
Jeff (James Stewart), um repórter fotográfico, está imobilizado na cadeira, com a perna engessada. Para passar os dias, ele bisbilhota com a zoom de sua câmera fotográfica os apartamentos do prédio em frente ao seu. Vê o prédio em plano geral, quando se interessa por uma situação, aproxima seu olhar de uma das janelas, se envolve com o cotidiano dos moradores: uma mulher de meia-idade em desilusão amorosa, um jovem casal em excitante lua-de-mel, um músico alcoólatra, uma jovem e provocativa dançarina, um casal em crise com discussões cada vez mais violentas. Em uma destas viagens voyeristas, Jeff suspeita que o homem deste último quadro matou a mulher.
No livro Hitchcock/Truffaut Entrevistas, o diretor François Truffaut instiga Hitchcock sobre o seu desafio em Janela indiscreta (Rear window, EUA, 1954): “Imagino que, no início, o que o tentou foi o desafio técnico, pagar para ver. Um único cenário imenso e todo o filme visto pelos olhos do mesmo personagem…” A resposta de Hitchcock define a audácia conceitual deste que é, na opinião da maioria dos críticos, o melhor filme do mestre do suspense.
“Exatamente, pois você tinha aqui uma possibilidade de fazer um filme puramente cinematográfico. Você tem o homem imóvel que olha para fora… É um primeiro pedaço de filme. O segundo pedaço mostra o que ele vê e o terceiro mostra a reação dele. Isso representa o que conhecemos como a mais pura expressão da ideia cinematográfica. Você sabe o que Pudovkin escreveu a respeito disso, num de seus livros sobre a arte da montagem, em que contou a experiência feita por seu mestre Lev Kulechov. A coisa consistia em mostrar um primeiro plano de Ivan Mosjukin e, logo em seguida, o plano de um bebê morto. No rosto de Mosjukin lê-se a compaixão. Retira-se o plano do bebê morto e coloca-se a imagem de um prato de comida. No mesmo primeiro plano de Mosjukin, agora você lê o apetite. Da mesma maneira, pegamos um primeiro plano de James Stewart. Ele olha pela janela e vê, por exemplo, um cachorrinho que desce, dentro de uma cesta, até o pátio; voltamos a Stewart, ele sorri. Agora, no lugar do cachorrinho que desce dentro da cesta, mostramos uma moça nua que se requebra diante de sua janela aberta; voltamos ao mesmo primeiro plano de James Stewart sorridente e, agora, ele é um velho safado!.” – Hitchcock
A posição imóvel do repórter fotográfico diante das janelas, assistindo às pequenas histórias, é a posição do espectador na sala de cinema, em uma contemplação passiva. “Somos todos voyeurs, ainda que apenas quando assistimos a um filme intimista. Aliás, James Stewart na janela está na situação de um espectador assistindo a um filme.” – Hitchcock
No entanto, à medida que a trama do possível assassinato se desenvolve, Jeff sente necessidade de interferir, mesmo imóvel ele usa da própria câmera fotográfica para tentar desvendar o crime e tenta avisar as pessoas. Hitchcock usa dos recursos cinematográficos, da linguagem, para chamar o espectador a participar do jogo narrativo. Laurent Jullier e MIchel Marie comentam sobre a participação do espectador em Lendo as imagens do cinema.
“Todos os filmes modelam um ‘espectador ideal’, que coopera no máximo de suas possibilidades, que treme e que ri diante de boas passagens, sem jamais se lamentar de ter comprado sua entrada. Até mesmo os diretores experimentais, cujos filmes não contam histórias, esperam que seu público se conduza de determinada maneira: quando Andy Warhol projetava seus longos filmes (Dormir – Sleep, por exemplo, que mostra em 1963 John Giorno dormindo durante seis horas), ele se baseava em uma projeção no centro de um show de multimídias e em um público diletante, entrando e saindo, e não em espectadores sentados comportadamente, esperando com arrebatamento que o rapaz acorde, se vista e parta para a aventura.”
