O cenário é um velho apartamento de dois pavimentos, cuja estrutura ostenta a necessidade de reformas: fios elétricos aparentes, paredes mofadas, luz oscilante, teto ameaçando deixar pedaços pelo chão. A família Blake está reunida para o Dia de Ação de Graças. Durante a noite, marcada por conflitos, revelações, crises depressivas, a família tenta, quase inutilmente, reatar laços.
As paredes decrépitas do apartamento, as lâmpadas semi mortas, sugerem, ameaçam, insinuam lentamente que a narrativa caminha para o suspense e o terror. Coisas de uma casa que reflete seus imoradores.
The humans (EUA, 2021), de Stephen Karam. Com Richard Jenkins (Erik), Jayne Houdyshell (Deirdre), Amy Schumer (Aimee), Beanie Feldstein (Brigid), Steven Yeun (Richard), June Squibb (Momo).
Em 1943, os aliados planejavam a libertação da Itália, ocupada pelos nazistas. O desembarque das tropas deveria acontecer pela Sicília, fortemente defendida pelos alemães. Para minar a resistência, os aliados plantaram informações falsas que invadiriam a Grécia. Assim nasceu a famosa Operação Mincemeat, criada por um pequeno grupo de estrategistas formado por civis e militares: o cadáver de um oficial inglês jogado na costa da Espanha com informações sigilosas sobre o desembarque na Grécia.
A operação é considerada um dos maiores estratagemas de dissimulação da história das guerras. É a base narrativa de O soldado que não existiu. O filme começa pela montagem invertida, no dia do desembarque da Sicília, com narração em off do escritor Ian Fleming, que participou da operação, discorrendo sobre verdades e mentiras, realidade e ficção em tempos de guerra.
O recuo no tempo, seis meses antes, narra passo a passo o estratagema. Romance, bom-humor, drama e suspense se entrelaçam na história. Em um momento, um oficial diz, se dirigindo a Ian Fleming: “estamos cercados pelos nazistas e pelos escritores.”
O filme não tem surpresas, todo mundo que se interessa pelo tema sabe que os alemães não ofereceram resistência ao desembarque na Sicília. O trunfo do roteiro são mesmo as combinações de gêneros, centrando na estratégia, sem necessidade das tradicionais sequências de guerra.
O soldado que não existiu (Operation Mincemeat, EUA, 2021), de John Madden. Com Colin Firth (Ewen Montagu), Matthew Macfadyen (Charles Cholmonde), Kelly Macdonald (Jean Leslie), Johnny Flynn (Ian Fleming).
O documentário da feminista Alice Diop, filha de pais senegales, é dedicado ao escritor François Maspero: “O seu livro Les Passagers du Roissy Express me incitou a ver e amar o que havia diante dos meus olhos.”
Na primeira sequência, o ver e ouvir é representado por um casal e seu filho, em um bosque, observando de binóculos cervos selvagens. A partir daí, a diretora segue o cotidiano de personagens que usam o trem RER B, que atravessa Paris, conectando subúrbios ao centro da cidade.
Compõem o filme um mecânico africano, uma cuidadora de idosos, um escritor e a própria Alice Diop que interage com os retratados. No final, uma simbólica, metáfora, preparação de “nobres”, vestidos a caráter para uma caça aos animais, confirma a disparidade social sugerida durante a narrativa, que dá voz aos moradores da periferia.
A diretora francesa Isabelle Sollas centra sua câmera na trajetória política, combativa, de Claudia e Violeta, duas mulheres trans. Elas reúnem e lideram grupos de ativistas que buscam conscientizar a conservadora sociedade argentina dos direitos transfeministas.
A narrativa traz depoimentos de Claudia, Violeta e outras mulheres, momentos de reivindicações nas ruas, cenas cotidianas de casa e trabalho, além da cobertura do julgamento de um homem acusado do assassinato de Diana Sacayán, uma mulher trans.
Isabelle Solas planejou o documentário a partir do encontro com mulheres do Colectivo Otrans. “Queria dissecar como o desejo pode ser político, esta fonte individual e coletiva que torna possível pensar o mundo de forma diferente. Estes corpos que se movem neste território conturbado e violento que é hoje a Argentina; e que são em si mesmos um ato de resistência.” – declara a diretora.
