
Blade runner – O caçador de androides (Blade runner, EUA, 1982), de Ridley Scott, foi praticamente ignorado pela crítica na estreia. A maioria dos especialistas elogiou apenas seus aspectos plásticos. Ridley Scott levou para o cinema a experiência adquirida como diretor de publicidade, aliando a linguagem ágil da TV com um requintado apuro fotográfico e técnico. Indiferente à crítica, o público colocou o filme no status de cult movie, criando fãs-clubes, transformando-o em objeto de pesquisas acadêmicas e elaborando infindáveis discussões acerca dos vários finais.
Nos anos seguintes à estreia, o filme foi relançado com substanciais modificações. A versão em VHS trouxe cenas adicionais. Em 1992, comemorando dez anos de lançamento do filme, Ridley Scott remontou o filme, utilizando cenas excluídas e apresentando uma versão alternativa do final: Blade runner: versão do diretor (Blade runner: the director’s cut).
Baseado no romance Do androids dream of electric sheep? (1969), de Philip K. Dick, o cenário do filme é a Los Angeles de 2019. Uma chuva interminável e ácida cai sobre a cidade, iluminada por néon e faróis de veículos que cruzam os céus, passando por gigantescos painéis publicitários. Multidões caminham pelas ruas, se espremem em bares, restaurantes e nunca veem o sol – a cidade está num estágio de total degradação ambiental. A população, formada por etnias, raças e culturas variadas, fala um dialeto estranho que oscila entre o inglês, chinês, espanhol e outras línguas. Em meio a este caos, desembarcam quatro replicantes, androides idênticos aos humanos, quase impossíveis de serem reconhecidos. Foram criados para servir ao homem em perigosas missões espaciais, mas se rebelaram e fugiram para a Terra. Deckard (Harrison Ford), um blade runner, é encarregado de matar os quatro replicantes. Em sua busca, ele encontra uma quinta replicante, Rachael (Sean Young), por quem se apaixona. No entanto, suas ordens são claras: todos os replicantes devem ser exterminados.
Blade runner é um misto de ficção científica, policial e filme de ação, miscelânea de gêneros cinematográficos que domina a produção americana a partir dos anos 70. Deckard persegue e mata os replicantes, até o clássico duelo com Roy (Rutger Hauer). Após o confronto, Deckard volta para o seu apartamento, onde Rachael o espera para fugirem. Deckard está apaixonado e se recusa a eliminá-la, mesmo recebendo ordens claras de executar todos os replicantes.
O filme trata de questão cara para os humanos e, ao que parece, para os replicantes: longevidade e mortalidade. A versão do diretor deveria ser o filme lançado originalmente, na década de 80. Mas o tom de policial futurista com abordagens psicológicas e filosóficas não agradou aos produtores. Após uma série de exibições-testes, os executivos do estúdio consideraram o filme “sombrio, deprimente e confuso”. Exigiram mudanças, cobraram um final feliz.
Atendendo às exigências, Ridley Scott cortou algumas cenas e refilmou outras. As principais alterações, feitas para a versão lançada comercialmente no início dos anos 80, foram:
1. Narração em off de Deckard é inserida, o filme passa a ser narrado na primeira pessoa. Harrison Ford foi chamado para fazer a narração depois de seu trabalho concluído e, a princípio, se recusou a gravá-la. Pressionado, acabou cedendo, fazendo a narração num tom desinteressante e frio. As alterações do filme foram, inclusive, motivo de discórdia entre Ford e o diretor Ridley Scott. Em entrevista à Folha de São Paulo (novembro de 2000), o ator demonstra sua indignação:
“Não fui um grande fã do filme. Faço um detetive que não investiga. Abro quatro portas (risos). Fui obrigado a fazer aquela narração ridícula. O primeiro roteiro que recebemos tinha uma narração muito longa. Eu disse que aquilo atrapalhava a participação do público. Vamos pegar as informações da narração e colocá-las dentro das cenas. Mostre, não conte. Trabalhamos nisso com um roteirista por três semanas dentro da minha mesa de cozinha e muito pouco disso restou. O filme é um exercício de ‘design’, espetacular para olhar, mas sem apelo emocional.” – Amir Labaki.
2. Deckard está em seu apartamento. Ele toca piano, adormece e sonha com um unicórnio. Esta cena foi retirada da versão comercial, lançada nos anos 80. A retirada do “sonho com o unicórnio” torna sem sentido uma das cenas finais do filme. O policial Gaff tem o hábito de fazer origamis e deixá-los por onde passa. No final do filme, quando Deckard e Rachael estão fugindo do apartamento, Deckard encontra um origami de unicórnio no chão do apartamento (esta cena foi mantida nas duas versões). Assim, ele sabe que Gaff esteve ali e a poupara. Mas porque um unicórnio? Segundo o Dr. Tyrell, os replicantes têm memória implantada. O origami do unicórnio simboliza que Gaff sabia dos sonhos de Deckard. Portanto, está aberta a possibilidade do blade runner ser um replicante. Ao retirar o sonho da versão comercial, Ridley Scott e os produtores eliminaram esta possibilidade de conclusão para o público.
3. A principal modificação pedida pelos produtores foi um final feliz para o filme. A versão do diretor termina com Deckard e Rachael entrando no elevador. A porta se fecha. Fade-out. Na versão comercial, os dois entram no elevador. A porta se fecha. Corta para cena de uma estrada. Deckard está dirigindo, com Rachael ao lado. Ao fundo, montanhas, o sol, não há mais a chuva ácida de Los Angeles. A estrada é bela e ensolarada. Ouve-se a voz de Deckard, relatando o que o Dr. Tyrell revelara. Rachael tinha tempo de vida indeterminado. As cenas da estrada foram feitas com sobras do filme O iluminado (The shining, EUA, 1980), de Stanley Kubrick. Enquanto dirige pela bela paisagem, Deckard revela que ela não era uma replicante comum, com apenas cinco anos de existência. Como os humanos, ela não sabia o seu tempo de vida. O tom pessimista dá lugar ao otimismo, à beleza da paisagem, ao amor. Happy-end.
O final feliz difere, inclusive, do romance de Philip K. Dick, em que o filme é baseado. “No texto de Dick, não há happy-end” – Amir Labaki.
Ridley Scott chegou a cogitar outras versões para o final. Uma versão mostra os dois fugindo de automóvel do policial Gaff. Em outras, Rachael se mata ou é morta por Deckard. No entanto, o diretor afirmou em entrevistas que o verdadeiro final é o que consta da versão do diretor.
O relançamento de Blade runner em 1992, com vinte minutos a mais de cenas e final diferente, aconteceu graças a John Rendall, na época um estudante de 23 anos. Ele pesquisou durante três meses os arquivos da Warner e encontrou as cenas cortadas do filme original. Entrou em contato com o diretor e nasceu assim a ideia do que hoje é prática comum: lançar a versão do diretor. Em alguns casos, apenas estratégia de marketing, fornecendo ao espectador benefício para consumir um “novo filme.”. Em outros, como em Blade runner, a possibilidade do diretor resgatar um clássico e afirmar quem é o verdadeiro autor no cinema.
Referência: Folha conta 100 anos de cinema. Amir Labaki (org.) Rio de Janeiro: Imago Editora, 1995.