O carrossel da vida

Erich von Stroheim começou a dirigir esta obra, mas foi demitido pelos produtores por extrapolar o orçamento, prática comum na era de ouro de Hollywood, quando o sistema de estúdio controlava todos os passos da produção cinematográfica. Diretores autorais, como Stroheim, eram as principais vítimas dos carrascos dos estúdios, cujo olhar sobre os filmes privilegiavam sempre as possibilidades comerciais. 

A narrativa de O carrossel da vida começa em Viena, poucos tempo antes da Primeira Guerra Mundial. O conde Franz Maximilian von Hohennegg, frequentador do gabinete do imperador, está de casamento marcado com a Condessa Gisella, filha do ministro da guerra. Entediado, Franz passa suas noites em cabarés e bares, se divertindo com outras mulheres. Certa noite, no parque de diversões da cidade, ele conhece Agnes, tocadora de realejo que vive miseravelmente. 

Difícil reconhecer os cerca de dez minutos da película que restaram da direção de Erich von Stroheim. Robert Julian conservou o estilo do mestre, mantendo a força dramática e pujança visual, além da tradicional crítica ao estilo de vida da aristocracia. 

O melodrama dita os rumos do relacionamento entre Franz e Agnes. A princípio, Franz enxerga a bela jovem como apenas mais um troféu para sua galeria de conquistas. A transformação do protagonista acontece a partir do momento em que ele passa a frequentar um mundo desconhecido, representado pela galeria de personagens que trabalha e mora dentro do parque, lutando diariamente pela sobrevivência. Os horrores da guerra são decisivos para o fim da jornada de Franz. Ele diz uma frase a Agnes simbólica não só em relação ao seu personagem mas ao mundo aristocrático a qual pertencia: “Eu não sou mais conde.”


O carrossel da vida (Merry-Go-Round, EUA, 1923), de Robert Julian. Com Norman Kerry (Conde Hohennegg), Mary Philbin (Agnes), Cesare Gravina (Sylvester Urban), George Hackathorne (Bartholomew), George Siegmann (Huber), Dorothy Wiallace (Condessa Gisella). 

Duas vidas

Há uma cena no filme que define muito do fascínio da narrativa visual, trabalhada por grandes mestres do cinema clássico americano. Terry McKay está em seu quarto. Ela abre a porta de vidro e se encosta no umbral, olhando para o alto. A porta de vidro continua a se abrir lentamente até parar, o reflexo do Edifício Empire Street estampado no vidro, Terry, com o olhar apaixonado, continua olhando para cima. 

O Empire Street é o local de um encontro arquitetado durante uma longa jornada de navio entre Paris e Nova Iorque. Michel Marnett é um playboy que nunca trabalhou na vida. Está a caminho de Nova Iorque para se casar com uma jovem rica. Terry McKay também está a bordo do navio, sua jornada tem um destino semelhante: vai se casar com um próspero comerciante. A primeira parte da narrativa, passada a bordo do navio, tem o dom das comédias leves, dos romances adocicados. Os dois vivem uma espécie de flerte, de pequenos gestos românticos que não devem se concretizar, de toques insinuantes, enfim, se enamoram de forma despretensiosa. 

A transição entre a primeira e a segunda parte acontece em uma emocionante sequência na Ilha da Madeira, quando os dois aproveitam a parada do navio para visitar a avó de Michel. A partir deste encontro, é preciso encarar a realidade e reescrever os destinos. Mas para isso é preciso tempo. No fim da viagem, os dois combinam de se encontrar seis meses depois no alto do Empire Street, caso tenham certeza deste amor que nasceu. 

Duas vidas apresentou pela primeira vez um dos dramas românticos mais famosos da história do cinema. Na segunda parte da narrativa, o tom muda inesperadamente para o melodrama, exigindo dos espectadores lenços nas mãos para acompanhar os seis meses que separam o casal. 

O próprio diretor Leo McCarey refilmou a história em 1957, com o título Tarde demais para esquecer. Na década de 90, Nora Ephron atualizou a história, respeitando o famoso encontro no mítico edifício em Sintonia do amor, com Tom Hanks e Meg Ryan. 

A sequência final de Duas caras está, indiscutivelmente, entre os finais mais emocionantes do cinema. É uma cena que desarma completamente até o mais empedernido dos espectadores que, com certeza, vai ter que se virar para esconder as lágrimas. 