No início de Cantando na chuva (Singin’ in the rain, EUA, 1952), co-dirigido por Gene Kelly e Stanley Donen, Don Lockwood (Gene Kelly) chega para a pré-estreia de um de seus filmes. Uma multidão o espera em frente ao cinema. A anfitriã da festa pede a Lockwood que conte para o público presente como começou sua carreira. Ele chega ao microfone e relata sua história enquanto imagens em flashbacks vão mostrando “a verdade”. O que as imagens mostram para o espectador é o oposto do que Don Lockwood narra para a plateia dentro do filme. Por exemplo, ele diz “meus pais me mandaram às melhores escolas de dança. Foi onde conheci Cosmo. Com ele, me apresentava aos amigos de meus pais”. Mas as cenas que ilustram a narração mostram dois meninos dançando em um bar, na frente de uma mesa de sinuca, catando as moedas que são atiradas ao chão pelos fregueses, até que o dono os expulsa do local.
“Na ação diegética do filme só se ouve o que Don narra ao microfone do programa de rádio, enquanto o espectador vislumbra as imagens do que vai sendo relatado. Don afirma que não poderia contar a verdade na frente de tantas pessoas, no entanto o espectador é o único a conhecê-la. Dessa forma, cria-se desde o início uma espécie de pacto entre o espectador e o que o filme irá narrar dali por diante, ou seja, como o cinema tornou-se sonoro, readaptando sua linguagem e suas técnicas, até a criação e o desenvolvimento de uma nova modalidade dramática: o musical.” (ANDRADE, 1999, p. 57).
Cidadão Kane (Citizen Kane, EUA, 1941), de Orson Welles, é outro filme a convidar o espectador para o jogo narrativo, motivando-o a participar da intrincada montagem de um quebra-cabeça. O filme narra a trajetória de Charles Foster Kane, um magnata da imprensa americana. A primeira cena do filme é o close numa placa colocada na grade da mansão do magnata, chamada de Xanadu. Na placa, a inscrição “No trespassing”. A câmera sobe lentamente e, numa série de fusões, desrespeita o aviso, atravessando a grade. No momento da câmera entrar pela janela do quarto, fusão para neve caindo sobre uma pequena casa, a câmera recua e mostra que a casa e a neve estão dentro de uma redoma de vidro. Corte para close da boca de um homem que pronuncia a palavra “rosebud”. A redoma de vidro, que estava em suas mãos, cai, rolando até se quebrar. De uma câmera posta no chão, vemos uma enfermeira entrar no quarto. Ela se aproxima do homem e cobre o corpo dele com lençóis. Charles Foster Kane acaba de morrer.
Nesta primeira sequência, Orson Welles anuncia a cumplicidade com o público que vai se estender até a última cena do filme. Uma placa indica a proibição de entrar naquele castelo místico. Mas o público tem este direito. Através das fusões, o diretor permite ao público conhecer a intimidade do protagonista, invadindo seu castelo e seu quarto no momento da mais completa solidão de Kane: a hora da morte. “(…) O cinema é intensidade, intimidade, ubiquidade: (…) intimidade porque a imagem (de novo através do primeiro plano) nos faz literalmente penetrar nos seres (por intermédio dos rostos, livros abertos das almas) e nas coisas.” – Marcel Martin
Logo que Kane morre, começa, dentro do filme, a exibição de um noticiário de cinema intitulado News on The March. O cine-jornal fala sobre a legendária Xanadu, mansão suntuosa de Kane, com “seus quadros, pinturas, estátuas que formam coleções tão grandes que jamais poderiam ser catalogadas ou avaliadas.” A seguir, fala dos funerais do magnata e passa a descrever seu império, formado por jornais, rádios, cadeias de lojas de alimentos, fábricas de papéis, florestas e barcos. O narrador conta a história da fortuna de Kane, sua ascensão social e política, até a sua derrocada, motivada por um escândalo sexual.
Quando as luzes do projetor se apagam. O grupo de jornalistas responsável pelo documentário está numa sala e passa a discutir a edição. Comentam que não há nada de interessante no documentário, falta saber quem realmente ele era:
“Quais foram as últimas palavras de Kane, lembram-se?”
“Ao morrer, Kane disse somente uma palavra: rosebud.”
“O que quer dizer rosebud? Um homem que poderia ter sido presidente. Que foi tão amado quanto odiado e que, ao morrer, só disse rosebud. O que significa isso? Guarde o filme por duas semanas. Descubram o que é rosebud. Entrem em contato com todos os que o conheceram intimamente.” – o editor-geral designa Thompson (William Alland) para descobrir o significado da palavra.
Durante todo o filme, o jornalista tenta descobrir o significado de uma palavra que Kane disse na hora da morte. No entanto, ninguém, a não ser o espectador, ouviu Kane pronunciar rosebud.
