O cinema poético experimental de Kieslowski

Gosto do Kieslowski poético da trilogia das cores e, principalmente, do belo Não amarás (1988). Mesmo trabalhando no aspecto político-experimental, o diretor polonês não deixa de lado o cinema de poesia.

Cinemaníaco (Amator, Polônia, 1979) retrata Lodz, cidade do cineasta. Filip, funcionário de uma fábrica, compra uma câmera de cinema e faz filmes caseiros. Os filmes agradam ao diretor da empresa que passa a financiá-lo e também a controlar as produções de Filip. Sugere fitas favoráveis ao partido, à cidade, determina cortes de cenas. Visto assim, Cinemaníaco pode ser um simples filme sobre ditadura e censura no leste europeu. É mais do que isso.

Filip fica aos poucos obcecado com as imagens cotidianas que capta. Trabalhadores em frente a sua casa. Um operário da fábrica – deficiente físico, em seu dia-a-dia de trabalho e lazer. As fachadas de prédios de sua cidade pintadas para impressionar na TV. No momento das filmagens, é um Filip entusiasta, alegre, ingênuo. A câmera na mão, enquadrando as paisagens urbanas e seus personagens. À medida que vê as imagens projetadas, o personagem se transforma em um Filip reflexivo, amargurado. Consciente de sua incapacidade, busca sentido em debates sobre cinema. Aos poucos, a vida tranquila com a qual sonhara desmorona. Sua mulher o abandona e o único gesto de que Filip é capaz, neste momento, é enquadrá-la com as mãos, simulando a câmera de cinema.

Filip pode ser o alter-ego do cineasta, não apenas de Kieslowski, mas de todos os verdadeiros cineastas que conseguem revelar a poesia de imagens brutas, como trabalhadores nas ruas ou operários na fábrica. O anão, quando se vê na tela, abandona a sala de exibição (sala de sua própria casa) e diz a Filip: “é a coisa mais bonita que já vi na vida, eu preciso sair”. Precisa ir para as ruas se defrontar com a sua realidade, não aquela do cinema em que se viu.

“Esse fascínio pela observação da vida cotidiana revela a visão do mundo do cineasta, oferecendo indícios sobre a sua poesia cinematográfica. (…) O cineasta assume um papel como de um observador da realidade (enquanto rede sígnica), utilizando o instrumento próprio do cinema (concreto e onírico, ao mesmo tempo) para tentar reproduzir a ambiguidade, a incerteza e a imprevisibilidade da vida cotidiana e, principalmente, dos seres humanos (transformados em personagens).” Erika Savernini

Krzysztof Kieslowski disse em entrevista que o ambiente político era apenas um cenário de fundo em seus filmes. “Mesmo os documentários em curta-metragem eram sempre sobre pessoas, sobre como são.” Ou como poderiam ser, base da narrativa de  Acaso (Przypadek, Polônia, 1987).

Witek é um jovem estudante de medicina. Após a morte do pai, abandona o curso, “perde a vocação”. Resolve ir para Varsóvia e corre atrás do trem na estação, conseguindo entrar no último instante. Esse incidente, a corrida pela estação, é o elo de ligação entre três possíveis destinos para o personagem. E mostra, mais uma vez, o domínio de Kieslowski sobre a narrativa do cinema.

Na primeira parte do filme, Witek consegue pegar o trem, embarca para Varsóvia e encontra sua vocação em um burocrata servidor político do regime. Voltamos então à cena da estação. Witek não consegue pegar o trem, derruba um guarda da estação, é preso e acaba como um subversivo, combatente do regime. Mais uma vez na estação. Witek não consegue pegar o trem, mas não derruba o guarda. Ele encontra na plataforma uma colega de medicina, volta para a universidade e se casa com a estudante, começando uma proeminente carreira de médico.

Mais do que um estudo a respeito dos acasos que podem transformar nossos destinos, Kieslowski experimenta os acasos da narrativa cinematográfica. Se o diretor abrisse o plano na primeira sequência da plataforma da estação de trem, veríamos que os personagens que influem em seus destinos estão presentes em todas as três sequências: o trem, o guarda, a colega de escola. A cada sequência da estação, Kieslowski muda ligeiramente os ângulos, os planos, insere os mesmo inserts, mas com perspectivas diferentes. Nas duas primeiras tentativas de pegar o trem, Witek e os espectadores não vêem a jovem estudante. Na terceira, um corte seco mostra que ela esteve ali, observando-o em todas as tentativas.

O diretor é quem escolhe, através de uma simples mudança de ângulo de visão, o destino de seu personagem. Define as possibilidades perceptivas do espectador, fazendo-o participar do jogo narrativo. Nos três destinos de Witek, os mesmos personagens se cruzam nos mesmos ambientes, porém, com destinos alterados. Cabe ao espectador juntar as peças.

“Quando eu ainda estava na escola de cinema, meus amigos e eu frequentemente fazíamos um jogo que era muito simples, mas que requeria integridade. No caminho para a escola, pela manhã, nós tínhamos que coletar pontos. Se você visse alguém sem um braço você conseguia 1 ponto, sem dois braços 2 pontos… (…) Nós fizemos esse jogo por muitos anos. Existiam outras coisas também que nós observávamos com uma certa paixão. Eu comecei a tirar fotos então…(…) Eu amava tirar fotos. E sempre os objetos das fotos eram pessoas velhas, pessoas contorcidas, olhando ao longe, sonhando ou pensando sobre como as coisas poderiam ter sido, e reconciliadas com o modo como são.” Erika Savernini

Através dessa singular observação da realidade, Kieslowski construiu seu cinema poético. A simplicidade desta construção está no gesto do personagem Filip, de Cinemaníaco: a poesia está nos olhos dele, basta apenas colocar uma câmera entre eles e a realidade.

REFERÊNCIA: Índices de um cinema de poesia. Pier Paolo Pasolini, Luis Buñuel e Krzysztof Kieslowski. Erika Savernini. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2004

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