Duas vidas(Love affair, EUA, Leo McCarey. Com Charles Boyer (Michel Marnet), Irene Dunne (Terry McKay), Maria Ouspenskaya (Grandmother), Lee Bowman (Kenneth Bradley), Astrid Allwyn (Lois Clarke).

Esposas ingênuas

O diretor austríaco Erich von Stroheim deve encabeçar a lista dos diretores do cinema mudo que mais sofreram com as interferências dos produtores em suas obras. A versão de Stroheim de Esposas ingênuas tinha 21 bobinas de comprimento, equivalente a cerca de duas horas e trinta minutos de duração. O estúdio cortou um terço do filme para o lançamento nos cinemas. Poucas semanas depois da estréia, mais cortes foram efetuados, diminuindo a duração do filme para menos de uma hora e meia de duração. 

O processo de restauração, realizado nos anos 2000, conseguiu a proeza de recuperar grande parte do material cortado, trazendo de volta a opulência dramática e visual de Erich von Stroheim. 

O próprio diretor interpreta o protagonista: o Conde Sergius Karamzin, na verdade, um vigarista que assume a identidade de um membro da aristocracia russa. Karamzin, juntos de outras duas mulheres também vigaristas, vivem em Monte Carlo, reproduzindo o glamour da aristocracia que inventaram. Cabe a Karamzin seduzir e extorquir dinheiro de jovens deslumbradas, geralmente casadas, que frequentam a alta sociedade de Monte Carlo. 

Não é difícil entender a maldição que acompanhou Stroheim em sua carreira em Hollywood. Esposas ingênuas tem ousadas cenas eróticas, às vezes insinuando até mesmo abusos sexuais. A crítica feroz a uma sociedade de aparências, representada inclusive por políticos americanos que visitam Monte Carlo, além da alta sociedade européia, está em cada sequência da película. Tudo isto com o requinte visual, marca de Stroheim que influenciou decisivamente o cinema clássico americano. 

Preste atenção na sequência da tempestade; nas incursões noturnas do Conde pelos ambientes íntimos das mulheres que seduz – puro expressionismo alemão; na sequência do incêndio na vila; na cena de Maruschka no alto do penhasco, o mar violento embaixo; enfim, preste atenção no filme do início ao fim. Você vai entender Stroheim e, com certeza, terá vontade de amaldiçoar os produtores americanos que praticamente acabaram com sua carreira em Los Angeles. 


Esposas ingênuas  (Foolish wives, EUA, 1922), de Erich Von Stroheim. Com Rudolph Christians (Andrew J. Hughes), Miss Dupont (Helen Hughes), Maude George (Princesa Olga Petchnikoff), Mae Busch (Princesa Vera Petchnikoff), Erich von Stroheim (Conde Sergius Karamzin), Dale Fuller (Maruschka),

A história começou à noite

Durante a viagem em um navio de luxo, a ex-modelo Irene Vail chega ao limite no relacionamento com seu marido, Bruce Vail. Bruce, um milionário empreendedor da área de construção de navios, não aceita o fim do seu casamento e planeja uma armadilha para acusar sua esposa de adultério. A armadilha acontece no hotel onde Irene está hospedada, mas Paul, hóspede do quarto ao lado, intervém, evitando o flagrante. É o início do relacionamento amoroso entre Irene e Paul, um charmoso maitre de restaurantes parisienses.

A película traz a marca da narrativa visual do diretor Frank Borzage, herdada de seus filmes realizados durante o cinema mudo. Borzage é considerado um dos grandes realizadores de dramas românticos do cinema. Ele negava o realismo, utilizando requintados closes, efeitos de transições como fusões sobre fusões em momentos decisivos da trama, carregando a narrativa visual e sonora (trilhas) de fortes apelos emocionais. Adeus às armas (1932), seu maior sucesso comercial, é famoso pela cena final: um close agressivo no casal de protagonistas, interpretados por Gary Cooper e Helen Hays, no momento da morte da enfermeira.

O roteiro de A história começou à noite apresenta uma particularidade: pouco antes do início das filmagens, a trama foi reescrita, pois Borzage resolveu que o final do filme seria durante o naufrágio de um navio de luxo, referência à tragédia do Titanic. Assim, o personagem de Colin Clive, no roteiro um milionário sem referências à origem de sua fortuna, foi recriado para um famoso construtor de navios. 

