A câmera de Agnés Varda, neste documentário em curta-metragem, percorre as ruas da grande Los Angeles, mostrando murais pintados por artistas anônimos. Os diversos temas traçam um retrato da cidade dos sonhos dos anos 80: violência de gangues, movimentos culturais das ruas, seitas religiosas, marginalizados…
Como é comum em seus documentários, a cineasta tece comentários sobre as imagens, provocando a reflexão sobre a arte desses artistas anônimos, muitos deles também marginalizados que encontram nas paredes e muros das grandes cidades a possibilidade de se expressar. Muros e murmúrios ecoa como um grito pela beleza e vivacidade das obras.
O filme começa com narração em off do professor Henri Laborit (personagem real), sobreposta a imagens estáticas de plantas, rios, árvores, detalhes de objetos em ambientes diversos. O professor discorre sobre o motivo da existência humana, apresentando suas teorias sobre o evolucionismo. A seguir, voz feminina apresenta, também sobre imagens estáticas, os personagens. Jean Le Gall, político e professor de história. Janine Garnier, aspirante a atriz que se torna uma importante estilista. René Ragueneau, funcionário de carreira de uma indústria têxtil. Henri Laborit, médico, professor e pesquisador com importantes descobertas nas áreas anestésica e de reanimação.
O fio condutor da narrativa são as teorias do professor, entremeadas com as histórias dos outros três personagens que servem como espécie de cobaias e comprovações das teses apresentadas. Eles passam por conflitos que os colocam em posições desafiadoras no trabalho, no casamento, levando a escolhas entre a tranquila vida cotidiana e rupturas. A princípio isoladas, as histórias se cruzam.
O título se refere a uma metáfora, há um possível tio na América dos personagens que serve como exemplo de ressurgimento de sucesso no país onde todos os sonhos são possíveis. Com esta trama complexa, misto de documentário e ficção, Alain Resnais faz uma crítica cruel e, ao mesmo tempo, bem humorada da sociedade formada por pessoas que precisam manter suas posições seguras enquanto desejam com ardência outros caminhos.
Meu tio da América (Mon oncle D’Amérique, França, 1980), de Alain Resnais. Com Gérard Depardieu (René), Nicole Garcia (Janine), Roger Pierre (Jean), Nelly Borgeaud (Arlette).
Em 1954, Agnès Varda produziu e fotografou a famosa cena em uma praia coberta de pedregulhos no Sul da França. Ulisses é o nome do menino sentado, olhando a cabra morta.
No curta, realizado na década de 80, a cineasta volta ao local da foto, conversa com os protagonistas, buscando as memórias daquele tempo, daquele registro. Através de imagens passadas e presentes, o curta é uma reflexão sobre a natureza de fotografar, sobre memórias perdidas, resgatadas, sobre pessoas simples que são, em determinados momentos, apenas um flash um suas vidas, eternizadas pela arte.
O documentário/ficção começa com uma frase dita por uma narradora feminina sobre a tela negra: “A primeira imagem de que ela me falou foi a de três crianças na estrada, na Islândia, em 1965.” Vemos, em seguida, a imagem das três crianças, que retorna em mais dois momentos do filme.
A colagem do diretor, cuja arte pode ser entendida como a estética da montagem, trabalha com imagens filmadas na Europa, na Ásia e na África, amparadas por cartas da narradora/cinegrafista – ficção se intercalando às imagens documentais.
Os registros incluem rituais religiosos, imagens de opressão, cenas da natureza como um vulcão prestes a entrar em erupção, cotidianos de ruas de grandes cidades. São as memórias do viajante/documentarista Chris Marker, expostas de forma afetiva, às vezes amparadas pelas belas frases das cartas, outras vezes expressas no mais puro silêncio. Arrebatador, talvez seja a palavra para definir Sem sol.
Sem sol (Sans soleil, França, 1983), de Chris Marker.
Delphine está a duas semanas de suas férias de verão e não consegue decidir o destino da viagem. Acabou de romper com o namorado, a amiga com quem tinha combinado as férias desistiu da viagem. Delphine então, indecisa, empreende uma série de estadias curtas, entre o campo, as montanhas e as praias.
O raio verde faz parte da série Comédias e Provérbios de Éric Rohmer, anunciado logo no início da narrativa: “Que chegue o tempo quando os corações estão apaixonados.” – Rimbaud. A peregrinação de Delphine coloca em tema a solidão, a dificuldade de se adaptar a novos relacionamentos, a necessidade de conhecer e, ao mesmo tempo, o receio de se entregar a esse conhecer, com todo o despojamento que isso exige.
