que se afasta dos pais, que a criaram sob uma fervorosa doutrina religiosa. Thelma se sente atraída por Anja, as duas começam uma relação amorosa ao mesmo tempo em que Thelma começa a sofrer estranhas convulsões. 

O suspense, com toques sobrenaturais, dita o tom da narrativa. Thelma esconde um trauma de sua infância, sugerido em uma impactante cena inicial. Durante as convulsões, estranhos acontecimentos afetam as pessoas com quem ela se relaciona. Desejos reprimidos podem estar no cerne dessas manifestações, passo a passo a relação entre Thelma e seus pais apontam que o desejo de libertação pode despertar certos demônios. 

Thelma (Noruega, 2017), de Joachim Trier. Com Eili Harboe (Thelma), Kaya Wilkins (Anja), Henrik Rafaelsen (Trond), Ellen Dorrit Petersen (Unni). 

Começar de novo

A estrutura narrativa do filme é o grande destaque. O início, através de uma montagem rápida, narra a relação entre dois amigos escritores, Erik e Philip, desenvolvendo uma história que poderia ter acontecido. O título Reprise entra e outra história, a verdadeira?, começa. A estratégia é sugerida no final. 

Os dois são amigos desde a infância e dividem o sonho de ser escritores. Enviam manuscritos ao mesmo tempo para a editora. Philip tem seu projeto aprovado, mas o manuscrito de Erik é rejeitado. 

Neste primeiro filme da Trilogia de Oslo, o diretor Joachim Trier trabalha com temas importantes para a juventude: sonhos e desilusões, insegurança, sérias crises depressivas – Philip, após o sucesso de seu primeiro livro, entra em uma espiral descendente, sofrendo com crises depressivas. A amizade afetuosa entre Erik e Philip aponta caminhos para vencer todos esses desafios, por vezes incontornáveis, para esses jovens sonhadores.

Começar de novo (Reprise, Noruega, 2006), de Joachim Trier. Com Anders Danielsen Lie (Philip), Espen Klouman Hoiner (Erik), Viktoria Winge (Kari), Odd Magnus Williamson (Morten), Pal Stokka (Geir), Christian Rubeck (Lars), Henrik Elvestad (Henning), Henrik Mestad (Jan), Silje Hagen (Lilian). 

Django & Django

No prólogo, intitulado Era uma vez, o cineasta Quentin Tarantino narra, com imagens de seu filme Era uma vez em Hollywood, um diálogo ao telefone entre o agente Marvin (Al Pacino) e o ator de Hollywood Rick (Leonardo DiCaprio). O agente tenta convencer Rick a se encontrar com Sergio Corbucci. Rick pergunta quem é Corbucci, ao que o agente responde: “O segundo maior diretor de faroeste espaguete do mundo todo.”

É o ponto de partida para o documentário sobre Sergio Corbucci, que era frequentemente confundido com seu grande amigo Sergio Leone. O tom do documentário são os longos depoimentos de Tarantino, admirador confesso, inclusive com homenagens em seus filmes, do diretor de Django (1966). Tarantino revela que cogitou, depois de filmar Bastardos Inglórios, escrever uma biografia de Corbucci intitulada O outro Sergio

Tarantino explica o nascimento da carreira dessa geração que mudou o gênero western a partir do final dos anos 50: “Toda aquela turma de diretores do faroeste espaguete, Leone, Corbucci, Duccio Tessari, Franco Giraldi, todos eles eram amigos. Todos eram críticos que escreviam para revistas e jornais sobre filmes. E todos eles adoravam faroeste. Essa turma de caras começou a trabalhar como críticos e, aos poucos, eles viraram roteiristas. Por meio da escrita, viraram diretores de segunda unidade. E foi onde realmente aprenderam o ofício deles.”

O roteirista e diretor Ruggero Deodato também participa do documentário, comentando sobre sua participação em diversos filmes de Corbucci. Outro ponto de destaque é a participação de Franco Nero, intérprete do célebre Django. 

