Nos corredores

Difícil imaginar um filme atraente e fascinante transcorrido quase que inteiramente dentro de uma loja de departamentos. Mas logo no início de Nos corredores essa sensação desaparece. Começa com cenas silenciosas de uma estrada, corta para os corredores vazios da loja de departamentos, entram quadros quase estáticos e ainda silenciosos, imagens de empilhadeiras, prateleiras repletas de produtos, freezers…

Corta para Christian em seu primeiro dia de trabalho, sendo entrevistado por Rudi, responsável pelo turno noturno da empresa. Christian começa como ajudante de Bruno, um experiente operador de empilhadeiras do setor de bebidas. Pouco depois, entra em cena Marion, funcionária de outro setor. É o plot twist da narrativa: os dois desenvolvem um estranho relacionamento marcado também pelo silêncio, pelos gestos, por olhares e frases rápidas na sala de café. Paixão que se anuncia. 

O filme trata dessas relações de trabalho movidas pelo companheirismo, pelo afeto, pela ajuda nas pequenas dificuldades cotidianas, pela amizade. Fora do trabalho, a vida desses personagens é quase desconhecida entre eles, misteriosa, esconde problemas muito mais difíceis de compartilhar. 

O diretor Thomas Stuber trata de tudo com sensibilidade, permitindo ao espectador conhecer lentamente cada um dos personagens. Voltemos ao início do texto. Difícil imaginar um filme atraente e fascinante transcorrido quase que inteiramente dentro de uma loja de departamentos. Bem, assista Nos corredores e se deslumbre com o poder da imagem nas mãos de realizadores sensíveis, como Thomas Stuber, capaz de captar a poesia de uma empilhadeira se movendo pelos corredores. 

Nos corredores (In den gangen, Alemanha, 2018), de Thomas Stuber. Com Franz Rogowski (Christian), Peter Kurth (Bruno), Sandra Huller (Marion), Andreas Leupold (Rudi). 

A mulher de um espião

Kobe, Japão, 1940. Yusaku, um próspero comerciante de tecidos ajuda um de seus clientes ingleses, preso por suspeita de espionagem, a sair da cadeia. Aparentemente, ele não se preocupa com questões políticas, tem por hobby produzir filmes caseiros de gênero protagonizados por Satoko, sua esposa. Os dois vivem um casamento apaixonado e feliz. Tudo muda quando Yusaku volta de uma viagem de negócios à Manchúria, junto com uma mulher que, pouco depois, é assassinada. 

A virada do roteiro transforma A mulher de um espião em uma complexa narrativa envolvendo crimes biológicos perpetrados pelos militares. A trama é baseada em fatos históricos: os militares japoneses mantiveram na Manchúria a Unidade 731, centro de pesquisa médica que praticava experimentos biológicos em prisioneiros de guerra. 

Quando confronta seu marido sobre a viagem e seu possível caso de infidelidade, Satoko assume o protagonismo da trama. A transformação de sua personagem é o grande destaque deste thriller que mistura erotismo, romance, espionagem e atos bárbaros de oficiais nacionalistas. A surpresa próxima ao final traz ainda uma referência às possibilidades narrativas do cinema. 

A mulher de um espião (Supai no tsuma, Japão, 2020), de Kiyoshi Kurosawa. Com Yu Aoi (Satoko Fukuhara), Issey Takanashi (Yusaku Fukuhara), Ryota Bando (Fumio), Masahiro Higashide (Taiji). 

Love steaks

Clemens chega a um hotel de luxo, é inverno, ele acaba de ser contratado como massagista. Lara é ajudante do chef de cozinha, bem-humorada, irreverente, mas é alcoólatra. Os dois jovens começam um relacionamento, a princípio como amigos que se ajudam no cotidiano no trabalho, depois como namorados, relacionamento marcado também pela irreverência, por brincadeiras eróticas nas dependências do hotel. 

O diretor Jakob Lass assume a inspiração no Dogma 95 em seu filme. O casal de protagonistas é interpretado por profissionais, todos os outros atores e atrizes são funcionários do hotel onde a película foi filmada. A linha tênue da narrativa, sem grandes atrativos, é compensada por improvisos e ousadas cenas de nudez. Lara chama a atenção com sua energia e vivacidade,entregando-se ao álcool muito mais como uma proposta de vida. 