“Mas vendo Kane agora, eu vacilei, como da primeira vez, com o vazio virtuosismo da tomada perto do início em que Kane, morrendo, deixa cair a bola de vidro e vemos a entrada da enfermeira refletida no vidro. Notei de novo, embora sem ligar desta vez, que não havia ninguém na sala para ouvir Kane, agonizando, dizer: Rosebud”. – Pauline Kael.
Em sua busca, o Sr. Thompson procura as pessoas mais ligadas à Kane. A cada entrevista, flashbacks (num total de seis) vão contando as principais passagens da história da personagem central. Primeiro, Thompson procura Susan Alexander (Dorothy Comingore), segunda esposa de Kane, numa propriedade chamada El Rancho, em Atlantic City. Chove, a câmera mostra os letreiros luminosos com o nome da proprietária e, como no início do filme, ultrapassa a grade, conduzindo o espectador ao interior.
Susan está bêbada. Ela conversa rapidamente com o Sr. Thompson e manda-o embora aos gritos. O jornalista vai para a Filadélfia, à biblioteca Thatcher, consultar o diário de Walter Thatcher (George Coulouris), dono de um dos maiores bancos da América e administrador dos bens de Kane durante a infância dele. Thompson abre o diário e lê a frase: “Meu primeiro encontro com o Sr. Kane, em 1871.” Fusão das palavras com neve caindo, até aparecer um garoto brincando de trenó na neve. A fusão remete ao início do filme, quando Orson Welles usa o recurso para mostrar a neve caindo na redoma. É um jogo de imagens com o espectador, primeira pista para que ele possa desvendar o mistério.
A próxima sequência revela a origem da fortuna de Kane: um antigo inquilino da família, que não pagara a hospedagem, morrera e passara uma mina de ouro para o nome da mãe de Kane, como forma de quitar a dívida. A matriarca decide entregar a administração da mina aos cuidados do Banco Thatcher, determinando que o Sr. Thatcher leve Kane para que ele seja educado e receba os bens após completar 25 anos. O Sr. Thatcher, a mãe e o pai de Kane estão dentro de casa, discutindo o assunto, enquanto o garoto (Kane) brinca na neve com o trenó.
Eles saem da casa e a mãe conta a Kane que ele vai viajar com o Sr. Thatcher. O garoto se irrita ao saber que a mãe não vai junto e agride o Sr. Thatcher com o trenó. Há uma discussão entre os pais, a mãe abraça Kane. Close no rosto do garoto. Fusão para cena do trenó abandonado no chão, sendo coberto aos poucos pela neve (nova pista, imagens remetem sempre ao momento da morte de Kane). Corte para cena de Kane, ainda garoto, desembrulhando um presente, outro trenó. O Sr. Thatcher, ao seu lado, deseja-lhe feliz natal. O garoto responde “feliz natal”. Corte para cena do mesmo Sr. Thatcher dizendo:
“E feliz ano novo. Só falta que eu lembre que os seus 25 anos estão muito próximos, o que definirá a sua total independência da firma Thatcher e Cia. É o momento de começar a administrar a sexta fortuna particular do mundo”.
O Sr. Thatcher dita uma carta ao seu secretário para ser enviada a Kane. Conjugando o primeiro plano com as frases “feliz natal” e “feliz ano novo”, o diretor Orson Welles faz uma passagem de tempo (elipse) de cerca de 20 anos.
Também através de uma carta, Kane informa ao Sr. Thatcher que não está interessado nas minas de ouro e no petróleo, apenas no pequeno jornal New York Inquirer. A partir daí, o filme narra a luta de Charles Foster Kane em transformar o Inquirer num grande jornal. O Sr. Thompson, em sua busca, procura Bernstein (Everett Sloane), procurador geral de Kane no Inquirer. Bernstein relata a luta diária para “levantar” o jornal. São os tempos românticos do Kane jornalista que chega, inclusive, a escrever e publicar uma declaração de princípios.
A circulação do jornal aumenta e, junto, o poder de Kane. Ele viaja para a Europa e volta casado com a sobrinha do presidente dos Estados Unidos. Neste momento, Bernstein interrompe a narrativa para dizer a Thompson que “naturalmente, ela não era rosebud”. E completa: “este rosebud, pelo qual tanto se interessa, pode ser algo que ele perdeu”. Mais uma pista para o espectador. Ao longo do filme, ficamos sabendo da obsessão de Kane em comprar quadros, estátuas e monumentos, uma compulsão, ele sequer chegava a desembrulhar a maioria das coisas que comprava. Como se buscasse algo que perdeu.
