
Em 1971, a crítica de cinema Pauline Kael escreveu ensaio sobre a concepção do roteiro do filme Cidadão Kane (Citizen Kane, EUA, 1941), acirrando uma polêmica: a verdadeira autoria do roteiro do filme. A ficha técnica credita o roteiro a Herman J. Mankiewicz e Orson Welles, nessa ordem. A direção, todos sabem, é de Orson Welles.
Pauline Kael defende que o argumento e o roteiro são de autoria de Herman J. Mankiewicz. Orson Welles teria apenas sugerido, por telefone ou carta, pequenas mudanças. “Orson Welles não estava por perto quando Cidadão Kane foi escrito, no início de 1940”.
A secretária de Mankiewicz que acompanhou o trabalho do autor do “primeiro ao último parágrafo… diz que Welles não escreveu (nem ditou) uma linha do roteiro de Cidadão Kane”. Era comum, nessa época, produtores e diretores assinarem argumentos e roteiros, juntamente com o escritor do filme. Isso se devia às constantes alterações que sugeriam, à liberdade que o diretor sempre teve de improvisar durante as filmagens e à prática do produtor de determinar cortes ou refilmagens de sequências inteiras. Acabavam se sentindo também donos da ideia.
Mankiewicz tentou impedir que Orson Welles fosse creditado como roteirista do filme. Acionou a justiça, mas o máximo que conseguiu foi que seu nome aparecesse primeiro nos créditos. A relação piorou na noite de entrega do Oscar. O filme foi indicado em 8 categorias, incluindo diretor e ator, mas conquistou apenas o prêmio de roteiro. Segundo a análise de Pauline Kael, Welles ganhou um prêmio pelo roteiro que não escrevera.
“Os membros do Mercury não ficaram surpresos com o fato de Welles assumir crédito pelo roteiro; tinham experiência com essa fraqueza dele. Bem no início de sua vida como prodígio, ele parece ter caído na armadilha que já colheu muitos homens menores – acreditar em sua própria publicidade, acreditar que era mesmo o criador completo, produtor-diretor-escritor-ator. Como podia fazer todas essas coisas, imaginava que as fazia”. – Pauline Kael.
Orson Welles ficou furioso com Pauline Kael. Escreveu uma longa carta, publicada em jornais e revistas, defendendo sua participação no roteiro do clássico.
Em 1971, ano de publicação do ensaio, Pauline Kael estava consagrada como uma das maiores críticas. Foi uma boa briga, pois Orson Welles também já gravara seu nome na história do cinema.
É impossível separar a concepção e estrutura narrativa de Cidadão Kane, definidas no roteiro, com as revoluções criativas e tecnológicas da direção e montagem. O filme é uma conjunção de talentos, incluindo a música, os efeitos sonoros, a fotografia revolucionária de Gregg Toland.
Quase ao final de seu ensaio, Pauline Kael disserta sobre o trabalho do diretor de cinema.
“O diretor deve estar no comando não porque seja a única inteligência criativa, mas porque só assim pode liberar e utilizar os talentos de seus colaboradores, que definham (como eles próprios) nas produções do tipo fabril. A melhor interpretação a dar quando um diretor diz que um filme é totalmente seu não é que tenha feito tudo sozinho, mas que não sofreu interferências, que fez as opções e decisões últimas, que a coisa toda não é uma concessão infeliz pela qual ninguém é responsável; não que ele foi o único criador, mas quase o contrário – que teve liberdade de usar as melhores idéias apresentadas.”
Referência: Criando Kane e outros ensaios. Pauline Kael. Rio de Janeiro: Editora Record, 2000.