Um incerto Hitchcock

Como é hábito em HollywoodTopázio (Topaz, Inglaterra, 1969), de Alfred Hitchcock, foi apresentado numa sessão para pré-teste. Os espectadores têm fichas distribuídas na entrada do cinema. No final, devem anotar os seus comentários e devolvê-las. A partir das avaliações, os produtores decidem questões importantes envolvendo cenas e sequências do filme. 

A tela ilumina-se, aparecem cenas de desfile do exército em Moscou com contingentes e armamentos pesados. No final dos créditos, cena aérea do desfile e multidão. Letreiro informa: “no meio desta multidão há um funcionário do governo russo que discorda da mostra de força do seu governo e do que ele ameaça. Sua consciência em breve o forçará a tentar fugir com a família”. 

Através dos créditos, a plateia percebe que é um Hitchcock diferente: não há nenhum astro ou estrela conhecidos, como nos outros filmes do mestre. Sem Ingrid Bergman, Cary Grant, James Stewart, Grace Kelly, seus habituais colaboradores, Hitchcock trabalhou, em Topázio, com um elenco competente, mas pouco conhecido: Frederick Stafford, Philippe Noiret, Michel Piccoli, Dany Robin, Claude Jade, Roscoe Lee Browne, John Vernon e John Forsythe. 

Topázio é uma rara incursão claramente política de Hitchcock. O oficial russo citado no começo do filme conta com a ajuda de espiões americanos e foge para os Estados Unidos. Em troca de asilo político, ele revela informações sigilosas sobre a URSS, particularmente, sobre as relações com Cuba. Para checar a veracidade das informações, os americanos recorrem ao espião francês André Devereaux (Frederick Stafford). Ele controla uma rede de espionagem no país de Fidel Castro, contando com cubanos como agentes. A responsável pela rede é Juanita de Córdoba (Karin Dor), amante de André. Juanita é também amante de Rico Parra, homem forte de Castro. 

Em Cuba, André consegue informações sobre o desembarque dos mísseis soviéticos, mas é descoberto e expulso do país. Os franceses descobrem a participação de André, sua colaboração com os americanos, e exigem que ele volte à França, contando tudo que descobriu. Antes de partir, André é alertado pelos americanos: o funcionário soviético revelou que pessoas do alto escalão do governo francês são espiões duplos, fornecendo informações aos soviéticos. Se André revelar o que descobriu, os russos ficariam sabendo imediatamente. O código da operação dupla é “Topázio”. André volta à França e descobre que o espião duplo é Jacques Granville (Michel Piccoli), seu amigo de infância. Descobre mais: sua esposa está tendo um caso com Granville. 

Esta é a história a que o público assiste na pré-estreia em Los Angeles. Espionagem, infidelidade, erotismo, ações em vários países bem ao estilo 007 – estilo que o próprio Hitchcock lançou com Intriga Internacional (North by Northwest, EUA, 1959). Até aí, nada que agradasse ou desagradasse demais ao público, era mais um filme sobre a guerra fria. Os problemas do filme, para os espectadores, se evidenciaram quando assistiram à sequência final. 

Os americanos chegam a Paris para uma conferência sobre a situação soviética com Cuba. Na reunião, Jacques Granville, o espião duplo, está presente. Os americanos, já alertados por André, informam às autoridades que a reunião não pode acontecer com a presença de Granville na sala. Ele é convidado a se retirar e percebe que foi desmascarado. Corta para a sala da casa de André. Ele informa à esposa (a esta altura André já sabe do caso da esposa com seu antigo aliado) que recebeu um inusitado convite de Granville: os dois devem resolver suas desavenças através de um duelo com pistolas.  

O duelo acontece em um estádio. Alguns homens estão presentes. Um deles abre uma maleta e entrega as pistolas aos padrinhos que as repassam aos duelistas. Jacques Granville e André afastam-se, de costas um para o outro. Viram-se e apontam os revólveres. Um dos padrinhos conta até três e grita “fogo”. Corta para a arquibancada do estádio. Uma porta se abre. Um homem aponta o rifle e dispara. Granville cai morto. O espião é assassinado por “seus amigos russos.”

Alfred Hitchcock sempre foi sinônimo de bilheteria, sucesso garantido, exatamente porque conquistou o público. Disse, certa vez: “em certos casos, o happy-end não é necessário; quando se tem o público nas mãos, ele raciocinará com você e aceitará um final infeliz, com a condição de que tenha havido, no corpo do filme, suficientes elementos satisfatórios”.  

Outra condição privilegiada de Hitchcock foi o fato de ter adquirido autonomia ao longo de sua carreira, a ponto de ser dono da própria produtora. Hitchcock supervisionava a montagem de todos os seus filmes. Para garantir a supremacia na montagem, ele subverteu uma regra clássica vigente em Hollywood

“O controle das informações em Hitchcock ocorria também durante as filmagens. Normalmente, o cinema industrial nos anos 40 tinha como práxis a utilização do plano master. O diretor filmava toda a sequência em um único plano para depois decupar em detalhes aquilo que deveria ser ressaltado. Na montagem, o plano master servia como guia quanto ao ritmo, cronologia, visão total dos elementos dramáticos. Hitchcock não utilizava o plano master. Seus filmes eram decupados durante a filmagem. A montagem, por isso, só poderia efetuar-se com a presença do realizador. Se algum produtor quisesse eventualmente cortar algumas sequências, não teria opções de montagem. A autoria estava garantida por um rígido controle das informações durante as filmagens por parte do realizador.” – Heitor Capuzzo

O lendário David O. Selznick (produtor de E o Vento Levou), disse, certa vez, sobre Hitchcock: “É o único diretor que eu deixaria totalmente sozinho numa filmagem. Ele é sério, honesto, confiável: um tipo para se respeitar, embora não alguém que se convide para fazer acampamento”.