Depois de ouvir a história de Bernstein, o Sr. Thompson vai a um hospital se encontrar com Leland (Joseph Cotten), melhor amigo de Kane nos tempos de colégio e o jornalista que o ajudara a consolidar o Inquirer. Leland começa a contar sua versão dos fatos a partir do casamento entre Kane e a sobrinha do presidente. Neste ponto, Orson Welles demonstra mais uma vez sua incrível capacidade de controlar o tempo da narrativa cinematográfica. Ele mostra a passagem dos anos através de uma série de diálogos entre Kane e sua esposa durante o café da manhã. Os diálogos entre os dois, a posição deles na mesa e o tom irônico das conversas demonstram o gradual afastamento do casal. Na primeira cena, recém-casados, Kane chega à mesa e dá um beijo na mulher, elogiando sua beleza. Nas cenas subseqüentes, conversam sobre política, sobre filhos, discutem a ausência cada vez maior de Kane de casa – o tom da conversa fica sempre mais ácido. Na última cena, eles não se falam, apenas trocam um olhar de desprezo. A câmera recua e mostra o isolamento do casal, separado por uma mesa de café da manhã.
Leland passa a contar como Susan Alexander, jovem de 22 anos, entrou na vida de Kane, tornando-se sua amante. Kane passa a visitá-la todas as noites, escutando-a ao piano – Susan tinha aspirações de ser cantora, embora sua voz não ajudasse. É a fase política do filme: Kane está em plena campanha pelo governo do Estado e ataca veementemente o governador Gene Getty, candidato à reeleição. Pelas pesquisas, Kane considera-se praticamente eleito, mas seu adversário prepara uma armadilha: certa noite, após um comício, leva a esposa de Kane ao apartamento de Susan, revelando a traição do marido.
Gene Getty propõe que Kane renuncie à candidatura, em troca do silêncio em relação ao caso extra-conjugal. Kane recusa a oferta, afirmando que ninguém vai lhe tirar o carinho dos eleitores. A sua mulher pede que ele reconsidere e o chama para ir embora, mas Kane diz que vai ficar com Susan. No outro dia, os jornais estampam, nas primeiras páginas, fotos dos amantes, com títulos sugestivos. O escândalo acaba com a carreira política e o primeiro casamento de Kane.
Kane se casa com Susan Alexander e dedica sua vida a uma nova obsessão: transformar sua esposa em cantora de sucesso. Thompson, o jornalista, termina a conversa com Leland e decide procurar Susan novamente, no El Rancho. Desta vez, ela concorda em falar com o jornalista e conta-lhe como Kane tentou consagrá-la como cantora, contratando os melhores professores de canto, comprando apresentações em teatros. Os críticos destroem cada apresentação da cantora.
Após uma turnê fracassada, Susan tenta suicídio, ingerindo uma dose de remédios. A cantora sobrevive e Kane permite que ela abandone a carreira. Os dois vão viver em Xanadu, mansão que o magnata da imprensa mandara construir. É a parte final do filme. Retrata o isolamento de Kane e da esposa num castelo de ambientes gigantescos.
Um dia, após discutirem, Kane esbofeteia Susan e ela decide abandoná-lo. Susan está no quarto arrumando as malas. Ele implora que fique, mas ela diz não e sai do quarto. Depois desta cena, o Sr. Thompson interrompe a conversa com Susan, no El Rancho, e volta a Xanadu, para interrogar o mordomo de Kane, numa última tentativa de descobrir o mistério da palavra.
“Rosebud? Sim. Eu posso contar-lhe sobre rosebud.” – diz o mordomo, acendendo um cigarro.
Seu relato começa da partida de Susan do palácio. Kane ainda está no quarto da esposa e num acesso de fúria quebra os móveis e objetos ao seu redor. Só pára quando vê a redoma de vidro em cima da mesa. Ele a pega, observa os flocos brancos em seu interior e pronuncia “rosebud”. Quando abre o plano, o mordomo está na porta do quarto. Ele diz ao jornalista: “Foi a segunda vez que ouvi a palavra, a primeira foi quando ele morreu.” Essa revelação indica a elipse de enquadramento, o que o espectador não vê mas faz parte da trama. É o fim do mistério sobre quem teria ouvido a palavra.
