
Tela em fade, sobreposto ao título Amores perros, o espectador ouve sons de carros em movimento e respiração ofegante. Abre imagem com faixa contínua da rua passando velozmente. Corta para visão lateral de dentro do carro: imagens urbanas velozes. Corta para cena do motorista: Octavio (Gael García Bernal) dirige em alta velocidade pelas ruas da Cidade do México. É perseguido por uma caminhonete. No banco traseiro do carro, Cofi, seu cão rotweiller, agoniza, amparado pelo melhor amigo de Octávio. A sequência segue com freadas bruscas e ultrapassagens perigosas nas movimentadas ruas da cidade. A câmera é frenética e instável, alternando cenas da rua, interior do carro, mãos no volante, pé no freio e no acelerador, semáforos, cruzamentos, pneus derrapando, automóveis em quase colisões laterais, closes no retrovisor, perseguidor tentando atirar pela janela.
Cortes rápidos, pontuados por som ambiente, anunciam para o espectador um filme de ação, típica produção hollywoodiana marcada por uma espetacular cena de perseguição de carros ao estilo da trilogia Bourne. Mas é um filme mexicano, Amores brutos (Amores perros, México, 2000), estreia do diretor Alejandro González Inárritu.
A partir da impressionante colisão do carro dirigido por Octávio em um cruzamento, a história recua, determinando a marca do diretor que vai se estender em outros filmes: montagem alternando histórias paralelas, indo do presente ao passado e vice-versa sem respeitar a ordem linear dos acontecimentos; personagens marginais que se cruzam ao acaso com típicos representantes da classe média em situações trágicas provocadas por algum tipo de acidente. O acidente refaz destinos, pontos de vista diferentes do mesmo fato provocam novas escolhas. Tragédias que aproximam os filmes de Inárritu do cinema melodramático, porém com fortes confrontações sociais: os dramas vividos pelos personagens, quase sempre em situações limítrofes de sofrimento e morte, ganham contornos da realidade urbana dos países do terceiro mundo. Tudo mascarado pela estética da violência, bem ao estilo Quentin Tarantino. “(…) Hoje ninguém vai ao cinema ver Amores brutos para saber como anda a situação no México, e sim para encontrar um certo ‘estilo’, uma estética particular, uma maneira plástica e cinética de olhar e sentir o mundo.” (FRANÇA, Andréa, in. MASCARELLO, 2006, p. 396).
Agora um corte, um recuo no tempo, para especular sobre a identidade do cinema latino-americano que, a partir dos anos 60, foi chamado de “cinema periférico”, preocupado em demarcar nas telas a experiência histórica do país de origem. Experiência de terceiro mundo, de países colonizados, de povos oprimidos, de regimes repressores.
O cinema latino-americano pujante, político, social e, de certa forma, revigorante narrativamente, concentra suas melhores produções em três países (também em níveis quantitativos): Argentina, Brasil e México. Cuba poderia ser incluída nesta seleta relação, mas o regime de Fidel Castro, implantado no país no final dos anos 50, limitou muito a produção cinematográfica, cerceando temas políticos e sociais. Não cabe aqui uma explanação das condições políticas de cada país, mas vale a generalização: países de fortes conflitos sociais, étnicos, raciais, de economia precária, de distinção de classes sociais beirando o abismo, de movimentos que resultam em golpes de estado e regimes de exceção.
“As circunstâncias de Cuba, o único país da América Latina que implantou uma revolução de esquerda bem-sucedida e duradoura, foram únicas, mas não a tendência de se fazerem filmes politicamente engajados, como demonstra a crítica social aberta dos melhores filmes feitos no Brasil, na Argentina e no México. A América Latina da década de 1960 era uma região onde o cinema não podia se dar ao luxo de não ser político.” (KEMP, 2011, p.266)
Neste contexto, o cinema novo brasileiro é marcante, o estilo dos filmes é influenciado pelo neo-realismo italiano e pela nouvelle vague francesa. Vidas secas (1963), de Nelson Pereira dos Santos, Deus e o diabo na terra do sol (1964) e O dragão da maldade contra o santo guerreiro, dois filmes marcantes de Glauber Rocha, combinam crítica política e social com irreverência narrativa, misto de imagens documentais e ficcionais da faminta realidade nordestina com uma montagem marcada por cortes radicais e a famosa câmera tremida. O manifesto de Glauber Rocha pode ser encarado como uma declaração deste cinema que se estende pela América Latina.
“De Aruanda a Vidas Secas, o Cinema Novo narrou, descreveu, poetizou, discursou, analisou, excitou os temas da fome: personagens comendo terra, personagens comendo raízes, personagens roubando para comer, personagens matando para comer, personagens fugindo para comer, personagens sujas, feias, descarnadas, morando em casas sujas, feias, escuras; foi esta galeria de famintos que identificou o Cinema Novo com o miserabilismo.”