Mesmo com esta surpreendente autonomia conquistada em Hollywood, Hitchcock resolveu fazer concessões ao público presente na primeira pré-estréia de Topázio. A maioria das fichas entregues pelos espectadores detectava dois problemas. Primeiro, o filme era longo demais. Um espectador escreveu “eu não posso acreditar que este é um filme de Hitchcock. Por favor, cortem 30 minutos.”  

O segundo problema aconteceu com o final. Perguntados sobre qual cena não gostaram, os espectadores, na maioria, responderam: o duelo. Preocupado com as opiniões, Hitchcock voltou para a sala de montagem, encurtou algumas cenas e cortou outras, reduzindo o tempo do filme. A remontagem prejudicou o entendimento da trama. Ele cortou a sequência inteira de uma festa, em que aparecem André e Michelle, ao lado de Jacques Granville. Por comentários de terceiros, durante a festa, o espectador saberia que ela namorou os dois na juventude. A parte cortada deixava mais clara a reação de infidelidade da esposa, voltando para os braços do antigo namorado ao saber do caso de André com a cubana. No filme lançado, não há nenhuma menção ao fato da esposa já ter sido namorada de Granville. A infidelidade ganha um ar de vingança pelo fato de André ter uma amante e não o reatamento de uma paixão antiga, motivada pela desilusão no casamento. 

A mudança mais inesperada aconteceu no final. Hitchcock resolveu substituir o duelo. Chamou os atores novamente para as cenas abaixo descritas: 

Granville é desmascarado durante a conferência. Corte para o aeroporto de Paris. Nicole e André sobem as escadas do avião. André olha para o avião ao lado. Na escada, letras russas. Jacques Granville sobe as escadas deste avião. Ele cumprimenta André com um aceno de chapéu. No primeiro final, o espião duplo é assassinado pelos soviéticos. Agora, ele foge tranquilamente para a URSS. 

Desta vez, quem não ficou satisfeito foi o próprio Hitchcock. Escreveu um novo final, mas não tinha mais tempo para filmá-lo. Segundo François Truffaut, “o tempo urge e, sem dúvida, pela primeira vez na sua carreira, Hitchcock não sabe mais como terminar um filme”. Resolve, então, demonstrar ao público que Jacques Granville se matara. Para isso, aproveitou cenas já existentes e montou o final definitivo, que foi lançado nos cinemas: Granville é desmascarado durante a conferência. Corta para o exterior da porta da casa de Jacques se fechando. Percebe-se que alguém entrou na casa. Hitchcock não havia gravado nenhuma cena de Jacques Granville entrando em sua própria casa. Ele tinha apenas uma cena de Philippe Noiret fazendo isto, mas era impossível usá-la completamente, devido às diferenças físicas dos atores. Ele resolveu então cortar direto da sala de conferência, quando Jacques Granville é desmascarado, para um plano rápido da porta de sua casa se fechando, quando Philippe Noiret já entrara na casa. Hitchcock contava que o público já conhecia a casa de Granville e entenderia que ele acabara de fechar a porta. A câmera foca a porta e os espectadores ouvem um tiro, indicando o suicídio do espião. Um final improvisado, rudimentar, longe dos bons e velhos finais de Hitchcock. 

Topázio foi lançado oficialmente com o final descrito acima, sem o duelo e com vários cortes, atendendo aos apelos do público. O filme foi um dos maiores fracassos da carreira de Hitchcock, que já entrara em sua fase final – depois, ele faria apenas Frenesi (1972) Trama Macabra (1976). 

Ele se rendeu ao público, apesar de criticá-lo depois pela avaliação: “Os jovens americanos tornaram-se tão materialistas e cínicos que não podem mais aprovar, na tela, uma conduta cavalheiresca. Que um traidor do seu país aceite um duelo e se deixe matar, isso ultrapassa o seu entendimento”.  

A desilusão de Hitchcock com o público americano talvez seja a desilusão com o próprio cinema. Cada vez mais, os filmes passam a seguir a lógica do mercado a ponto do sucesso ser medido pelas bilheterias do primeiro final de semana de estreia. Por esta lógica, o espectador que participar das sessões de avaliações ganha poder. O público que não entende determinados finais de filmes, “exigindo” mudanças, assim como os produtores que atendem a essa agressão à arte, não estão preparados para o cinema de gênios como Hitchcock que, cavalheirescamente os chama apenas de “materialistas e cínicos”. 

Referências: 

Alfred Hitchcock: o mestre do medo. Inácio Araújo. São Paulo: Brasiliense, 1984. 

Alfred Hitchcock: o cinema em construção. Heitor Capuzzo. Vitória: Fundação Ceciliano Abel de Almeida/UFES, 1993. 

Hitchcock/Truffaut – entrevistas. François Truffaut. São Paulo: Brasiliense, 1983. 

Deixe um comentário

Preencha os seus dados abaixo ou clique em um ícone para log in:

Logo do WordPress.com

Você está comentando utilizando sua conta WordPress.com. Sair /  Alterar )

Foto do Facebook

Você está comentando utilizando sua conta Facebook. Sair /  Alterar )

Conectando a %s