No entanto, a participação do espectador é a chave mágica da trama. Só o espectador vê, em dois momentos, os flocos brancos de neve dentro da redoma. O jornalista, em sua busca, enxerga pelos olhos dos personagens que entrevista. Estes personagens assistem à vida de Kane à distância, em plano geral. O fascinante jogo da linguagem cinematográfica permite ao espectador entrar na intimidade de Kane, permite ao espectador se posicionar através do olhar do próprio Kane, entendendo as lembranças e sentimentos que um simples objeto provoca.
Thompson pergunta ao mordomo se aquilo é tudo que sabe e diz que vai embora, assim que terminarem as fotos. Desiste. Passa pela sala do palácio, entulhada de estátuas e pacotes. Diversas pessoas fazem inventários das centenas e centenas de coisas espalhadas pelo ambiente. Thompson anda pela sala, conversando com um grupo de pessoas. Alguém pergunta se ele descobriu sobre rosebud.
“Na verdade, não consegui muito.” – responde.
“O que esteve fazendo durante todo este tempo?”
“Brincando com um quebra-cabeça.”
“Se tivesse descoberto o significado de rosebud teria explicado tudo?”
“Não, acho que não.” – continua Thompson – “O Sr. Kane foi um homem que teve tudo o que quis e logo perdeu. Rosebud pode ser algo que não pôde conseguir, ou algo que perdeu. De todos os modos, não teria explicado tudo. Não acredito que uma palavra possa explicar toda uma vida. Não, rosebud não é mais do que uma peça que falta no quebra-cabeça. É a peça mais importante”.
A câmera recua, mostrando do alto o grupo de pessoas no meio dos objetos. Recua mais um pouco, as pessoas somem de vista. A câmera começa a andar pela sala, num plano aéreo, passeando devagar por entre as caixas, como se também procurasse rosebud. A câmera passeia devagar, aproximando-se cada vez mais dos objetos, até parar em um trenó, perdido no meio de tudo. Um homem pega o trenó e o joga numa fornalha, dizendo “queimem estes trastes”. A câmera entra na fornalha, dá um close no trenó. O espectador vê, então, as chamas consumindo a palavra rosebud, gravada no trenó.
As chamas consomem o trenó. Fusão para a chaminé do palácio, de onde sai uma gigantesca fumaça negra. Fusão para as telas da grade do palácio. A câmera desce e enquadra a placa “No trespassing”. A mesma cena do início do filme, no sentido contrário. O público se despede da verdadeira história de Kane. Cúmplice do cinema, o espectador entrou e saiu da intimidade de Charles Foster Kane.
Rosebud tornou-se um mistério também fora das telas. Segundo Orson Welles, a ideia original do filme “era contar a mesma coisa várias vezes e mostrar a mesmíssima cena sob pontos de vista totalmente diferentes. Basicamente, a ideia usada mais tarde em Rashomon.” O autor completa, explicando porque usaram a palavra (trechos do livro de Peter Bogdanovich).
“OW: A ideia foi murchando em relação ao que se pretendia de início. Eu queria que o homem parecesse pessoas diferentes, dependendo de quem estivesse falando sobre ele. Rosebud foi ideia de Mank (Herman J. Mankiewicz, roteirista do filme), as várias facetas coisa minha. Rosebud ficou porque foi a única saída que encontramos para arrematar, get off, como se dizia no vaudeville. Funciona, mas continuo não sendo muito fã, e acho que nem ele era. É o tipo de coisa que pode acabar ficando obsoleta, de certa forma.
PB: Perto do final, o repórter diz que não tem importância o que significa. […]
OW: Fizemos o possível para zombar […]. “
A história que se conta a respeito do sentido verdadeiro da palavra é instigante. Cidadão Kane foi baseado na vida de William Randolph Hearst, dono de uma cadeia de jornais nos Estados Unidos. As coincidências entre a vida e a obra são muitas: Hearst e Kane nasceram no mesmo ano, 1863, fizeram a sua fortuna a partir de uma herança; Hearst também teve uma amante, a atriz Marion Davies e era dono de uma mansão cinematográfica em San Simeon. O próprio Welles admite que a mania de Kane em comprar tudo que via pela frente foi inspirada em Hearst, que passou a vida comprando coisas e estocando em sua mansão.