O título do documentário foi inspirado no cartaz da artista Bárbara Kruger, criado em apoio à luta pelo aborto: Your body is battleground.
Nuestros cuerpos son sus campos de batalla (Argentina, 2021), de Isabelle Solas.
O filme abre com uma criança sentada no banco traseiro do carro, imitando o som do motor. O motorista, seu pai, mostra-se irritado e a repreende severamente. A criança, nervosa, solta-se do cinto de segurança, fazendo com que seu pai se distraia do volante, provocando um acidente. Após passar por uma delicada cirurgia no cérebro, a criança sai do hospital e, a primeira coisa que faz, é correr para o carro e encostar a face no vidro com os braços abertos, simulando um grande e terno abraço no veículo.
Corta para Alexia, agora uma jovem, protagonizando uma dança erótica em cima do capô de um carro esporte. A plateia masculina vai ao delírio, Alexia é uma celebridade neste meio. Sua única motivação são os carros, com quem desenvolve uma relação até mesmo erótica: atenção para a cena de sexo de Alexia com um carro, que resulta em uma inacreditável gravidez.
Logo no início do filme, Alexia revela uma compulsão para a violência, praticando um série de assassinatos. Violência e erotismo se misturam de forma agressiva, quase repulsiva, neste instigante thriller da diretoria Julia Ducournau, vencedor da Palma de Ouro em Cannes. Quando o bombeiro Vincent entra em cena, a reviravolta no roteiro encaminha o filme para uma espécie de fraternidade familiar, mas mantendo o tom ousado e violento. Titane surpreende pela narrativa, pela estética, pelas relações entre personagens distópicos, cada um à sua maneira.
Titane (França, 2021), de Julia Ducournau. Com Vincent Lindon (Vincent), Agathe Rousselle (Alexia), Garance Marillier (Justine), Lais Salameh (Rayane).
A escocesa Jessica Holland está na Colômbia, em visita a irmã, acamada em um hospital. Orquidófila, ela tem uma profunda relação com a natureza, contemplativa, silenciosa, quase como uma integrante nata desse meio. Certa noite, ela acorda com um barulho estranho e desconhecido, vindo da selva. Jessica passa a ouvir o barulho em alguns momentos do dia, perde o sono e fica cada vez mais obcecada em descobrir a origem daquele som que parece penetrar em todos os seus sentidos.
O belo filme de Apichatpong Weerasethakul, primeiro realizado fora da Tailândia, exige do espectador acompanhar a protagonista nestes longos silêncios contemplativos. Longas imagens estáticas compõem esteticamente a narrativa, os diálogos são curtos, quase monossilábicos, seguidos de longos silêncios.
Durante sua jornada, Jessica cruza com pessoas também envoltas nas questões do sentido, como o técnico de um estúdio que a ajuda a reproduzir mecanicamente o som. O encontro entre Jessica e Hernán, que domina a longa parte final do filme, é pleno de sentidos, porém misterioso, envolto nestas questões incompreensíveis da memória.
Memória (Colômbia, 2021), de Apichatpong Weerasethakul. Com Tilda Swinton (Jessica Holland), Agnes Brecke (Karen), Daniel Giménez Cacho (Juan), Juan Pablo Urrego (Hernán Bedoya), Elkin Diaz (Hernán Bedoya).
Pedro Almodóvar parte de uma premissa triste, a troca de bebês na maternidade, para debater o complexo sentimento de maternidade. Janis e Ana dividem o quarto na maternidade quando estão prestes a entrar em trabalho de parto. Tornam-se amigas, confidentes, mantém uma relação à distância quando as filhas nascem. Tudo muda, de forma drástica, quando Janis começa a suspeitar que a bebê que levou para casa não é sua filha genética.
Não há segredos ou surpresas nesta trama de troca de bebês. O espectador sabe desde o início da verdade. No entanto, uma virada de roteiro muda o relacionamento das duas mulheres.