Django & Django é um retrato fascinante desse diretor italiano tão apaixonado por cinema que resolveu renová-lo, participando de forma decisiva de uma espécie de movimento que foi visto pela crítica como paródia, como cinema menor. Visão que Tarantino, com certeza, não concorda:

“Para mim, o Leone criou a maior trilogia da história do cinema, a trilogia dos dólares. Cada filme é um épico maior do que o anterior. Cada um expressa mais os faroestes. Cada um expressa mais como artista, quem ele é e o que quer fazer. Cada um é uma recriação maior do faroeste sobre a ótica dele. O Corbucci é diferente. O Corbucci decidiu não fazer isso. Quando começou a fazer faroeste espaguete, ele não visou épicos. Ele optou pelo tipo de filme de caubói mais violento. Ele os queria dentro do gênero. Não são épicos. São filmes de caubói, filmes de vingança.”

Django & Django (EUA, 2021), de Luca Rea.

Perfil de uma mulher

A narrativa é uma jornada temporal entre dois momentos na vida de Ichiko. Ela trabalha como cuidadora de idosos, cuidando da avó de duas jovens, Motoko e Yoko. Um dia, Yoko é sequestrada a caminho da escola e o principal suspeito é o sobrinho da cuidadora. A partir daí, a vida de Ichiko entra em uma espiral de intrigas, suspeitas e vingança.

O diretor Koji Fukada mistura  presente e futuro à medida que a investigação do sequestro se desenrola, levando o espectador a um intrincado exercício de entendimento da trama. A obsessão da jovem Motoko por Ichiko funciona como uma espécie de propulsão para os acontecimentos nestes dois tempos. 

Um ponto que merece destaque na trama é o repulsivo tratamento da mídia na cobertura do sequestro, julgando e condenando, como sempre, os envolvidos diante das câmeras, Destaque também para a interpretação de Mariko Tsutsui. Sua personagem transita pelos dois tempos de forma contida, às vezes resignada, outras vezes decidida a se vingar, mas sempre de forma compassiva, participando, mas, também, observando de forma cuidadosa o desenrolar dos acontecimentos. 

Perfil de uma mulher (Yokogao I, Japão, 2019), de Koji Fukada. Com Mariko Tsutsui (Ichiko), Mikako Ichikawa (Motoko), Sosuke Ikematsu (Kazumichi), Nahoko Kawasumi (Yoko), Ren Sudo (Tatsuo).

Bagdad Café

A canção I’m calling you já vale o filme. Ela entra no espectador e fica, apenas fica. No entanto, o filme tem muito mais. É uma emocionante história de perda e renascimento pessoal, movida pela relações pessoais entre duas mulheres que começam com estranheza, beiram a agressividade, passam pela compreensão até se transformarem na mais sincera amizade. 

A alemã Marianne está de férias com seu marido nos EUA. Eles se desentendem e ele a abandona em uma estrada deserta e árida. Ela caminha por um longo tempo até encontrar o Bagdad Café, restaurante e pousada de beira de estrada. É recebida pela proprietária Brenda, se hospeda e vai ficando por ali. 

Os tipos que moram e trabalham no Bagdad Café compõem um painel de personagens excêntricos, exóticos, que passam os dias entre desentendimentos e reconciliações. A transformação de Marianne começa quando ela decide organizar o local, ajudando Brenda primeiro na limpeza, depois no atendimento aos clientes, oferecendo divertidas apresentações de mágica. O que fica, no final, além da música, é essa simplicidade da vida que pode e deve ser sentida dia-a-dia através das ternas relações entre as pessoas. 

Bagdad Café (Out of Rosenheim, Alemanha, 1987), de Percy Adlon. Com Marianne Sagebrecht (Jasmin), CCH Pounder (Brenda), Jack Palance (Rudi Cox), Christine Kaufmann (Debby), Monica Calhoun (Phyllis), Darron Flagg (Salomo), George Aguilar (Cahuenga), G. Smokey Campbell (Sal). 

