Porto das Caixas

Porto das Caixas (1962) é dos mais instigantes filmes do Cinema Novo brasileiro. Com resquícios de Obsessão (1942), de Luchino Visconti, é a clássica história do triângulo amoroso motivado por uma mulher sedutora que deseja se livrar do marido.

“Ainda em 1962, Paulo César Saraceni (três anos após finalizar ARRAIAL DO CABO e em seguida à grande repercussão que o filme obteve em 1961) inicia as filmagens de PORTO DAS CAIXAS, uma fita singular dentro do Cinema Novo da época, marcada talvez pela passagem do autor pelo Centro Sperimentale de Cinematografia, em Roma. O filme foi inspirado no célebre ‘crime da machadinha’, que abalou a sociedade carioca na década de 1950. Relata a estória de uma mulher, desesperada ao extremo por seu cotidiano com o pacato marido, que induz o amante a assassiná-lo.”

A lentidão do filme, a bela fotografia destacando as ruas vazias da cidade, diálogos curtos, entrecortados por longos planos de casas, imagens da estação de trem, de moradores silenciosos, submergem o espectador no universo psicológico dos personagens. A solidão da triste mulher, vivida por Irma Alvarez, é de uma melancolia contagiante, quase a justificar sua luta desesperada por alguém que mate o marido.

“O filme não foi bem recebido pela crítica ao ser lançado em 1963 e fracassou na bilheteria. Uma grande polêmica levantou-se em torno do fato de a fita adentrar o universo psicológico dos personagens, explorando (com planos longos e ação lenta) em tom monótono seu progressivo definhamento moral.”

Porto das Caixas se destaca nesta revolucionária cinematografia do Cinema Novo. A trama toca fundo nos dramas vividos pela dupla de protagonistas, nas angústias diante de questões comuns em conflitos psicológicos, como a vontade de viver vidas diferentes.

Porto das Caixas (Brasil, 1962), de Paulo César Saraceni. Com Reginaldo Faria, Irma Alvarez, Paulo Padilha, Margarida Rey.

Referência: História do Cinema Brasileiro. Fernão Ramos (organizador). São Paulo: Círculo do Livro, 1987.

A navalha na carne

A navalha na carne, adaptação da peça de Plínio Marcos, é exemplo do uso competente das estratégias narrativas do cinema e do teatro. Os primeiros trinta minutos são um exercício de narrativa cinematográfica. A prostituta Norma Sueli acorda e deixa Vado, seu cafetão, na cama. Ela vai para as ruas trabalhar. São quase trinta minutos de som ambiente, sem falas, alternando cenas de Norma Sueli nas ruas e na cama com um cliente, o homossexual Veludo entrando e saindo do quarto de Vado, seduzindo a seguir um rapaz. Imagens que se sucedem sem falas, preparando o espectador para o conflito.

Quando a prostituta volta ao quarto de Vado, o teatro toma conta da narrativa, um violento confronto entre os três protagonistas. Veludo é acusado por Norma Sueli e Vado de roubo e tem que se defender. Mas o verdadeiro conflito é psicológico, os personagens se revelando através da guerra de palavras, gestos contraditórios, desejos. Cinema ou teatro, não importa, A navalha na carne é estudo da natureza humana que se esconde e se revela entre quatro paredes.

A navalha na carne (Brasil, 1969), de Braz Chediak. Com Jece Valadão (Vado), Glauce Rocha (Norma Sueli), Emiliano Queiroz (Veludo).

Cinco vezes favela

Cinco vezes favela (Brasil, 1962) é dos mais importantes filmes do Cinema Novo. O título se refere à reunião de cinco curtas, cuja temática comum é o cotidiano dos moradores da periferia do Rio de Janeiro. Um favelado, de Marcos Farias; Zé da Cachorra, de Miguel Borges; Escola de Samba Alegria de Viver, de Cacá Diegues; Pedreira de São Diogo, de Leon Hirszman; Couro de Gato, de Joaquim Pedro de Andrade.

Os filmes exploram as injustiças sociais, bem ao feitio dos jovens realizadores cinemanovistas, empenhados em evidenciar a cruel realidade dos moradores da periferia. São obras deficientes em termos técnicos, representam a experimentação de diretores iniciantes que contavam com equipamentos precários. A exceção fica por conta de Couro de Gato, cujo diretor, Joaquim Pedro de Andrade, mesmo nos primeiros filmes já se destacava em termos técnico-narrativos.

“COURO DE GATO (o terceiro curta-metragem  de Joaquim Pedro, que havia realizado O MESTRE DE APIPUCOS, 1959, e O POETA DO CASTELO, 1959) apresenta um nível de realização bastante superior aos outros episódios, embora também centrado na representação do universo burguês característico da época e na exploração de sentimentos fáceis no espectador.  PEDREIRA DE SÃO DIOGO (de Leon Hirszman) também é um filme bem realizado, marcado pelas preferências eisensteinianas do jovem cineclubista. Conta a luta dos operários de uma pedreira para impedir que uma explosão mais forte venha fazer despencar diversos barracos localizados na beira do barranco onde trabalhavam.”