O ponto alto do filme é a narrativa paralela: no povoado de Janis, existe uma cova onde foram enterrados vários homens da cidade, executados durante a guerra civil espanhola. O final, quando a cova é aberta por uma ONG, é revelador, amparado pela potente frase de Eduardo Galeano que fecha o filme:
“Não existe história muda. Por mais que a queimem, por mais que a quebram, por mais que mintam, a história humana se recusa a ficar calada.”
Mães paralelas(Madres paralelas, Espanha, 2021), de Pedro Almodóvar. Com Penélope Cruz (Janis), Milena Smit (Ana), Israel Elejalde (Arturo), Aitana Sánchez-Gijón (Teresa), Rossy De Palma (Elena).
Janet acaba de ser nomeada Ministra da Saúde no governo inglês. Junto com seu marido Bill, um professor universitário, ela reúne um pequeno grupo de amigos em sua casa para comemorar. Um casal de lésbicas, Martha e Jinny, que passou por inseminação artificial e está grávida de trigêmeos. April, a melhor amiga de Janet, junto com seu marido, Gottfried. Tom, um profissional do mercado financeiro.
O clima de alegria e confraternização muda drasticamente quando Bill faz uma revelação que envolve morte e adultério. A festa tem uma estrutura completamente teatral, apesar de o roteiro ser original para cinema: a encenação acontece em um único ambiente com sete personagens. O humor ácido está nos diálogos e em situações inusitadas, como o personagem de Tom que entra no banheiro a todo instante para cheirar cocaína. O conflito principal da trama gira em torno de uma personagem ausente, a mulher de Tom. Mas revelações bombásticas são feitas a cada minuto das conversas. O final surpreendente deixa o espectador fascinado diante de um grande roteiro.
A festa (The party, Inglaterra, 2021), de Sally Potter. Com Timothy Spall (Bill), Kristin Scott Thomas (Janet), Patricia Clarkson (April), Gottfried (Bruno Ganz), Cherry Jones (Martha), Emily Mortimer (Jinny), Cillian Murphy (Tom).
Bella sai da Suécia para Los Angeles com um sonho: ser uma estrela de filmes pornô. Ela faz contatos e rapidamente passa a participar dos sets, mas, de início, impõe certos limites aos tipos de relacionamentos, tentando se preservar até alcançar o topo. No entanto, Bella se vê obrigada a fazer mais e mais concessões, se enveredando em uma rede perversa de exploração sexual.
Pleasure é o filme de estreia da diretora sueca Ninja Thyberg. Através da trajetória de Bella no mundo, ou submundo, das produções pornôs, a diretora compõe um painel triste da ambição humana, da exploração cruel da indústria cinematográfica pornô. A transformação da personagem de Sofia Kappel (atuação intensa, visceral), testando os limites de seu corpo, é marcante.
Pleasure (Suécia, 2021), de Ninja Thyberg.Com Sofia Kappel (Bella), Zelda Morrison (Joy), Evelyn Claire (Ava), Chris Cock (Bear), Jason Toler (Mike).
O filme dos irmãos Zurcher faz parte da tradição do cinema intimista europeu, regido pela simplicidade técnica, mas com intensa força poética. Tudo se passa em uma casa, onde os moradores estão se preparando para uma mudança. Enquanto empacotam objetos, carregam caixas, tentam organizar o caos tradicional desses momentos, cada um se despede à sua maneira um do outro, do lugar, das lembranças.
Lisa transita pelos ambientes em silêncio quase profundo, tocando em objetos, em uma aranha, gestos sutis de quem deixa uma importante fase da vida para trás. O casal Mara e Markus se movimentam apressados pelos ambientes, pintam paredes. Astrid, a mãe, cuida com carinho de tecidos e comanda os funcionários encarregados da mudança, dos consertos. A narrativa revela, através destes gestos simples e cotidianos das personagens, os mistérios insondáveis da alma quando nos despedimos de pessoas e coisas queridas.
A garota e a aranha (Das mädchen und die spinne, Suiça, 2021), de Ramon Zurcher e Silvan Zurcher. Com Henriette Confurius (Mara), Liliane Amuat (Lisa), Ursina Lardi (Astrid), Ivan Georgiev (Markus).