Love steaks (Alemanha, 2013), de Jakob Lass. Com Franz Rogowski (Clemens) e Lara Schemelling (Lara).

Tempestade

O documentário reconstitui o pesadelo vivido por duas mulheres mexicanas. Miriam foi presa a caminho do trabalho, acusada de fazer parte de uma gangue de tráfico de pessoas. Ela relata seu cotidiano nas prisões, principalmente quando foi enviada para uma prisão comandada por traficantes de drogas que exigiam pagamento mensal das detentas para que não fossem violentadas. 

Adela, artista de circo, narra o sequestro de sua filha pela mesma gangue de tráfico de pessoas. Seus depoimentos revelam que as investigações apontaram para o envolvimento de importantes  membros da polícia federal, além de jovens filhos de políticos (a filha de Adela namorava um desses jovens). 

À medida que os relatos das duas mulheres acontecem, de forma alternada, as histórias se completam. Na época, forte pressão social exigia das autoridades combate efetivo ao tráfico de mulheres. A prisão de Míriam, junto com outras pessoas, foi uma farsa para tentar apaziguar as pressões. 

A diretora Tatiana Huezo mergulhou na história das duas mulheres, compondo um painel de um México violento, dominado pela corrupção política, pela injustiça e pela impunidade. Os relatos, acompanhados de imagens documentais do cotidiano da sociedade, são profundamente tristes mas, por vezes, anunciam esperança. 

Tempestade (Tempestad, México, 2016), de Tatiana Huezo.

Força maior

O casal Tomas e Ebba passa férias em uma estação de esqui junto com seus dois filhos, as crianças Vera e Harry. Durante um almoço no restaurante do hotel, uma pequena avalanche provoca correria no restaurante. Passado o susto, a relação do casal entra em uma espiral de crise, provocada pela atitude de Tomas durante a avalanche. 

O diretor Ruben Ostlund já conquistou por duas vezes a Palma de Ouro em Cannes com The square: a arte da discórdia (2017) e Triangle of sadness (2022). O apuro visual e os planos lentos, marca do diretor sueco, são o destaque de Força maior, uma profunda e, por vezes, divertida, discussão a respeito da masculinidade. Os longos silêncios durante as práticas de esqui nas montanhas, fotografadas em uma perturbadora claridade, reforçam a sensação de progressiva crise depressiva que acompanha Tomas e Vera.

Força maior (Turist, Suécia, 2014 ), de Ruben Ostlund. Com Johannes Bah Kuhnke (Tomas), Lisa Loven Kongsli (Ebba), Clara Wettergren (Vera), Vincent Wettergren (Harry), Kristofer Hivju (Matts), Fanni Metelius (Fanny). 

Era uma vez um sonho

Vez por outra o espectador se depara com filmes que se destacam apenas pela forte atuação dos protagonistas. É o caso de Era uma vez um sonho, cujo destaque reside na interpretação de Glenn Close, indicada ao Oscar de Atriz Coadjuvante pelo papel de Mamaw, uma avó, fortemente maquiada, que assume os cuidados de seu neto, Vance.

A história, baseada em fatos reais, segue o ponto de vista de Vance, primeiro na infância, quando passava férias com os avós, depois como um jovem advogado, morando com a família em Ohio. O tema central são as conturbadas relações familiares, marcadas por sugestões de abusos domésticos, alcoolismo e profundas crises depressivas. Sem grandes destaques narrativos, a história segue os contornos do melodrama familiar, centrados na relação entre Vance e sua mãe, que luta contra a depressão e o alcoolismo. 

Era uma vez um sonho (Hillbilly Elegy, EUA, 2020), de Ron Howard. Com Amy Adams (Bev), Glenn Close (Mamaw), Gabriel Basso (Vance), Haley Bennett (Lindsay), Bo Hopkins (Papaw).  

Thelma

A  jovem Thelma estuda em uma universidade de Oslo. É a primeira vez que se afasta dos pais, que a criaram sob uma fervorosa doutrina religiosa. Thelma se sente atraída por Anja, as duas começam uma relação amorosa ao mesmo tempo em que Thelma começa a sofrer estranhas convulsões. 

O suspense, com toques sobrenaturais, dita o tom da narrativa. Thelma esconde um trauma de sua infância, sugerido em uma impactante cena inicial. Durante as convulsões, estranhos acontecimentos afetam as pessoas com quem ela se relaciona. Desejos reprimidos podem estar no cerne dessas manifestações, passo a passo a relação entre Thelma e seus pais apontam que o desejo de libertação pode despertar certos demônios. 

