Num ano de 13 luas

O filme tem uma das sequências mais difíceis de assistir do cinema. Elvira guia Zora por um frigorífico, lembrando de sua antiga profissão, quando ainda era Erwin. O diálogo em off é acompanhado por uma sucessão de bois sendo executados, as cabeças cortadas, sangue jorrando pelo chão, os funcionários descamando as vítimas. Aterrador. 

A narrativa acompanha cerca de trinta dias na vida de Elvira, em 1978, começando quando ela é agredida por um grupo de homens em um parque e, logo depois, sendo abandonada por seu namorado. A reconstituição da vida da protagonista é feita através de longas narrações, entrecortadas por seus encontros com pessoas que marcaram sua vida: sua ex-esposa e filha, sua amiga Zora, Anton Saitz, um antigo amigo que foi decisivo na transformação de Elvira. 

As imagens de Fassbinder beiram o surrealismo, retratando os personagens de forma caricata, com comportamentos entre alegóricos e deprimentes. Num ano de 13 luas foi inspirado no ex-amante de Fassbinder que se suicidou antes da produção do filme. Fique com a narrativa do diretor que abre a película, pontuando o nome e o tema desta obra ousada e polêmica. 

“A cada sete anos chega um Ano da Lua. Aqueles que deixam suas emoções influenciar suas vidas sofrem depressões ainda mais intensas nesses anos. Em menor medida, o mesmo pode ser dito dos anos com 13 luas novas. Quando um Ano da Lua também tem 13 luas, podem acontecer tragédias pessoais inevitáveis. No século XX, essa perigosa constelação ocorre num total de seis vezes. Uma delas em 1978. Antes disso, ocorreu em 1908, 1929, 1943 e 1957. 1992 também será um ano em que as vidas de muitas pessoas estarão ameaçadas.”

Num ano de 13 luas (In einem jahr mit 13 monden, Alemanha, 1978), de Rainer Werner Fassbinder. Com Volker Spengler (Elvira), Ingrid Caven (Zora), Gottfried John (Anton Saitz), Elisabeth Trissenaar (Irene). 

Lola

1957. A jovem e bela Lola é cantora e prostituta em um bordel. Seu amante e protetor é Schuckert, importante construtor da região da Baviera que consegue contratos corrompendo os principais políticos, incluindo o prefeito, frequentador assíduo do cabaré. Esse lucrativo esquema ameaça ser rompido com a chega do honesto Von Bohm para assumir o cargo de Secretário de Obras da cidade. 

Fassbinder, como uma homenagem, faz a releitura do clássico O anjo azul (1930). Após ser ofendida em uma noite por Schuckert, Lola começa um jogo de sedução com Von Bohm, escondendo sua condição. O honesto cidadão se apaixona pela cantora e as reviravoltas da trama incluem a subversão de seus princípios morais e éticos.

O tema do filme é a Alemanha do pós-guerra que busca se reerguer economicamente, tem que reconstruir suas cidades. O bordel é o símbolo político deste tempo, lugar onde todos se vendem, incluindo políticos, empresários, idealistas como o socialista Esslin e os íntegros como Von Bohm. 

Lola (Alemanha, 1981), de Rainer Werner Fassbinder. Com Barbara Sukowa (Lola), Armin Mueller-Stahl (Von Bohm), Mario Adorf (Schuckert), Mathias Fuchs (Esslin).

Queima de livros

A trama de Fahrenheit 451 (França, 1966), de François Truffaut, se passa em um futuro indefinido. Um regime totalitário proibiu os livros, o leitor que ousa desafiar a lei é preso e reeducado. O argumento do governo é que livros incentivam a fantasia, sonhos, romances, tornando os cidadãos infelizes pois almejam coisas que não podem alcançar. Algumas pessoas insistem em manter bibliotecas clandestinas. Quando descobertas, os bombeiros são acionados, invadem as casas e queimam todos os livros. Daí o título do filme: fahrenheit 451 é a temperatura de queima do papel. Montag, um bombeiro, guarda alguns livros para ler escondido. Ele começa a questionar esse estado e tem acesso a uma sociedade secreta, cujo objetivo é preservar a memória da literatura.

O filme é baseado no romance homônimo de Ray Bradbury. O enredo enfoca dois grandes inimigos dos livros: o fogo e o homem. O livro A longa viagem da biblioteca dos reis, de Lilia Moritz Schwarcz, narra o terremoto que assolou Lisboa, em 1755. A Biblioteca Real de Portugal, que contava com cerca de 70 mil livros, foi praticamente destruída pelo terremoto.

“Mas o fogo teimou em ser democrático e destruiu a todos e a tudo: diante do papel, as chamas foram implacáveis, reduzindo os documentos a cinza e pó. Depois do terremoto, Portugal acordou em luto por suas gentes, em pranto por suas moradas e monumentos – e com certeza menos culto: foram-se os livros e documentos e ficaram apenas as lembranças desse catálogo maravilhoso, dessa biblioteca exímia em classificações e nas lógicas que opunham de forma cartesiana títulos, temas e formatos.”

Nesse caso, o inimigo implacável é a natureza. O outro inimigo, o homem, também se serve do fogo para destruir. O nome da rosa (1980), de Umberto Eco, é uma história de detetives em homenagem a Sherlock Holmes, mas o tema central são livros proibidos na Idade Média. Em um mosteiro, os monges guardam os livros em uma biblioteca labiríntica. Misteriosos assassinatos acontecem ao redor de um determinado livro. No final, a imensa biblioteca é consumida pelo fogo enquanto hereges são queimados do lado de fora do mosteiro pela Inquisição. A igreja, sentindo-se ameaçada, queima livros e homens.

Volto a um trecho de A longa viagem da biblioteca dos reis.

“A história mostra como essas livrarias foram e continuam sendo destruídas, seja por motivos naturais ou por conta da razão instável dos homens. E, cada vez que uma caía, tombava com ela uma parte da civilização. Foi assim com Alexandria, que durou apenas um século, e com ela – com seus 700 mil volumes – desapareceu parte do conhecimento disponível sobre a Grécia. Não por acaso os ingleses queimaram a Biblioteca do Congresso em 1814, e um novo acervo cultural teve de ser construído. Foi assim quando Monte Cassino foi bombardeada, durante a Segunda Guerra Mundial, e perdeu-se boa parte do conhecimento sobre a Europa Medieval. E, não faz muito tempo, a destruição da Biblioteca Nacional do Camboja, pelo Khmer Vermelho, levou consigo o maior estoque de informações sobre a civilização cambojana. Por sinal, esse era o objetivo de seus algozes, que pretendiam reduzir o passado a zero e recomeçar do nada: criar uma memória; inventar de novo uma mesma nação. Não por acaso destruíram 80% dos livros e mataram 57 dos seus sessenta bibliotecários. Como se vê, a história das bibliotecas é antiga e feita de destruições, mais ou menos intencionais. Mas a repetição pede atenção e a insistência em queimar revela o objetivo de liquidar memórias e de tudo recomeçar.”

No filme de Truffaut, os personagens terminam recitando uns aos outros trechos de seus livros favoritos. A forma que encontraram de preservar a memória que deveria estar nos livros.

“Livros guardam memórias e encantamentos, e se travestem. Perturbam e excitam a fantasia, e às vezes irmanam o sonho com ação. Por isso trazem tanto medo e pedem reação.” – Lilia Moritz Schwarcz.