Pacto de sangue

Pacto de sangue (1944) comprova que cinema se faz com ideias, roteiros, incluindo diálogos primorosos. “Como eu poderia saber que um assassinato às vezes pode ter cheiro de madressilva?” – diz Walter Neff, se referindo à sua entrega total à paixão que o levou ao crime.

Billy Wilder sempre escreveu roteiros em parceria, desta vez com Raymond Chandler, um dos melhores autores da literatura policial noir. Segundo biógrafos, tiveram vários problemas, principalmente porque Chandler tentava se recuperar do alcoolismo e Billy Wilder bebia à medida que escrevia. Entre discussões, implicâncias mútuas e ameaças de separação, escreveram um dos melhores roteiros do cinema. O tema é avassalador e os personagens entraram para a história do cinema, mesclando sedução, ironia, melancolia,  ódio e duelos verbais cortantes como o próprio filme noir. Pacto de sangue é um clássico, essencialmente por ser um filme de Billy Wilder, diretor e, acima de tudo, roteirista.

“Exceto Hitchcock, nenhum outro diretor americano deixou tantas sequências clássicas quanto Billy Wilder – não pelos exibicionismo de câmera, mas pela inteligência por trás delas. Com a vantagem de que, nos filmes de Billy, as falas também são inesquecíveis (e esse era um dos motivos pelos quais ele nunca rodou um faroeste: os cavalos não falam).” – Ruy Castro

Pacto de sangue (Double indemnity, EUA, 1944), de Billy Wilder. Com Fred MacMurray (Walter Neff), Barbara Stanwyck (Phyllis Dietrichson), Edward G. Robinson (Barton Keys).

Referência: Saudades do século 20. Ruy Castro. São Paulo: Companhia das Letras, 1994.

O filho dos deuses

O filho dos deuses (Brigham Young, EUA, 1940), de Henry Hathaway, está na categoria de filmes históricos que devem ser vistos e analisados com cuidado. Joseph Smith (Vincent Price), fundador da igreja e líder dos mórmons nos EUA, é assassinado após ser julgado por traição. O julgamento é resultado da perseguição empreendida aos mórmons pelos habitantes do estado de Ohio. Brigham Young (Dean Jagger), o sucessor na liderança,  convence os mórmons a deixarem a cidade que fundaram. É uma retirada em massa por milhares de quilômetros em direção ao México., cortando o oeste americano. Após uma revelação, Brigham Young resolve construir uma cidade no estado de Utah, num vale deserto em meio às montanhas. É o nascimento de Salt Lake City. Cerca de 70% da população da cidade hoje é formada por mórmons.

Henry Hathaway desconsidera a complexidade da história desta religião, desenvolvendo a narrativa através da associação da retirada com o êxodo liderado por Moisés. São diversas semelhanças. A crença do povo em Brigham Young colocada em prova diante das adversidades. O conflito do líder com sua própria fé. Revelações durante a travessia. Conflitos internos dentro do grupo, provocados pela cobiça ao ouro da Califórnia. Pragas durante a travessia e no assentamento dos mórmons.

Hathaway deixa de lado questões políticas complexas que envolvem o crescimento da igreja e consequentes perseguições que os líderes sofriam. O poderoso Joseph Smith, pouco antes de seu assassinato, tinha se declarado candidato à presidência da república. Bryan Young construiu uma carreira política, fazendo, inclusive, viagens à Europa para se preparar. Ele foi o primeiro governador do estado de Utah.

Omissões históricas à parte, O filho dos deuses tem a assinatura de um dos grandes diretores do cinema clássico americano. Brilham no filme de Hathaway os aspectos relacionados à reconstituição, marca da era das produtoras hollywoodianas. As primorosas maquetes e cenários das cidades do oeste. A travessia do rio gelado. Carruagens, cavaleiros, andantes, animais, cortando as montanhas. A construção de Salt Lake City no deserto. O ataque dos gafanhotos à plantação. Tudo tem a marca deste fascinante cinema da era de ouro de Hollywood, formado pela mais talentosa geração de produtores, atores e diretores de todos os tempos.