Thelma (Noruega, 2017), de Joachim Trier. Com Eili Harboe (Thelma), Kaya Wilkins (Anja), Henrik Rafaelsen (Trond), Ellen Dorrit Petersen (Unni). 

Perfil de uma mulher

A narrativa é uma jornada temporal entre dois momentos na vida de Ichiko. Ela trabalha como cuidadora de idosos, cuidando da avó de duas jovens, Motoko e Yoko. Um dia, Yoko é sequestrada a caminho da escola e o principal suspeito é o sobrinho da cuidadora. A partir daí, a vida de Ichiko entra em uma espiral de intrigas, suspeitas e vingança.

O diretor Koji Fukada mistura  presente e futuro à medida que a investigação do sequestro se desenrola, levando o espectador a um intrincado exercício de entendimento da trama. A obsessão da jovem Motoko por Ichiko funciona como uma espécie de propulsão para os acontecimentos nestes dois tempos. 

Um ponto que merece destaque na trama é o repulsivo tratamento da mídia na cobertura do sequestro, julgando e condenando, como sempre, os envolvidos diante das câmeras, Destaque também para a interpretação de Mariko Tsutsui. Sua personagem transita pelos dois tempos de forma contida, às vezes resignada, outras vezes decidida a se vingar, mas sempre de forma compassiva, participando, mas, também, observando de forma cuidadosa o desenrolar dos acontecimentos. 

Perfil de uma mulher (Yokogao I, Japão, 2019), de Koji Fukada. Com Mariko Tsutsui (Ichiko), Mikako Ichikawa (Motoko), Sosuke Ikematsu (Kazumichi), Nahoko Kawasumi (Yoko), Ren Sudo (Tatsuo).

So long, my son

O filme começa com o afogamento de Xingxing, uma criança, em um reservatório, nos anos 80. Ele não sabia nadar, mas foi incentivado pelo seu amigo Hao a entrar na água. Essa tragédia demarca a história de duas famílias, os pais das crianças, ao longo de três décadas. 

A narrativa traz fortes conotações políticas, acompanhando a evolução da China na visão dessas duas famílias e seu pequeno grupo de amigos. A política do filho único é o tema central, mas o desenrolar da trama aponta ainda a abertura econômica, que provocou desemprego principalmente entre os operários (os pais de Xingxing), a modernização das cidades e o consequente enriquecimento de uma camada da população (os pais de Hao). 

A montagem invertida é um dos grandes destaques de So long, my son. Presente e passado se intercalam, sem respeitar a cronologia dos acontecimentos. Os cortes secos, sem demarcação das passagens de tempo, exigem do espectador atenção especial para entender a história. Jingchun Wang e Mei Yong, os pais da criança afogada, conquistaram os prêmios de melhor ator e atriz no Festival de Berlim.  

So long, my son (Di Jiu Tianchang, China, 2019), de Wang Xiaoshuai . Com Jingchun Wang (Yaojun), Mei Yong (Liun), Qi Xi (Moli), Jiang Du (Hao), Liya Ali (Haiyan). 

Perseguidos pelo destino

A narrativa se baseia em uma premissa tradicional no cinema que ficou eternizada em clássicos como Pacto de sangue e Bonnie e Clyde: casal formado por personagens sedutores e glamourosos que habitam o universo do crime. 

Em Perseguidos pelo destino, o jovem assaltante de bancos Gigi se apaixona por Bibi, uma extravagante e glamourosa piloto de competição automobilística. A jornada dos dois é uma entrega veloz e frenética à paixão, ao sexo, às emoções, ao perigo incessante. Gigi promete a Bibi um último golpe, pois tem uma dívida com os outros membros da gangue, seus amigos da adolescência delinquente. Tudo dá errado e acontece uma fascinante inversão de valores, com direito a decisões surpreendentes. O casal de protagonistas é a grande atração da película, desfilam charme e erotismo pela tela, enquanto caminham por estradas perigosas, movidos pela velocidade. 

Perseguido pelo destino (Le fidèle, Bélgica, 2017), de Michael R. Roskam. Com Matthias Schoenaerts (Gigi), Adèle Exarchopoulos (Bibi), Eric De Staercke (Freddy), Jean-Benoit Ugeux (Serge).