Outra particularidade do filme diz respeito também ao ator Colin Clive. Ele sofria com uma doença fatal durante as filmagens. Duas semanas após o lançamento da obra, Clive cometeu suicídio, assim como seu personagem no final de A história começou à noite.

 A história começou à noite (History is made at night, EUA, 1937), de Frank Borzage. Com Charles Boyer (Paul), Jean Arthur (Irene Vail), Leo Carillo (Cesare), Colin Clive (Bruce Vail).

Vontade indômita

O filme tem uma sequência antológica, reverenciada pelo valor estético e simbólico. Dominique Francon, jovem da alta sociedade, está na mansão de seu pai no interior. Ela ouve sons estridentes que a incomodam pela manhã e se encaminha até a pedreira próxima da casa. Do alto, ela vislumbra Howard Roark, um arquiteto desempregado, tentando cortar a pedra com uma enorme furadeira. Ele está suado, olha para cima e vê, em um profundo contre-plongée, a figura charmosa, cabelos ao vento, roupas brancas, da bela Dominique. Outra cena famosa e polêmica da narrativa é o início das relações físicas, marcado pela violência, entre o casal de protagonistas, no quarto de Dominique.

Vontade indômita é baseado na obra literária A nascente, da escritora russo-americana Ayn Rand. O livro é um dos grandes best-sellers da literatura americana, trazendo um tema caro à formação da sociedade capitalista estadunidense: o direito ao individualismo, a centrar o comportamento e os atos, principalmente o trabalho, em favor próprio, não pensando na sociedade. 

Howard Roark é um ambicioso arquiteto que não aceita interferências de espécie alguma em seus projetos. Perde grandes trabalhos por esta intransigência, vai a falência e, enquanto tenta se recuperar, trabalha na pedreira do pai de Dominique. O amor entre os protagonistas também se espelha na individualidade, os dois negam o relacionamento em favor de suas convicções.

Gary Cooper e Patricia Neal viveram um fervoroso relacionamento amoroso durante as filmagens, ajudando a construir o mito sobre este melodrama com a marca visual do diretor King Vidor. Ayn Rand escreveu o roteiro e seguiu a ferro e fogo os princípios defendidos em seu livro. Ela escreveu o longo discurso final de Howard Roark, diante do tribunal. Vidor tentou cortar parte do texto, mas foi impedido pela escritora, que ameaçou processar o estúdio. O que se vê na tela é um Gary Cooper sem muita convicção (ele próprio declarou sua insatisfação quando viu a cena) durante a interpretação do discurso, o mais longo monólogo da história do cinema até aquele momento. 

Vontade indômita (The fountainhead, EUA, 1949), de King Vidor. Com Gary Cooper (Howard Roark), Patricia Neal (Dominique Francon), Raymond Massey (Gail Wynand), Kent Smith (Peter Keating), Robert Douglas (Ellsworth Toohey).

Estrela ditosa

Mary Tucker é uma jovem muito pobre que mora em uma propriedade rural junto com a mãe. Vende leite e ovos na estrada e aplica pequenos golpes, como fingir que não recebeu o pagamento, tentando ganhar um dinheiro a mais. Em uma dessas artimanhas, ela é flagrada por Tim, funcionário de uma empresa de telefones. Ele aplica umas palmadas em Mary, como lição para tentar ser honesta. É o início de um relacionamento amoroso que vai ser interrompido pelo início da Primeira Guerra Mundial e consequente alistamento de Tim, que vai lutar na Europa. 

Estrela ditosa é considerado um dos grandes melodramas de todos os tempos, é um primor da narrativa visual, com fotografia primorosa das imagens campestres (reproduzidas em estúdio). Preste atenção na longa sequência na neve, quando Tim (que perdeu os movimentos das pernas em batalha) luta para chegar até a estação de trem pelos campos nevados, atrás de sua Mary. O final sugere um milagre surrealista, antecipando o final de A bela da tarde (1967), de Luis Buñuel. 

Estrela ditosa (Lucky Star, EUA, 1929), de Frank Borzage. Com Janet Gaynor (Mary Tucker), Charles Farrell (Tim Osborn), Guinn “Big Boy” Williams (Martin Wren), Hedwiga Reicher (Sra. Tucker). 