Punhos de campeão

Punhos de campeão (The set-up, EUA, 1949), de Robert Wiseera dos filmes favoritos de meu pai. Ele sempre falava da cena final. O boxeador encurralado no beco escuro, os dedos da mão direita sendo quebrados pelos bandidos para que não pudesse mais lutar. A memória cinematográfica de meu pai permitia que ele descrevesse cenas de filmes aos quais assistira há 30, 40 anos, com riqueza de detalhes, nomeando os atores principais e o diretor. Raramente errava. ”Robert Ryan é um boxeador em final de carreira e, naquela noite, deveria perder a luta…” – ainda posso ouvi-lo falando sobre esse clássico.

O filme começa com travelling noturno pela rua, passando por um relógio que marca 9h05. No final do filme, travelling ao contrário enquadra novamente o relógio, agora marcando 10h20. Estas duas cenas definem a estrutura ousada do filme, a ação acontece no tempo cronológico real.

A abertura define também o espaço da ação: o ginásio de luta e, do outro lado da rua, o quarto de hotel onde Bill Stoker (Robert Ryan) descansa ao lado de sua esposa (Audrey Totter), esperando a hora de enfrentar o jovem Tiger Nelson. A luta é talvez a última chance para Stoker, já em idade avançada para o esporte, mas ainda vivendo a ilusão de ganhar um título importante e algum dinheiro para se estabelecer fora dos ringues. No entanto, seu treinador “vende” a luta para um grande apostador, se comprometendo que Stoker cairia no segundo round.

A combinação entre o treinador e o apostador acontece logo após a abertura do filme. A partir daí, a ação acompanha Stoker: a preparação para o embate, a luta com Tiger Nelson e o enfrentamento dos bandidos no beco escuro. Cenas paralelas mostram sua esposa, que se recusara a assistir à luta por prever que Stoker seria massacrado, caminhando desiludida por ruas próximas ao ginásio. Em alguns momentos, um relógio determina que a ação acontece no tempo real.

Em 1952, Fred Zinnemann também experimentaria essa estrutura, filmando Matar ou morrer no tempo real da ação (outro filme favorito do pai. E termino o texto assim, em parêntesis, para dizer da saudade que sinto de conversar sobre filmes com este cinéfilo de refinado gosto).

O falcão maltês

“Sr. Spade. Eu tenho uma terrível confissão a fazer. A história que contei ontem era apenas uma história.” – Brigid O’Shaughnessy

“Não acreditamos na sua história, senhorita. Acreditamos nos duzentos dólares. – Sam Spade.”

O diálogo reflete não apenas as motivações de Sam Spade, mas o caráter que domina as personagens deste cinema denominado pelos franceses de “film noir”. Em torno do misterioso falcão maltês se reúne uma galeria de tipos que consagrou o gênero. Wilmer Cook, o assassino de segunda categoria, silencioso e mortal. Cairo, o educado cavalheiro que cheira a gardênia. Kasper Gutman, o gordo espalhafatoso, de risadas forçadas e olhar ameaçador.  Brigid O’Shaughnessy, cujos terninhos bem comportados escondem a mulher dúbia e dissimulada e, porque não dizer logo, fatal. Iva, a viúva que se atira nos braços do amante assim que sabe da morte do marido. E, claro, Sam Spade, o detetive de frases cortantes e rápidas como uma metralhadora, cujas motivações incluem simplesmente duas notas de cem dólares ou as pernas de uma bela mulher.

Estes cidadãos dos becos escuros das grandes metrópoles, ambiente preferido do cinema noir, só poderiam transitar por ambientes à meia-luz, fotografados em preto e branco, com sombras projetadas simbolicamente nas paredes, no chão e no rosto do espectador. “O filme lançou John Huston como diretor, marcou o surgimento de Bogart, e ainda inventou uma forma de contar histórias de detetives, mulheres de mau comportamento, ladrões e perdedores. A iluminação, os cenários urbanos e a posição de câmera são o alicerce do que posteriormente se tornaria um gênero mágico, um tipo de filme que nos deixa paralisados na poltrona enquanto desfrutamos, extasiados e assustados, a assassinatos, romances arrebatadores e imagens belíssimas e perturbadoras.” – Gregorio Belinchón.

