A revolução do cinema sonoro

Estamos entre 1920 e 1930 do século XX. O público quebra as cadeiras do cinema de tanto rir diante das peripécias mímicas de Carlitos/Charlie Chaplin. Épicos do cinema como Ben-Hur nos EUA e Cabíria, na Itália, deslumbram o público com reconstituições de época grandiosas. O cinema clássico consolida suas estratégias narrativas distribuídas em gêneros que lotam as salas de cinema, como melodramas, faroestes e filmes policiais. O gênero terror ganha dimensões estéticas assustadoras com a ousadia dos expressionistas alemães. A poesia inunda os olhos e os corações de pessoas sensíveis em frente a um filme impressionista francês. Eisenstein e seus colegas vanguardistas mostram ao mundo que um cinema potente ideologicamente surgia, com sequências espetaculares como a da “escadaria de Odessa”, em o Encouraçado Potemkin. Luis Bunuel assombra os espectadores com a faca cortando o olho da mulher na incursão surrealista de O cão andaluz. Muito mais acontece mundo afora, consolidando o cinema como uma potência visual, afinal, todos esses filmes eram mudos, alguns evitando até mesmo o uso de cartilhas. 

Em meio a esse turbilhão criativo, estreia, em 1927, nos Estados Unidos, O cantor de jazz, primeiro filme com diálogos e canções da história do cinema. A revolução, anunciada na profética frase dita por Al Jolson após interpretar a canção Dirty hands, dirty faces, diante do público extasiado: “Vocês ainda não ouviram nada.”

“Talvez seja difícil para o espectador moderno compreender o impacto dessa produção. Baseada na peça teatral de Samson Raphaelson, essa história altamente piegas do filho de um cantor judeu que contraria o próprio pai com seu desejo de cantar ‘jazz’ – a definição de jazz do filme compreende baladas sentimentais e apresentadas à moda antiga, em que os cantores pintavam seus rostos de preto – não é exatamente um filme falado. Há uma trilha sonora, mas com exceção de duas sequências, o diálogo é apresentado por intertítulos. Contudo, o segredo do seu sucesso está justamente nas duas cenas faladas.” – Philip Kemp

O impacto desta trama simples, um melodrama como tantos outros da era muda, com estas duas cenas faladas, foi arrebatador. A Warner Bros foi a pioneira e decidiu equipar todos os seus cinemas para exibição dos filmes falados. As outras majors seguiram os passos, desenvolvendo seus próprios sistemas sonoros, além de reestruturarem diversas produções em andamento, adaptando roteiros de filmes mudos já em fase de filmagens para produções sonoras. Essa história é contada de forma divertida, irreverente, no clássico Cantando na chuva (Singin in the rain, EUA, 1952), de Gene Kelly e Stanley Donen. A trama do filme se passa em 1926/27. Don Lockwood (Gene Kelly) é um astro do cinema mudo, faz par romântico com a também estrela Lina Lamont (Jean Hagen) em diversos filmes. No meio da produção de um filme do gênero capa e espada, O cantor de jazz estreia. Os produtores decidem transformar a história em um filme falado. Seguem-se uma série de situações hilárias, provocadas pelas tentativas de entender os procedimentos técnicos para se gravar sons no estúdio, incluindo diálogos. As falas beiravam o ridículo, como uma sucessão de “I love you, I love you, I love you….” pronunciada por Don em uma cena de idílio romântico com Lina. Um espectador na sala de cinema rebate de pronto: “Pagaram alguém para escrever isto?”.  Depois da desastrada sessão de teste, resolve-se pela inusitada proposta de transformar o filme em um musical. Produtores, direção e elenco deparam-se então com um problema que sepultou a carreira de muitos atores e atrizes na transição para o cinema falado: a voz de Lina Lamont, estridente, esganiçada, impossível de ser ouvida através dos potentes alto-falantes das salas de cinema. A solução é a dublagem, a aspirante a atriz Kelly Selden (Debbie Reynolds) foi incumbida de emprestar sua voz à estrela Lina. 

“A princípio, os filmes sonoros eram pouco naturais, porque o equipamento era incômodo e o público ouvia conversas forçadas, pessoas cantando, portas batendo e cachorros latindo. Os filmes se desenvolviam, em grande parte, em ambientes fechados, porque os cineastas precisavam de silêncio para registrar vozes.” – Mark Cousins.

A revolução técnica de O cantor de jazz exigiu também revoluções estéticas e narrativas que, claro, aconteceram nos anos seguintes, transformando o cinema na potência narrativa que impera até hoje: imagem e som em perfeita sintonia. 

“Os cineastas descobriram que o som podia tornar seus filmes mais intimistas ao deixar que os personagens expressassem seus sentimentos. Eles usaram o som como um imã para puxar as pessoas para dentro de seus filmes, para as cenas e para as interações emocionais. O público começou a sentir que podia estar com os astros do cinema não só em suas fantasias, mas também em sua vida comum. O som foi  ‘a descoberta que deteve o cinema em sua estrada real’. De repente, a imagem não era o principal.” – Mark Cousins 

Rouben Mamoulian foi um desses cineastas inovadores. Em 1929, ele dirigiu Aplauso que conta a história de uma artista de teatro que sacrifica sua carreira pela filha, mais um melodrama. Mamoulian foi o primeiro a usar o som para refletir perturbações psicológicas dos personagens. Em uma montagem ousada, a filha está no convento, onde impera o silêncio. Corta para sons e imagens do trânsito e da vida turbulenta das ruas de Nova Iorque. Segundo Mark Cousins, o diretor Rouben Mamoulian ousou ao gravar pela primeira vez sons simultâneos em uma sequência, quando mãe e filha entoam cânticos em ambientes diferentes. “A equipe de som de Mamoulian disse-lhe que a oração e a cantiga de ninar não poderiam ser feitas simultaneamente, já que seria possível ouvir apenas uma delas, ou uma combinação das duas, mas não ambas claramente.” Mamoulian ordenou então que os técnicos usassem dois microfones, uma para cada atriz e depois os combinassem no processo de montagem.  Estava aberto o processo para o desenvolvimento da montagem sonora, ou design sonoro, permitindo ao público ouvir sons combinados da ação, dos ambientes, ruídos de fundo, enfim, toda a paisagem sonora que faz parte da vida cotidiana. Com o avanço das técnicas sonoras, das criativas estratégias narrativas de se contar histórias usando a força sonora e imagética, a vida finalmente invade as telas de cinema e prendem de vez o espectador na cadeira. 

O cantor de jazz (The jazz singer, EUA, 1927), de Alan Crosland. Com Al Jolson, Mary McAvoy, Warner Oland, Eugenie Besserer. 

Referências:

História do cinema. Dos clássicos mudos ao cinema moderno. Mark Cousins. São Paulo: Martins Fontes, 2013

Tudo sobre cinema. Philip Kemp (editor geral). Rio de Janeiro: Sextante, 2011

Vocês ainda não ouviram nada. A barulhenta história do cinema mudo. Celso Sabadin. São Paulo: Lemos Editorial, 2000

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