O sádico selvagem

Prepare-se para uma das sequências mais aterrorizantes do gênero noir. Depois de enganar mãe e filha em um parque aquático, Dancer (Eli Wallach) e seu comparsa as acompanham até em casa. Os dois estão incumbidos por um cartel de traficantes de drogas de resgatar um pacote de cocaína que foi plantado em uma boneca, transportada inadvertidamente pela criança para São Francisco. Dancer brinca com a criança, com um ar amável, enternecedor, no entanto, o espectador já sabe que ele é um frio assassino. Quando descobre que a criança usou a cocaína como maquiagem para a boneca, Dancer começa a pôr calmamente o silenciador no revólver, sinal de que vai matar a criança e a mãe. 

O filme, dirigido por Don Siegel, tem uma espetacular sequência de perseguição de carro nesta cidade que parece ter sido construída especialmente para diretores e técnicos do cinema desfilaram seu talento em sequências de ações envolvendo automóveis pela ladeiras – veja Bullit (1968) e O corpo que cai (1958). A narrativa acompanha os dois bandidos durante um dia, buscando pacotes de cocaína implantados em bagagens de moradores da cidade. 

Eli Wallach domina o filme com uma interpretação que revela todas as nuances de uma mente doentia que habita um psicopata assassino. Ele está conversando amigavelmente com suas vítimas, um segundo depois… bem, a mais pura essência do terror. 

O sádico selvagem (The lineup, EUA, 1958), de Don Siegel. Com Eli Wallach, Robert Keith, Richard Jaeckel.

Vive-se só uma vez

Quando sai da prisão, após cumprir pena de três anos por assalto, Eddie se casa com Joan, assistente do advogado de defesa do ex-presidiário. Os dois estão em lua de mel em uma pousada e saem para caminhar pelo jardim à noite. Param em frente a um pequeno lago, vislumbram um casal de sapos. Eddie diz a Joan: “Quer saber algo sobre sapos. Se um morre, o outro também morre. Um não vive sem o outro.” Joan comenta: “Como Romeu e Julieta.” A câmera filma o reflexo de Eddie e Joan nas águas, uma pequena turbulência deixa a imagem do casal difusa, como um espelho trincado. 

A conversa e a força visual da sequência anunciam a tragédia na vida do casal apaixonado. O tema do filme é a impossibilidade de marginais se reintegrarem à sociedade, devido ao preconceito. Logo depois, os dois são expulsos da propriedade, pois os donos descobrem o passado de Eddie. Ele é despedido do trabalho e acusado injustamente de participar de um roubo à banco que resultou na morte de oito policiais.

A carreira do cineasta alemão Fritz Lang aponta para filmes que desenvolvem lutas individuais contra a força do destino, lutas quase sempre marcadas pela fatalidade. A potência visual de suas obras, exercitadas durante sua experiência no expressionismo alemão, simboliza a sociedade submersa nas sombras, na neblina, como na bela, triste e trágica fuga de Eddie da prisão. 

“Lang expressa a condenação perpétua de Eddie Taylor por meio do motivo visual das grades, que sempre estão entre o personagem de Henry Fonda e os outros ou cercando-o na forma de sombras, tecendo um signo inequívoco. Mesmo fora da prisão, os cenários em torno de Eddie são compostos por linhas que o confinam, por janelas que o obrigam a ficar de fora ou do lado de lá. (…) Se a sociedade os impede de existir de outro modo, só será possível viver longe dela, num pessimismo romântico em que a liberdade se realiza ou na natureza ou na morte.” – Cássio Starling Carlos

Vive-se uma só vez (You only live once, EUA, 1937), de Fritz Lang. Com Sylvia Sidney (Joan Graham), Henry Fonda (Eddie Taylor), Barton MacLane (Stephen Whitney), Jean Dixon (Bonnie Graham), William Gargan (Padre Dolan). 

Referência: Fritz Lang. Vive-se uma só vez. Coleção Folha Grandes Diretores no Cinema. Cassio Starling Carlos e Pedro Maciel Guimarães. São Paulo: Folha de S. Paulo, 2018

Cidade do vício

A abertura de Cidade do vício destoa das características tradicionais do cinema noir e aproxima o filme de um relato documental. Clete Roberts, repórter, fala diretamente para a câmera, relatando o trabalho de cobertura jornalística que vai realizar na cidade de Phenix City, Alabama: “Estou aqui para descobrir a verdade sobre a cidade. Investigar o controle da cidade por um sindicato do crime e o assassinato a sangue frio  de Albert A. Patterson, procurador geral do Alabama.” Segue-se uma série de entrevistas, primeiro com o jornalista que conquistou o Prêmio Pulitzer com a investigação da atuação dos criminosos na cidade. Depois, o repórter ouve moradores da cidade que lutaram para limpar a cidade. Corta para créditos do filme.