A trama de O falcão maltês não importa muito. No final, tudo pode ser uma farsa, um pretexto para contar histórias de detetives saídas da máquina de escrever do escritor Dashiell Hammett, cujos textos eram publicados em revistinhas pulp fictions. O diretor e roteirista John Huston assumiu que simplesmente copiou e colou os diálogos do autor no roteiro. Estava fazendo uma espécie de filme B, gravado em interiores, com figurinos e cenários econômicos, atores fora do padrão star-system e fotógrafos experimentais, influenciados pela estética expressionista. Clássicos do cinema da era de ouro de Hollywood nasceram sob esta aparente simplicidade. Como diz Sam Spade no final do filme, se referindo ao falcão maltês: “É feito do material com que se fazem os sonhos.” Está falando do cinema.

O falcão maltês (The maltese falcon, EUA, 1941), de John Huston. Com Humphrey Bogart (Sam Spade), Mary Astor (Brigid O’Shaughnessy), Peter Lorre (Joel Cairo), Sydney Greenstreet (Kasper Gutman), Elisha Cook Jr. (Wilmer Cook).

Referência: Coleção Folha Clássicos do CinemaO falcão maltês.

Duelo ao sol

Pearl Chávez, jovem mestiça, perde o pai e vai morar em uma fazenda sulista com parentes. A beleza selvagem de Pearl desperta sentimentos nos filhos do Sen. Jackson McCanles, dono da fazenda. Lewton McCanles nutre um desejo incontrolável por Pearl, enquanto o nobre Jesse McCanles se apaixona ternamente.

Duelo ao sol é um esplendoroso faroeste em technicolor, feito sob medida para transformar Jennifer Jones em estrela. O produtor David O. Selznick estava apaixonado pela atriz e controlou pessoalmente as filmagens, interferindo em todas as fases da produção.

“Ao fim das filmagens, Selznick gaba-se de ter mudado 99% das escolhas originais do diretor King Vidor. Por meio dos célebres memorandos que o produtor utilizava para comunicar suas decisões a toda a equipe, fica registrado que ‘havia ordens expressas no estúdio das filmagens para que nenhuma cena fosse fotografada, nem mesmo um simples ângulo de cena’ antes de ele ser chamado para ‘verificar a iluminação, o plano e o ensaio’.”

O misticismo em torno de Duelo ao sol não se limita ao estilo déspota do produtor. O caráter operístico encaminha o filme para um espetáculo visual e sonoro em todos os sentidos. As grandes tomadas da paisagem árida do Texas, amplificadas pela fotografia, enchem a tela de deslumbramento. O faroeste está muito bem representado, com sequências grandiosas do gênero, incluindo estouro de cavalos, duelos, conflitos entre exército e fazendeiros, o impacto da construção das ferrovias nas grandes fazendas de gado.

No entanto, o que sobressai é o melodrama. Em quase três horas de filme, os personagens caminham para a tragédia. Cada encontro da selvagem Pearl Chaves com o bandoleiro Lewton McCanles é explosivo, até o apoteótico duelo ao sol. O final do filme subverteu a lógica reinante no cinema hollywoodiano da época, demonstrando que, em alguns filmes, os produtores souberam se impor também pela criatividade.

Duelo ao sol (Duel in the sun, EUA, 1946), de King Vidor. Com Gregory Peck (Lewton McCanles), Jennifer Jones (Pearl Chávez) , Joseph Cotten (Jesse McCanles), Lionel Barrymore (Jackson McCanles).

Referência: Coleção Folha Grandes Astros do Cinema. Volume 9. Cássio Starling Carlos. São Paulo: Folha de S. Paulo, 2014.

Festim diabólico

História recorrente em alguns clássicos é a rivalidade entre o roteirista e o diretor do filme. O sistema de estúdios era rigidamente estruturado em camadas de trabalho, poucos diretores escreviam os roteiros de seus filmes. Hitchcock  gostava de trabalhar com uma equipe de roteiristas. Em Festim diabólico (Rope, EUA, 1948), Hume Cronyn fez o primeiro tratamento, adaptando o texto teatral de Patrick Hamilton para o cinema. Arthur Laurents escreveu o roteiro definitivo. Os diálogos foram reescritos por Sidney Bernstein. Hitchcock supervisionava diariamente o trabalhos dos roteiristas.