REFERÊNCIA: História do cinema brasileiro. Fernão Ramos (organizador). São Paulo: Círculo do Livro, 1987.

Mandacaru Vermelho

Mandacaru Vermelho (1961) abre com massacre na Pedreira do Mandacaru Vermelho perpetrado pelos capangas de Dona Dusinha. Corta para Dona Dusinha, anos depois, abrindo as janelas da casa aos gritos de Clara, sua sobrinha. Ela descobre que a jovem fugiu com Augusto, empregado da fazenda. Decidida a lavar a honra da família, a poderosa fazendeira reúne filhos e sobrinho e parte em busca dos fugitivos.

A narrativa segue os cânones do faroeste do sertão, gênero que fez sucesso a partir dos anos 50 no cinema brasileiro. Clara e Augusto fogem com a ajuda do vaqueiro Pedro e são perseguidos a tiros, com sequência final na pedreira que faz referência a grandes westerns americanos. Outra marca do filme é a improvisação, pois o diretor Nelson Pereira dos Santos estava no sertão baiano para filmar Vidas Secas. A chuva impediu as filmagens e a equipe decidiu aproveitar a mudança da paisagem do sertão.

“Nelson Pereira dos Santos, outro cineasta que ‘descobriu’ a Bahia em 1960, realiza em Juazeiro, às margens do Rio São Francisco, MANDACARU VERMELHO. A história das filmagens é conhecida: Nelson foi à Bahia na esperança de filmar VIDAS SECAS; lá chegando, o sertão vira mar e chove durante dias; então a caatinga floriu, e a equipe começa a falar em tom de brincadeira em ‘vidas molhadas’. Ilhados em Juazeiro, com a cidade alagada, a saída encontrada foi a realização de outro filme, aproveitando o cenário diferente da caatinga florida. O próprio Nelson faz o papel do mocinho que foge com a mocinha já prometida para outro. Perseguidos pela família da jovem, refugiam-se no monte do Mandacaru Vermelho, onde um beato errante realiza o casamento. No final os perseguidores morrem, e o casal consegue escapar para um vilarejo próximo assistindo emocionado a uma cerimônia de casamento.”

Mandacaru vermelho (Brasil, 1961), de Nelson Pereira dos Santos. Com Nelson Pereira dos Santos, Miguel Torres, Jurema Pena, Sonia Pereira.

As cariocas

O livro As cariocas, de Stanislaw Ponte Preta (pseudônimo de Sérgio Porto), contém seis histórias centradas no ambiente urbano do Rio de Janeiro, abordando o cotidiano de mulheres com o tradicional humor do autor. Para o filme de 1966, foram adaptadas três contos da obra: A noiva do catete, A desinibida do Grajaú e A grã-fina de Copacabana

Os diretores mantiveram o tom ácido de Sérgio Porto, tratando com ousadia as peripécias de Paula, Júlia e Marlene. As três se envolvem em festas da alta sociedade, planejam golpes contra homens ricos, não se furtam a casos infiéis. A direção de fotografia da película segue princípios do cinema dos anos 60 no Brasil, tratando as locações reais com estética realista. É o retrato de personagens da classe média urbana do Rio de Janeiro, transitando pelas ruas, bares, praias e apartamentos da zona sul.  

As cariocas (Brasil, 1966), de Fernando de Barros, Roberto Santos, Walter Hugo Khouri. Com Norma Bengell (Paula), Jacqueline Myrna (Júlia), Íris Bruzzi (Marlene), John Herbert (Cid), Walter Forster (Téo).

Todas as mulheres do mundo

O filme abre com Edu (Flávio Migliaccio) na praia, conversando com o espectador. O personagem divaga sobre a impossibilidade de amar, pois são muitas mulheres no mundo. O encontro de Edu com Paulo (Paulo José) em uma rua do Rio de Janeiro provoca virada na narrativa, pois os dois sentam-se em um bar e Paulo passa a contar sua história de paixão pela professora Maria Alice (Leila Diniz).

A ideia do diretor Domingos de Oliveira era fazer dois filmes, um centrado em Edu e outro em Paulo. Acabou optando apenas pelas desventuras de Paulo tentando conquistar Maria Alice e renegar todas as suas outras mulheres. O filme tem inclusive dois momentos iniciais de créditos, em uma ousada abertura apresentando os protagonistas (é clara a influência da nouvelle-vague francesa nas estratégias narrativas ao longo do percurso). 

“O filme segue um estilo narrativo que o Cinema Novo também prezava, evitando o plano e contraplano em favor de planos mais longos e com espaço para o improviso. Mas Todas as mulheres do mundo era um contraponto solar e descontraído (e necessário) à sisudez do movimento liderado por Glauber Rocha, que não tinha praticamente nenhum espaço para o humor ou romance. Como era de se esperar, o filme foi atacado na época como ‘alienado’”. – Renato Félix. 