O título do filme remete ao último raio de sol poente, quando um possível raio verde toma conta dos corações. Delphine descobre sobre isso ao ouvir, casualmente, um grupo de intelectuais conversando sobre o livro que Júlio Verne escreveu sobre o fenômeno. O final do filme, bem, é desses finais que evocam a magia do olhar, assim como o cinema de Rohmer, repleto de descobertas.
O raio verde(Le rayon vert, França, 1986), de Éric Rohmer. Com Marie Rivère (Delphine), María Luisa Garcia (Manuella), Vincent Gauthier (Jacques).
É o primeiro filme da série Comédias e Provérbios, de Éric Rohmer. “É impossível parar de pensar” serve como preâmbulo para a divertida narrativa com um toque detetivesco. François resolve seguir por um dia um aviador, que foi ou é amante de sua namorada. Ele está com outra mulher, cuja identidade é desconhecida e, na cabeça de François, poderia provar a infidelidade do aviador. A adolescente Lucie cruza o caminho de François e se junta por acaso, fascinada pela aventura, à perseguição do possível casal de amantes.
Grande parte do filme decorre durante este dia, cujo ponto de vista define muito do que sentimos quando nos deparamos a observar, de longe, as pessoas com quem cruzamos. À medida que observam o casal à distância, François e Lucie se revelam um para o outro, trocando diálogos banais, às vezes reflexivos, outros agressivos, sempre com esse agradável tom de quem acaba de se conhecer. Descobrem muito pouco do casal que observam, mas muito de si mesmos. Quando termina a investigação, cada um volta para sua própria vida, deixando no ar aquela sensação de algo mais que permeia a imaginação.
A mulher do aviador (La femme de l’aviateur, França, 1981), de Éric Rohmer. Com Philippe Marlaud (François), Marie Rivière (Anne), Anne-Laure Meury (Lucie), Mathieu Carrière (Christian).
A trama se passa em um hotel de luxo. O inspetor Neveu está no quarto de seu tio, junto com a jovem Arielle. Anos atrás, um assassinato ocorreu nesse mesmo hotel. O Tio era segurança e não conseguiu desvendar o caso, por isso mora ali, em busca de respostas para o crime. Paralela a essa história, uma anunciada luta de boxe esconde as engrenagens subterrâneas desse mundo dominado pela máfia.
O título original, Détective, anuncia de forma enganosa a pretensão de Godard em mais uma trama repleta de seus experimentos linguísticos. Na verdade, pouco se investiga no filme, é mais uma catarse do diretor, despejando durante a narrativa fragmentos de imagens: cenas feitas em vídeo, citações a filmes e livros, colagens de diversas mídias…
“Se Godard ameaça fazer um filme de detetive, é importante que saibamos desde o início: será um filme de Godard, antes de qualquer outra coisa. Ou seja: mais um enigma. Um enigma que nasce das duas camadas com que Godard costuma trabalhar em seus filmes, digamos, convencionais: o fiapo da história e as ligações externas. E se o espectador viciado em entendimentos procurar explicações para tudo, sua experiência ficará prejudicada.” – Sérgio Alpendre.
Máfia em Paris (Détective, França, 1985), de Jean-Luc Godard. Com Laurent Terzieff (William Prospero), Aurelle Doazan (Arielle), Jean-Pierre Léaud (Inspetor Neveu), Claude Brasseur (Emile Chenal), Johnny Hallyday (Jim Fox), Alain Cuny (Mafioso).
Referência: Godard inteiro ou o mundo em pedaços. Eugênio Puppo e Mateus Araújo (organização). Catálogo produzido pela Fundação Clóvis Salgado para a retrospectiva Jean-Luc Godard, exibida na Sala Humberto Mauro.
Em A noite americana (1973), François Truffaut volta suas lentes para os bastidores de uma produção cinematográfica. O próprio Truffaut interpreta um cineasta durante as filmagens de uma obra nos EUA, explorando o complexo processo criativo e técnico da produção.
A trama de O último metrô explora processo semelhante, desta vez sobre o teatro. Marion Steiner dirige o teatro de seu marido, judeu obrigado a se esconder da ocupação nazista na França. Grande parte do filme se concentra nos ensaios da peça “A desaparecida”, a trupe de atores, atrizes e diretor tentando continuar seu trabalho, a busca pela arte, mesmo durante a Segunda Grande Guerra. Fora do teatro, os protagonistas da peça vivem conflitos com os nazistas. O filho de uma integrante da equipe está desaparecido; o ator Bernard Granger luta pela resistência; Marion tenta se equilibrar entre salvar o teatro ou se render às investidas dos colaboradores do regime.
A película é um primor estético, com deslumbrante reconstituição de época e fotografia feita sob medida para destacar a beleza dos protagonistas, principalmente Catherine Deneuve (cada plano, cada close, deixa o espectador em uma espécie de absoluto fascínio por Deneuve, como na mais pura abstração da beleza).