O diretor tinha uma ideia fixa para Festim diabólico: realizar o filme em plano-sequência. A escolha da peça teatral Roper’s end facilitou o processo, pois tinha poucos personagens e se passava em um único ambiente, o apartamento do jovem casal de estudantes. Os jovens homossexuais matam um terceiro estudante. No texto original, o professor que influenciou os estudantes com suas ideias sobre o “crime perfeito” também era homossexual, supostamente ele teria tido um caso com um de seus alunos.  No filme, Farley Granger e John Dall interpretam o casal, James Stewart é o professor a quem os jovens tentam impressionar com o ato.

No cinema americano da época, a temática homossexual nunca poderia ser evidenciada, a palavra sequer é mencionada no filme, nenhum gesto mais ousado poderia levar o público a esta conclusão. Tudo deveria ficar por conta das sutilezas de diálogos, interpretação e sugestões visuais.

A divergência entre os autores começa na escolha do elenco principal. A primeira opção de Hitch para o papel do professor foi Cary Grant, que recusou pois não queria associar seu nome à interpretação de um suposto homossexual. Segundo o roteirista Arthur Laurents, a escolha de James Stewart acabou definitivamente com esta conotação, pois o ator tirou todo o timbre sexual presente no roteiro, se limitando a investigar o caso de assassinato durante o filme.

O ator Farley Granger critica a atuação de James Stewart:

“Ele era o Jimmy Stewart e tive a sensação que ele se sentia inseguro quanto ao papel porque, de certa forma, era tanto o vilão como os rapazes, porque era o professor deles, e ele nunca interpretara esse tipo de papel até então. Por isso, não sei como ele se sentia. Talvez pouco à vontade. Alguém como o James Mason seria mais aceitável do que Stewart. Talvez essa seja uma das razões de Festim diabólico não ter sido um grande sucesso, não gostaram do Stewart naquele tipo de papel.”

Outra divergência aparece na evidenciação do assassinato. O filme começa com cena dos jovens estrangulando o estudante e colocando o corpo dentro de um baú – este baú serviria, durante o filme, como mesa de jantar para alguns convidados, entre eles os pais, a ex-namorada da vítima e o antigo professor dos três estudantes. Arthur Laurents diz que “criou um personagem para o morto que supostamente nunca se via”, mas Hitchcock acabou com essa possibilidade, pois filmou a cena do homicídio no início do filme. Para o roteirista, foi um erro do diretor, pois o suspense de Festim diabólico seria “haverá um corpo no baú ou não?”. Mostrar o assassinato eliminou a tensão do filme, o suspense se limitou a saber se os culpados seriam apanhados ou não.

A maior crítica de Arthur Laurents se refere ao plano-sequência, experimento de Alfred Hitchcock que transformou Festim diabólico em peça obrigatória de estudo na cinematografia mundial. Por questões técnicas, o filme não poderia ser realizado em uma única tomada. Cada câmera da época comportava um rolo de filme de 10 minutos de duração. A cada dez minutos a filmagem foi interrompida para a troca da bobina – o filme tem oito cortes, cada plano sequência com cerca de dez minutos. No momento dos cortes, o diretor simula um fade: a câmera se aproxima das costas do personagem, fechando em seu terno, provocando o escurecimento da cena. Corta, a equipe troca o rolo do filme e o movimento da câmera segue saindo das costas do personagem.

Depoimento de Arthur Laurents sobre o assunto:

“Desde o início, ele disse que faria o filme como uma peça e, penso, com nove takes ou nove rolos, o que nunca fora feito antes. A mim, pareceu-me um truque, mas quem era eu para criticar Hitchcock. Quando vemos o filme, o que me incomoda é ele ter de filmar as costas de alguém, carregar a câmera e recuar. Por isso, vemos nitidamente o que ele quer esconder, os momentos dos cortes.”