E, para completar, rosebud. Barbara Leaming, biógrafa de Orson Welles, diz que rosebud era “o nome secreto usado por Hearst para se referir à genitália de Marion” (LEAMING, 1987, p. 206). As coincidências motivaram uma acirrada perseguição de parte da imprensa ao filme e ao próprio Orson Welles. Hearst, alertado sobre detalhes do filme, tentou a todo custo impedir o lançamento de Cidadão Kane. O produtor Louis B. Mayer, amigo de Hearst, chegou a oferecer mais de oitocentos mil dólares para que a RKO destruísse os originais do filme.
A RKO recusou a oferta e lançou o filme. Hearst, então, promoveu uma retumbante campanha em seus jornais contra Cidadão Kane, através de críticas e matérias negativas, além dos textos insinuarem que Orson Welles era comunista. Como resultado, Cidadão Kane foi um fracasso de público. Todos os cinemas registraram prejuízo com o filme, retirando-o rapidamente de cartaz. Candidato a nove prêmios na cerimônia do Oscar, em 1942, ganhou apenas um: melhor roteiro original. No entanto, a imprensa reconheceu os méritos do filme.
“O filme teve uma estrondosa recepção, mesmo na imprensa de Hollywood. Nos últimos anos, espalhou-se o boato de que Cidadão Kane estreou com críticas negativas – supostamente com base na teoria de que estava tão à frente de seu tempo que não foi compreendido – e isso se acha agora registrado em muitas histórias do cinema. Mas foi muito bem compreendido pela imprensa (quem entenderia melhor um filme sobre a imprensa?), e teve críticas sensacionais. Afinal, não se trata de um filme difícil. Em certos aspectos, foi provavelmente mais bem entendido então do que agora, e até onde posso determinar, com mais elevados elogios da imprensa americana do que qualquer outro filme da história.” – Pauline Kael
Barbara Leaming resume os principais atributos que transformaram o filme num marco definitivo: “os ângulos de câmera excepcionalmente baixos, a profundidade de foco da imagem, as longas tomadas, os efeitos superpostos do som, os cortes, às vezes abruptos demais entre as cenas, tudo isso e outros recursos de impacto chamam atenção tanto para o que acontece atrás quanto diante da objetiva.”
Cidadão Kane é um exemplo marcante de filme que conta com a participação do público. Orson Welles sempre conheceu muito bem o seu público. Conversava de perto com ele no rádio, sabendo dos anseios e expectativas dos ouvintes. Em 1938, provocou pânico e confusão ao interpretar, no rádio, A Guerra dos mundos, de H. G. Wells. Grande parte dos ouvintes acreditou que a terra estava sendo invadida por marcianos. No teatro, é célebre a sua montagem de Moby Dick. Uma das inovações da peça é que Orson Welles, interpretando o Capitão Ahab, atuava no palco e, logo depois, sentava-se na platéia para assistir à peça.
Experiências no teatro provocam uma participação ativa do espectador, chamando-o, às vezes, para participar, subir ao palco, entrar na história. No cinema, isto só é possível através da apaixonada imaginação de Cecília.
A rosa púrpura do Cairo (The purple rose of Cairo, EUA, 1985), de Woody Allen, conta a história de Cecília (Mia Farrow), uma dona de casa entediada de New Jersey que em plena época da depressão nos Estados Unidos vai várias vezes ao cinema assistir ao mesmo filme, A rosa púrpura do Cairo. Um dia, Tom Baxter (Jeff Daniels), personagem principal do filme a que Cecília assiste, está interpretando normalmente seu texto. De repente, seus olhos se voltam para a plateia do cinema. Ele olha para Cecília rapidamente, desvia os olhos, continua a interpretar, mas acaba se voltando para ela com o olhar fixo. Cecília sente o olhar, sem entender. Tom Baxter, então, diz:
“Meu Deus! Você deve adorar este filme. Ficou aqui o dia todo. E já a vi duas outras vezes.”
“Eu?” – pergunta Cecília, atônita.
“Isso. Você. É a quinta vez que vê este filme. Preciso lhe falar.” – Tom Baxter sai da tela e invade a sala de exibição. A plateia grita. Uma mulher desmaia ao ver o ator atravessando a tela. Tom pega Cecília pela mão e os dois saem do cinema. Eles percorrem a cidade, tudo é novidade para o ator. Ele não quer mais voltar, está apaixonado por Cecília. Espectadora e herói concretizam seu caso de amor. Mas Gill Shepard, ator que interpreta Tom Baxter no filme, é chamado para resolver a situação. A personagem que ele criou estava se rebelando em diversos outros cinemas.