“Quando O último metrô estreou na França, em 1980, não faltaram acusações de que Truffaut havia se rendido e feito um filme que correspondia ao cinema de qualidade que ele próprio, três décadas antes, desqualificara em um artigo demolidor. (…) A combinação de filme histórico, requinte fotográfico e cenográfico e um par de estrelas como protagonistas sugere um filme prêt-à-porter, formatado para recuperar a afeição do público que Truffaut, naquele momento, parecia ter perdido após os fracassos de O quarto verde e o A amor em fuga.” – Cássio Starling Carlos.
Apesar das críticas, o filme se consagrou nas bilheterias, foi indicado como melhor filme estrangeiro ao Oscar e ao Globo de Ouro e conquistou dez prêmios César, na França: melhor filme, diretor, ator, atriz, roteiro, música, fotografia, direção de arte, montagem e som.
O último metrô (Le dernier metro, França, 1980), de François Truffaut. Com Catherine Deneuve (Marion Steiner), Gérard Depardieu (Bernard Granger), Jean Poiret (Jean-Loup Cottins), Heinz Bennent (Lucas Steiner), Andréa Ferréol (Arlette Gulaume), Sabine Haudepin (Nadine Marsac), Jean-Louis Richard (Daxiat).
Referência: François Truffaut. O último metrô. Coleção Folha Grandes Diretores no Cinema. Cássio Starling Carlos e Pedro Maciel Guimarães. São Paulo: Folha de S. Paulo, 2018
O italiano Dario Argento é um dos responsáveis por definir o gênero terror a partir dos anos 70. Os diretores ainda não tinham a tecnologia digital para criar com perfeição monstros, vampiros, lobisomens e tudo mais que assombra o espectador. Contavam com velhos truques do cinema, principalmente a interação assustadora entre personagens e cenários.
A estrutura de A mansão do inferno (1980) apresenta clichês da narrativa de terror. Em uma noite, Rose Elliot (Irene Miracle) se fascina com a leitura de As três mães, livro escrito por um arquiteto e alquimista. O autor projetou três casas que serviram de morada às três mães do título, na verdade, as encarnações do mal: Mater Suspiriorum, Mater Tenebrarum e Mater Lacrimarum. O filme é sequência de Suspiria (1977) e centra a história em Mater Tenebrarum. A terceira parte, que traria Mater Lacrimarum, nunca foi realizada.
A mansão projetada pelo alquimista em Nova York é o cenário para Argento explorar as demais premissas do gênero. Grande parte da ação se passa em uma noite de tempestade, com janelas se quebrando e cortinas esvoaçando. Os relâmpagos deixam vislumbrar sombras por trás das janelas. As primeiras vítimas são belas mulheres, a sensualidade evidenciada por roupas molhadas, coladas no corpo. A cor dominante do filme é o vermelho, espalhado pelos ambientes. Dario Argento trabalha ainda com requisitos básicos de sua filmografia de terror, como gatos e ratos projetados como feras assassinas, closes em garras e dentes.
A história, como em tantos filmes do gênero, não importa muito. É apenas pretexto para o diretor explorar seus assustadores truques. E, nisto, Dario Argento é mestre.
A mansão do inferno (Inferno, Itália, 1980), de Dario Argento.
O subtítulo do filme define o tema: três professoras de uma escola de periferia paulista enfrentam o cotidiano do bairro marcado pela delinquência, o tráfico de drogas e a consequente violência. Carmo está afastada da escola, “forçada” pelo marido a abandonar o trabalho para cuidar dos filhos e da casa, mas mantém laços com as amigas Dália e Rosa. A liberal Dália, que tem fama de lésbica na escola, enfrenta tudo com altivez, aconselhando as amigas. Rosa vive em perigoso conflito psicológico, motivado pelas suas frustrações com o trabalho e pelo caso que vive com Soares, um homem casado.
O ponto de vista feminino de Carlos Reichenbach explora a luta das mulheres contra a submissão, contra a violência, mesmo que seja através da violência (a violentada Aninha retruca a facada e tiros os abusos que sofreu). Dália é a grande personagem do filme, representa, no final da década de 80, a emancipação, mulher que se entrega e ajuda as pessoas sem se preocupar com opiniões à sua volta. Os personagens masculinos deixam acirrar o machismo, o preconceito, a violência psicológica e física.
Anjos do arrabalde – As professoras (Brasil, 1987), de Carlos Reichenbach. Com Betty Faria (Dália), Irene Stefânia (Carmo), Clarisse Abujamra (Rosa), Vanessa Alves (Aninha), José de Abreu (Soares).