Esse tipo de polêmica exemplifica o relacionamento que sempre marcou a carreira de grandes diretores e grandes roteiristas quando trabalham em conjunto. Em muitos casos, os conflitos aparecem em relação a ideias, roteiristas tentando fazer valer nas filmagens e na montagem final suas ideias, no entanto, a palavra final é quase sempre do diretor. Ninguém nega a ascendência quase mítica que Alfred Hitchcock exercia no set sobre a equipe técnica e artística, respeito conquistado através do seu conhecimento inigualável dos procedimentos tecnológicos e conceituais da sétima arte. O próprio Arthur Laurents, após uma batelada de críticas, se rende ao mestre:

“Tentei fazer verbalmente o que Hitch queria fazer visualmente, ou seja, inserir palavras ou imagens para alertar o público para o duplo sentido de quase tudo. Ele dizia, ‘não dê muitas voltas’, e dávamos muitas para entender isso. Ele é o único diretor que sabia o que iria aparecer na tela sem ter que olhar pelo visor. E sabia muito bem contar uma história através da câmera, como na sequência em que tiram a comida de cima da arca. A ideia de comer em cima de um caixão que era o que eles estavam fazendo, é divertida, horrível e macabra, e foi uma ideia maravilhosa. Mas ele leva-a mais longe, porque à medida que tiram a comida de cima do caixão, pensamos: ‘O que acontecerá quando a criada levar a comida, a toalha, e tiver de abrir a arca para voltar a colocar lá os livros?’ E ele fez isso tão bem e tão discretamente, que não nos apercebemos do perigo até pensarmos: ‘Vamos ver tudo.’ Está filmado de forma brilhante. Pensamos que eles vão se safar. E então vem a história do chapéu. Ele era brilhante nessas coisas. É uma reviravolta porque é perfeitamente credível. Não é uma coisa falsa. As pessoas trocam os chapéus.  O que o filme tem de melhor para mim não é o aspecto técnico. Esse era avançado para a época mas não voltou a ser usado. O que é extraordinário é como o filme trata a homossexualidade. Continua a ser um dos filmes mais sofisticados sobre esse assunto. Hitchcock sabia fazer isso.”

Fonte: extras do DVD

Fuga do passado

Fuga do passado (Out of the past, EUA, 1947), de Jacques Tourneur. A interpretação naturalista de Robert Mitchum como o detetive Jeff Markham é um trunfo do filme. Jeff Markham é o retrato deste estilo de ator que consagrou o clássico cinema noir americano. Frio, cínico, o chapéu levemente de lado, cigarro nos lábios e olhar penetrante na mulher (em sentido figurado e literal). Mas é Jane Greer a grande estrela de Fuga do passado. Sua personagem Kathy Moffat seduz todos ao seu redor com a gélida beleza da mulher fatal – sequer pisca os olhos quando dispara seu revólver para alcançar seus objetivos, seja no gângster/amante interpretado por Kirk Douglas, seja no parceiro corrupto de Jeff, seja no próprio Jeff, a quem diz amar.

Fuga do passado, de Jacques Tourneur, uma adaptação do romance Build My Gallows High, de Daniel Mainwaring, talvez seja a obra-prima do gênero noir. Todos os elementos estão lá: a mulher mentirosa, mas tão bonita que você é capaz de perdoar qualquer coisa que ela faça, ou pelo menos morrer ao seu lado; o passado amargo que vem à tona novamente e destrói o personagem principal; o detetive particular, um homem inteligente e experiente que comete o erro de sucumbir à paixão – mais de uma vez.”

São estes personagens, que carregam as marcas humanas da paixão, da mentira, da traição, da entrega ao sexo, que eternizaram filmes em preto e branco chamados de noir.

Referência: 1001 filmes para ver antes de morrer. Steven Jay Schneider (editor geral). Rio de Janeiro: Sextante, 2008.

Monseur Verdoux

Monsieur Verdoux (EUA, 1947) nasceu de uma ideia de Orson Welles, adaptada por Charles Chaplin. Henri Verdoux, ex-funcionário de banco, ganha a vida conquistando mulheres mais velhas. Após o casamento, cuidando para que todos os bens da mulher ficassem em seu nome, Verdoux mata as esposas.

O humor negro é a marca do filme e as principais críticas vieram da maneira delicada como Chaplin compõe o personagem, transformando-o em um conquistador com o qual o público se identifica. O tom de comédia dos assassinatos atenua os crimes.