O cinema novo não fez melodramas, proclamaria ainda Glauber Rocha. Como não caberiam melodramas no cinema mexicano do período, quando jovens críticos da revista Nuevo Cine empreenderam uma batalha letrada contra o cinema comercial do país, dependente do cinema de gênero americano (KEMP, 2011). Esta batalha resulta em uma série de filmes que se amparam na metáfora, na alegoria, no realismo fantástico para compor o painel do México conflituoso das revoltas urbanas e rurais, do México contrastante da megalópole capital do país e dos grandes espaços áridos, puros desertos habitados pelos descendentes de Pancho Villa. Fazem parte desta cinematografía: En el balcón vacío (1961), En este pueblo no hay ladrone (1965) e Tiempo de morir (1965). Desse período, impossível deixar de citar os últimos filmes da fase mexicana do espanhol Luis Buñuel: O anjo exterminador (1962) e Simão no deserto (1965).
Seguindo exemplos de Brasil e México, o cinema argentino também se afasta dos modelos estrangeiros e busca sua identidade. Segundo Kemp (2011), surgiu no país nos anos 60 uma espécie de nouvelle vague argentina. Filmes como Três vezes Ana (1961), Crônica de um niño solo (1965) e, principalmente, La hora de los hornos: notas y testimonios sobre El neocolonialismo, la violência y la liberación (1968) ajudaram a definir o modelo do “terceiro cinema”, “um estilo próprio de cinema para o Terceiro Mundo, alternativo ao ‘Primeiro Cinema’ de Hollywood e ao ‘Segundo Cinema’ das nouvelles-vagues.” (KEMP, 2011, p. 266)
Agora um salto no tempo, uma elipse, deixando neste longo intervalo a história traçada pelo cinema latino-americano que vai passar por conflitos de identidade e de produção durante as décadas seguintes. Brasil e México, principalmente, vão a todo custo buscar estratégias que viabilizem os cinemas nacionais: incentivo governamental, busca das leis de incentivo, entrega dos cineastas às leis de mercado que estimulam o surgimento de produtoras, cinema independente que encontra guarida em mostras e festivais. Em todos estes momentos, o problema da falta de interesse do público nos seus cinemas de origem.
Estamos novamente em uma sequência de Amores brutos. Octavio entrega a Suzana, sua cunhada (por quem é apaixonado) o dinheiro de apostas ganho em uma luta de cães – Cofi, seu rottweiler se revela um lutador mortal neste tipo de combate. Octavio sugere a Suzana que fuja com ele. Entra som de um rap mexicano. A montagem paralela, rápida, espécie de videoclipe, domina a sequência seguinte. Os cães brigam na arena. Ramiro, irmão de Octavio, coloca uma meia na cabeça. Volta à cena dos cães com imagens eufóricas dos apostadores. Ramiro, de arma em punho, invade um supermercado, rendendo os frequentadores. Octavio compra um carro com dinheiro das apostas. Seu irmão arromba a caixa registradora do supermercado, ameaçando matar a todos. A música é frenética, ritmo urbano das periferias da cidade, mistura de techno, pop e rap. Ramiro faz sexo com sua amante em pé, apoiados nas prateleiras do depósito do supermercado onde trabalham. Corta para um cão morto, ensanguentado, pescoço destroçado pelo assassino Cofi. Ramiro aponta a arma durante assalto para uma velha assustada. A família reunida num almoço: Octavio, Ramiro, Suzana e seu bebê. Termina a sequência em um fade, abrindo para cena de televisão mal sintonizada, Octavio assistindo em seu quarto.
A última imagem, a tela da TV, é referencial ao universo estético de Iñarritu: televisão, videoclipe, publicidade, mistura de linguagens, imagens fragmentadas e manipuladas que desvirtuam a realidade, afastam o espectador da reflexão, inserindo nas cenas de sexo e violência o universo pop da música, da fotografia estilizada, da montagem desconexa que vai e volta em velocidade ritmada.