A segunda parte da película reconstitui a história anunciada pelo repórter, centrando a trama no trabalho do advogado Albert Patterson e seu filho, também advogado, John Patterson. O vício da cidade está instalado na rua principal, ocupada por casas de jogos, prostíbulos e outros estabelecimentos ilegais. O sindicato do crime controla tudo, inclusive a polícia, que assiste a tudo com a passividade característica da lei corrupta, que fecha os olhos.

Cidade do vício é um dos filmes mais realistas e cruéis do cinema noir. Aparentemente, os criminosos trazem prosperidade para a cidade, empregando grande parte da população nos cassinos e na indústria de produção de equipamentos para a prática da jogatina. Quando um grupo de moradores decide combater a organização, uma série de assassinatos acontece, como aviso para os cidadãos de bem. Jovens, mulheres e crianças, o crime não poupa ninguém em sua escalada sádica e tenebrosa. Quando o cadáver de uma criança negra é atirado de um carro na porta da casa do procurador geral do Alabama, sabemos que estamos diante de um dos filmes mais difíceis de assistir deste fascinante cinema noir. É a realidade, e a realidade é triste, dolorosa e, muitas vezes, sem esperança. 

Cidade do vício (The Phenix City story, EUA, 1955), de Phil Karlson. Com John McIntire (Albert Patterson), Richard Kiley (John Patterson), Kathryn Grant (Ellie Rhodes), Edward Andreus (Rhett Tanner), Lenka Peterson (Mary Jo Patterson), Biff McGuire (Fred Gage), Truman Smith (Ed Gage), John Larch (Clem Wilson).

A cidade que não dorme

“Entre as técnica preferidas do cinema noir estão a iluminação chiaroscuro contida, ângulos estranhos, flashbacks, narração sobreposta em primeira pessoa, diálogos rápidos e mordazes e narrativas não lineares.” – Phillip Kemp.

A cidade que não dorme reflete estas tendências, com uma particularidade: a narração sobreposta é feita pela própria cidade, Chicago. “Eu sou a cidade. No alto da América e parte dela. Um caldo de todas as raças, credos, cores e religiões da humanidade. De meus famosos currais a minhas fábricas muito altas. De meus bairros de apartamentos à presunçosa Lakeshore Drive. Eu sou a voz, a pulsação desta gigantesca cidadela de civilização, alastrada, sórdida e linda, pobre e magnífica. E esta é a história. Só uma noite nesta grande cidade. Agora, conheçam meus cidadãos.”

Esses cidadão, cujas vidas se cruzam tragicamente nesta noite são: Greg Warren, ex-ator que ganha a vida se fazendo de robô em uma vitrine; Johnny Kelly, policial frustrado com a profissão e o casamento; Sally Connors, dançarina de clube noturno; Hayes Stewart, ex-mágico que se especializou em batedor de carteiras; Penrod Biddel, famoso advogado criminalista e Lydia, sua esposa. 

A bela, jovem e fatal Sally Connors, por quem Johnny Kelly está apaixonado, desencadeia os conflitos, pois o policial aceita uma arriscada e ilegal oferta do advogado em troca de cinco mil dólares, dinheiro que seria usado para fugir com a dançarina. 

Como se vê, Chicago não conta uma história de seus cidadãos comuns. A cidade escolheu os consagrados marginais do cinema noir, que transitam pela noite de armas em punho, movidos a corrupção, sexo, desejo de poder, traições. Nem mesmo os policiais são confiáveis, pois podem se entregar àqueles que devem combater.  A fotografia de John Russell é um dos pontos fortes do filme. Atente para a sequência em que o homem robô presencia um crime nas ruas: a luz em seu rosto metálico, seu olhar se desviando ligeiramente para observar a bela mulher que corre na rua depois de ser atingida pelo tiro mortal, ajuda a entender por que somos tão apaixonados pelos filmes noir. 

A cidade que não dorme (City that never sleeps, EUA, 1953), de John H. Auer. Com Gig Young, Mala Powers, William Talmer.