Seguindo a temática iniciada em O grande ditador (1940), o diretor insere na trama questões relativas aos conflitos trágicos da humanidade. Em um discurso, no tribunal, Monsieur Verdoux profere: “Quanto a ser um assassino em massa, o mundo não encoraja isso? Não fabrica armas de destruição com a finalidade de matar em massa?”. Depois: “Um assassinato faz um vilão, milhões fazem um herói. Os números santificam, meu amigo”.

O filme não foi bem recebido pelo público e pela crítica, mas hoje está entre as obras mais emblemáticas do diretor em termos de crítica social. Nas palavras de André Bazin, “No sentido preciso e mitológico da palavra, Verdoux não passa de um ‘avatar’ de Carlitos, o principal e, podemos dizer, o primeiro. Com isso, ‘Monsieur Verdoux’ é provavelmente a obra mais importante de Chaplin.”

Referência: Coleção Folha Charles Chaplin. Volume 12.

Os visitantes da noite

O fantástico é a tônica deste poético filme de Marcel Carné, dos grandes nomes do cinema francês de todos os tempos. Na Idade Média, os menestréis Gilles e Dominique chegam ao castelo do Barão Hughes durante os preparativos do casamento de Anne, filha do Barão, com Renaud. Eles carregam uma maldição e representam o diabo, apesar de pequenos atos bondosos. O objetivo dos dois é iniciar um jogo de sedução. Dominique, com ar andrógino, seduz o Barão e Renaud, provoca um combate entre os dois. No entanto, Gilles e Anne se apaixonam e esta rebeldia provoca a visita do diabo em pessoa ao castelo.

Os visitantes da noite é alegoria ao nazismo. A resistência de Gilles e Anne contra o totalitarismo do Diabo soa como grito de liberdade contra Hitler e os regimes fascistas que dominavam a Europa. É um filme de belas cenas, quase todas associadas ao amor do menestrel por Anne: a música que ele canta no início, o passeio dos amantes pelos jardins, o melancólico Gilles acorrentado, a poética cena final, quando o amor e a liberdade se unem de forma definitiva.

Os visitantes da noite (Les visiteurs du soir, França, 1942), de Marcel Carné. Com Arletty (Dominique), Marie Déa (Anne), Alain Cuny (Gilles), Fernand Ledoux (Hughes), Jules Berry (O diabo), Marcel Herrand (Renaud).

Os sapatinhos vermelhos

É dos mais deslumbrantes musicais de todos os tempos. Victoria Page (Moira Shearer), jovem aspirante a bailarina, cai nas graças do empresário Boris Lermontov (Anton Walbrook). Após performance antológica de Victoria em um musical baseado na história de Hans Christian Andersen, Bóris decide transformá-la na maior bailarina de todos os tempos, mas ela deve abdicar de sua vida pessoal e se dedicar integralmente à arte.

Passo a passo, mestre e pupila desenvolvem relação de amor e ódio, encaminhando a narrativa para a tragédia anunciada pelo próprio balé que consagrou Victoria.  Os números musicais são repletos de experimentações pictóricas, coreografia, direção de arte e interpretações solos e coletivas dos dançarinos em perfeição estética raras vezes vistas no gênero.

“A heroína é cercada por telas de fundo estranhas, dignas de contos de fadas, para o exuberante balé, porém, o desenhista de produção Hein Heckroth, o diretor de arte Arthur Lawson e o fotógrafo Jack Cardiff trabalham duro para tornar as cenas fora dos palcos aparentemente normais tão ricas e exóticas quanto os momentos de destaque no teatro. (…). Contando com cores brilhantes maravilhosas, uma seleção de músicas clássicas que fogem ao clichê e um viés sinistro que captura perfeitamente a ambiguidade do tradicional, ao contrário dos contos de fadas da Disney, esta é uma obra-prima exuberante.”

Os sapatinhos vermelhos (The red shoes, Inglaterra, 1948), de Michael Power e Emeric Pressburger. Com Anton Walbrook, Marius Goring, Moira Shearer, Robert Helpmann.

Fonte: 1001 filmes para ver antes de morrer. Steven Jay Schneider (editor geral). Rio de Janeiro: Sextante, 2008.