“Assistindo a Amores brutos (2000), do mexicano Alejandro González Iñarritu, compreendi por que me incomodam alguns filmes de Quentin Tarantino e principalmente os de seus seguidores, apesar de toda a admiração. Tomando-se como exemplos o excepcional Pulp fiction e o filme do discípulo Guy Ritchie, Snatch – porcos e diamantes, encontram-se diversos elementos de uma cinematografia esplêndida mas, sob certo ângulo, inquietante: superexposição da violência, agilidade cênica, fotografia depurada sobre cenários marginais, caos, música vertiginosa entre rock, rap e techno, linguagem de quadrinhos, roteiro primoroso.” (NASCIMENTO, Evandro, in LOPES, 2005, p. 344)
A estética da violência, questão polêmica, controvertida e, muitas vezes, negada pelos cineastas, é a tônica de outro cineasta mexicano contemporâneo: Guillermo Del Toro. O labirinto do fauno (2006) é uma fábula ambientada na Espanha franquista, final da segunda guerra mundial. Em meio à guerra, uma garota recria seu mundo, materializando fadas e um fauno cruel e sanguinário. Em uma cena perturbadora, um ogro com olhos nas mãos corta com os dentes e mastiga as cabeças de duas ingênuas fadas. O padrasto da menina, no mais puro estilo Quentin Tarantino, esmaga o nariz de um camponês com uma garrafa de vinho e depois atira no corpo já inerte. Cena referente está em Irreversível (2002), do francês Gaspar Noé: em uma boate, um dos personagens esmaga o rosto de seu oponente com um extintor, nariz e face se afundando a cada impacto do extintor.
Estamos falando então não só de diretores transnacionais (a geração de mexicanos se completa com Alfonso Cuarón). Estamos falando de um cinema transnacional, marcado por uma estética recorrente, capaz de arregimentar públicos de Los Angeles a Hong Kong, incluindo Cidade do México, Rio de Janeiro, Buenos Aires. Os mexicanos apostaram neste estilo para cruzar a fronteira e se internacionalizarem, basicamente pelas mesmas razões dos brasileiros do cinema da retomada: as dificuldades de produção em seus países de origem, a impossibilidade de seduzir o grande público caseiro, historicamente arredio a filmes de caráter terceiro-mundistas, na temática e estética.
“A situação mexicana não foi diferente. Com a eleição de Salinas de Gortari em 1991, o liberalismo afrouxou a presença do Estado, os investimentos em cinema despencaram, desfizeram-se a distribuidora pública Pelmex e a distribuidora Cotsa. A queda de produção foi acentuada com a entrada do México na Alca, o Tratado de Livre Comércio da América do Norte. Se, de 1984 a 1993, a produção foi de 747 longas, entre 1994 e 2003, caiu para 212 títulos. É nesse contexto, não sem afinidades com brasileiros e argentinos, que acontece a primeira fase da internacionalização de alguns diretores, tendo em vista a quase impossível equação de produzir filmes dentro de uma lógica econômica viável.” (BAPTISTA e MASCARELLO, 2008, p. 202)
A transnacionalidade de Guillermo Del Toro o leva a sucessos como Blade 2 (2002), Hellboy (2004), Hellboy 2 (2008). Alfonso Cuarón dirige um dos mais soturnos filmes da série Harry Potter: O prisioneiro de Azkaban (2004). Depois do sucesso de Amores Brutos, Iñarritu conquista os EUA com 21 gramas (2003) e Babel (2006), filme rodado em diversos países com elenco estelar.
O cinema de Iñarritu talvez seja o mais representativo deste estilo transnacional. “Suas narrativas com quebras da organização cronológica, sua câmera instável, sua enorme quantidade de cortes” (BAPTISTA e MASCARELLO, 2008, p. 208) estão em sintonia com o estilo de Quentin Tarantino (EUA), Guy Ritchie (Inglaterra), Tom Tykwer (Alemanha), John Woo (Hong Kong), Gaspar Noé (França) e Fernando Meirelles (Brasil). Diretores nascidos e criados na frente e/ou dentro da TV, do computador, das ilhas de manipulações digitais. Diretores como seus públicos, acostumados e ávidos por
“Filmes velozes, cheios de cortes, de quebras de estrutura, mas por sempre perseguirem essa performance narrativa, são menos atentos à observação das experiências, sustentando-se pelo fluxo das imagens. O investimento é na quantidade de informações visuais curtas e não na retenção de dados da realidade ali representada, construindo-se, assim, um olhar que varre o ambiente, mas parece querer evitar se instalar nele.” (BAPTISTA e MASCARELLO, 2008, p. 207)
Um público que, no final das contas, quer nada mais, nada menos do que imagens jogadas na tela.
Referências bibliográficas
BAPTISTA, Mauro e MASCARELLO, Fernando (orgs). Cinema mundial contemporâneo. Campinas, SP: Papirus, 2008
KEMP, Philip. Tudo sobre cinema. Rio de Janeiro: Sextante, 2011
LOPES, Denilson (org.). Cinema dos anos 90. Chapecó: Argos, 2005
MASCARELLO, Fernando (org.). História do cinema mundial. Campinas, SP: 2006