A lei da fronteira

O novo cinema dos anos 60 se espalhou mundo afora renovando até mesmo cinematografias pouco difundidas. Na Turquia, o diretor Lutfi Omer Akad revisitou o gênero western, criando uma narrativa que mescla os clichês do gênero com o estilo neorrealista rico em conflitos sociais.  

Hidir é o líder de uma aldeia próxima à fronteira com a Síria. Ele atua como contrabandista, cruzando a fronteira, trazendo mercadorias e ovelhas para os poderosos chefes da cidade. É uma jornada arriscada, pois a divisa entre a Turquia e a Síria é recheada de minas terrestres. O comandante da policia tenta convencer Hidir a abandonar o contrabando, liderando a aldeia para aceitar a construção de uma escola para as crianças e no trabalho agrário. No entanto, os chefes locais forçam violentamente Hidir a continuar no contrabando. 

A progressão da trama levanta um aspecto decisivo para a renovação do cinema de gênero nos anos 60: o poder corrupto e opressor, representado por Ali Cello, dono das terras, não permite que os “pistoleiros” abandonem seu passado violento – representado por Hidir e seus comparsas. A única alternativa é o confronto mortal entre os dois lados. A polícia assiste a tudo com impotência, enquanto a esperança reside na jovem professora da escola e em Yusuf, filho de Hidir, que acompanha a trágica luta de seu herói. 

A lei da fronteira (Hudutlarin kanunu, Turquia, 1966), de Lutfi Omer Akad.Com Yilmaz Guney (Hidir), Ayse Ogretmen (Pervin Par), Erol Tas (Ali Cello), Tuncer Necmioglu (Aziz), Muharrem Gurses (Duran Aga), Aydemir Akbas (Abuzer). 

007 – Sem tempo para morrer

A despedida de Daniel Craig do agente secreto é emocionante. O final deixa no ar a certeza de que nossos heróis são assim, como nós. Essa foi, inclusive, a base da renovação da franquia 007 desde Casino Royale (2006): Bond sofre de diversos males físicos e sentimentais, um herói mais próximo, afeito aos conflitos internos e externos (lembrem-se das cenas de tortuna)  que acometem as pessoas comuns. 

No time to die começa com uma impactante sequência em uma casa de campo no inverno gélido, quando são apresentados Madeleine, ainda criança, e Safin, o vilão. Corta anos depois para cenas idílicas de Bond curtindo suas férias em Materna, sul da Itália,  junto com Madeleine, sua namorada. São cenas idílicas, sensuais, nas belas praias, nas vielas históricas, nos quartos de hotéis, assim como em todo filme de 007. Um atentado contra a vida de James Bond dá fim ao romance, instaurando a dúvida entre o casal. 

São dois prólogos recheados de cenas de romance, sexo, ação, perseguições de carros, mortes assustadoras. Cinco anos depois, Bond está aposentado, seu codinome 007 é usado agora por uma agente secreta. No entanto, Lyutsifer Safin, o vilão da primeira sequência, ressurge e se apodera de uma poderosa arma química que pode dar fim à humanidade. 

É a senha para a volta de Bond à ação, em uma narrativa repleta de reviravoltas, sequências mirabolantes de suspense e ação, um amor do passado que volta com surpresas, coadjuvantes que se destacam em momentos decisivos da trama, mulheres empoderadas em ações espetaculares quando resolvem sozinhas os problemas (diante de um Bond atônito); enfim, o velho e o novo 007 oferecem ao espectador tudo que ele tem direito quando se senta diante de um Bond, James Bond. O final apoteótico deixa uma dúvida que se dissipa rapidamente: James Bond will return!?.

007 – Sem tempo para morrer (No time to die, EUA, 2021), de Cary Joji Fukunaga. Com Daniel Craig (James Bond), Ana de Armas (Paloma), Rami Malek (Lyutsifer Safin), Léa Seydoux (Madeleine). Lashana Lynch (Nomi), Ralph Fiennes (M), Ben Whishaw (Q), Naomie Harris (Moneypenny).