Gill vai para a pequena cidade, conhece Cecília e também se apaixona por ela. Sonho e realidade, filme dentro do filme, um estranho triângulo amoroso: Cecília ama o ator de carne e osso ou a personagem que ele interpreta em A rosa púrpura do Cairo?
Em determinado momento do filme, a situação se inverte: Tom Baxter leva Cecília para dentro da tela. Ela invade o cinema, interfere na trama, as outras personagens reclamam: “você está do lado errado da tela”, “isto não estava no roteiro”. Ela vive seu dia de sonho: vai ao Copacabana Palace, assiste a uma apresentação de gala e muda a história do filme a que tantas vezes assistira. Os dois percorrem a cidade, vão a clubes, dançam sem parar. Depois voltam para o quarto de hotel de onde Tom saíra da tela. Estão sozinhos. Ela diz:
“Sempre sonhei como seria a vida deste lado da tela.” – Tom a beija e eles ouvem alguém chamando:
“Cecilia.” – Gill Sheppard, o ator de verdade, está na sala de exibição.
Cecília e Tom saem de novo da tela e os três conversam na sala de cinema vazia. Os dois estão apaixonados por ela, Cecília tem que se decidir. As personagens da tela começam a chegar no quarto de hotel e ouvem a discussão, chegam a opinar sobre a escolha. O princípio do cinema está invertido: as personagens do filme de olhos fixos na sala de exibição, vivendo e sofrendo com o desfecho da história. Sheppard, o ator, diz a Cecília que a ama. Cecilia volta-se para Tom e diz:
“Procure entender Tom, no seu mundo tudo acaba dando certo. Sou um ser humano, tenho que escolher o mundo real, apesar da tentação.”
Tom volta para dentro da tela. Cecília e Sheppard saem da sala, as personagens também vão deixando a sala do hotel. Fica o vazio, dentro e fora do cinema, personagens e público não vivem um sem o outro. Na última cena do filme, Woody Allen os reconcilia e faz sua declaração de amor ao cinema.
Cecília vai em casa buscar suas malas para ir embora com Sheppard. Eles devem se encontrar na porta do cinema. Ela chega, um homem está trocando os letreiros do cinema. O gerente sai do cinema e pergunta a ela:
“O que faz aqui?”
“Vim encontrar Gill Sheppard.” – responde Cecilia.
“Já foram.”
“Como assim?”
“Voltaram a Hollywood.”
“Gill também?” – assusta-se Cecília.
“Assim que Tom voltou para a tela, Gill já estava louco para ir embora. Disse que a carreira esteve por um triz.” – o gerente vai embora e de longe, avisa – “Não se esqueça, Fred Astaire e Ginger Rogers estreiam hoje.”
Corta para cena de Gill Sheppard no avião. Ele tem o semblante triste, pensativo. Começa a tocar a música “Cheek to Cheek”. Corta para cena do filme O picolino (Top hat, EUA, 1935,) de Mark Sandrich. Fred Astaire canta enquanto dança com Ginger Rogers.
Cecília entra no cinema, ainda com as malas na mão, senta-se, mas não olha para a tela. Fred Astaire agora dança com sua parceira. Como no início do filme, Cecília está só, ela e o cinema. Tem o olhar baixo. À medida que ouve a música, ela levanta os olhos e encara a tela. Um close-up em Cecília mostra as faces e o olhar da personagem voltando à vida. Fred Astaire canta e dança com Ginger Rogers. Cecília olha, esboça um pequeno sorriso. É o olhar do espectador de cinema: impotente, mas apaixonado. O público pode não ter conseguido ainda entrar nos filmes. Mas o olhar de Cecília na cena final de A rosa púrpura do Cairo mostra que o cinema sempre esteve dentro de nós.
Referências:
A linguagem cinematográfica. Marcel Martin. São Paulo: Brasiliense, 2007
Criando Kane e outros ensaios. Pauline Kael. Rio de Janeiro: Record, 2000
Este é Orson Welles. Peter Bogdanovich, São Paulo: Globo, 1995.
Hitchcock/Truffaut – entrevistas. François Truffaut. São Paulo: Companhia das Letras, 2044
Lendo as imagens do cinema. Laurent Jullier e Michel Marie. São Paulo: Editora Senac São Paulo, 2009.O filme dentro do filme: a metalinguagem no cinema. Ana Lucia Andrade. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1999