Domingos de Oliveira idealizou o filme como uma declaração de amor à Leila Diniz (seu primeiro trabalho no cinema) com quem fora casado recentemente. Cada frame parece destinado a evidenciar a beleza da atriz e a beleza do amor. Deve-se considerar que o ponto de vista narrativo é masculino, portanto sujeito às inconsequências da época, colocando Paulo como o conquistador dominante, a quem as mulheres se entregam. 

“A idealização faz certo sentido, tendo em vista que acompanhamos a história pelo que Paulo nos conta. Quando ele não se aguenta e comete a inconfidência de contar a Edu como é Maria Alice na cama, somos obrigados a acreditar nele. Em seu próprio ponto de vista de aspirante a escritor, é natural se retratar como um exímio frasista e a amada como musa – o que vale também para o diretor-roteirista.” – Renato Félix. 

No final, Paulo se redime. Indagado por Edu sobre a impossibilidade de amar uma mulher, Paulo afirma sua entrega à Maria Alice e ao maravilhoso fruto desse amor: a família.  

Todas as mulheres do mundo (Brasil, 1967), de Domingos de Oliveira. Com Leila Diniz, Paulo José, Joana Fomm, Ivan de Albuquerque, Irma Alvarez, Flávio Migliaccio.

Referência: 100 melhores filmes brasileiros. Paulo Henrique Silva (organizador). Belo Horizonte: Letramento, 2016

A grande feira

A Grande Feira (Brasil, 1961) é o segundo longa-metragem de Roberto Pires, após Redenção (1959), considerado o primeiro longa-metragem produzido na Bahia. O filme reúne alguns expoentes do cinema novo ligados ao ciclo baiano, entre eles um jovem Glauber Rocha, responsável pela produção executiva.

O filme “é inspirado em uma revolta popular  detonada quando o governo do Estado pensou em acabar com a feira Água dos Meninos, onde trabalhavam mais de mil feirantes, para atender os interesses de grandes companhias imobiliárias que pretendiam construir no local.” – Fernão Ramos.

A trama traz princípios do cinema novo que buscava  revolução estética, narrativa e conceitual para o cinema brasileiro. A negra Maria, ladra e prostituta, transita pela Grande Feira e mora no andar de cima da boate de Zazá. O violento Chico Diabo, amante de Maria, logo no início do filme rouba uma joalheria e, na saida, mata um policial. O marinheiro Sueco chega na comunidade e vai mexer com o coração de Maria e da aristocrata Ely, esposa de um rico industrial. Ely sofre com o tédio, citando Camus e Carlos Drummond de Andrade enquanto busca aventuras na noite. Esses tipos marginais, que conta ainda com o receptador Ricardo, se cruzam nos becos, bares, quartos, boates em gradativa adrenalina de sensualidade e violência. Para salvar os feirantes, o plano de Chico Diabo é explodir os tanques da Esso, nos arredores da feira, provocando um incêndio de proporções monumentais.

Está no filme a visão rebelde – e a estética realista – do cinema novo que coloca nas mãos do povo a decisão de seu destino, mesmo que seja através da violência. Segundo ramos, em A Grande Feira, “a representação do universo burguês é caricata e a fala popular revolucionária  enunciada sem dramaticidade e com impostação.”

Roberto Pires usa a fotografia em preto e branco e câmera realista para compor o painel caótico dos feirantes nas cenas externas. Nas cenas internas,  o diretor não se furta a fotografar os corpos sensuais dos belos atores que compõem o triângulo amoroso. O louro sueco (Del Rey com cabelos tingidos) e a negra Maria emolduram a tela em uma sensual sequência no quarto, com direito a clichês como sapatos caindo ao chão. A fútil Ely se entrega também ao Sueco em fascinantes composições na praia e no cais.

O final do filme é um primor estético e conceitual: cena vista do alto mostra o cais após a despedida de Ely e Sueco. O marido de Ely abre a porta. O espectador vê, à distância, a mulher diminuta, frustrada, entregue ao seu destino, entrar no carro. “Apesar do respeito pelo povo e seus costumes há, no entanto, sempre uma ponta de desprezo (caso de BARRAVENTO, A GRANDE FEIRA e TOCAIA NO ASFALTO) pela apatia e pela incapacidade popular em perceber sua situação e reagir de forma radical.” – Fernão Ramos.

A Grande Feira (Brasil, 1961), de Roberto Pires. Com Geraldo Del Rey (Ronny/Sueco), Helena Ignez (Ely), Luiza Maranhão (Maria), Antonio Pitanga (Chico Diabo), Milton Gaúcho (Ricardo).

Referência: História do Cinema Brasileiro. Fernão Ramos (organizador). São Paulo: Círculo do Livro, 1987.