Agnès Varda tece uma narrativa híbrida, entre o documentário e a ficção. Emile, jovem recém divorciada, vive com seu filho Martin, que tem cerca de 10 anos, em Los Angeles. Ela é imigrante e passa seus dias entre o trabalho como datilógrafa, os cuidados com o filho e andanças pela cidade.
A diretora francesa, única mulher integrante da prestigiada nouvelle-vague francesa, parece ter uma câmera acoplada ao seu corpo. Por onde passa, a diretora produz um filme. Documenteur foi realizada durante sua breve estadia em Los Angeles no início da década de 80. Documentário ou ficção, não importa. É o retrato de uma jovem mulher, Emile, em busca de se integrar a um país que finge abrir as portas para todos os sonhadores, sonhos que se desfazem na luta cotidiana. Atenção para a bela imagem de Emile sentada nua na cama. É uma pura imagem de Agnès Varda.
Documenteur (França, 1981), de Agnès Varda. Com Sabine Mamour (Emile Cooper) e Mathieu Demy (Martin Cooper).
Todos os dias, Boron Sarret (Ly Abdoulay) sai para trabalhar como carroceiro nas ruas de Dakar. A narrativa acompanha sua jornada por um dia, pontuada por suas reflexões sobre o trabalho, sobre sua condição de vida, sua família. A disparidade social é expressa em suas andanças, nos passageiros que recebe, na sua trágica falta de sorte neste dia: ele aceita uma corrida para um bairro proibido para carroceiros e tem sua carroça apreendida pela polícia.
Ly Abdoulay compõe seu personagem com um certo humor misturado a uma desesperançada resignação. A câmera documental registra rua a rua a miséria social de Dakar, de seus habitantes que vivem a luta diária por trocados.
O carroceiro (Borom sarret, Senegal, 1963), de Ousmane Sembène.
Em apenas quatro minutos, Agnès Varda faz uma bela homenagem à história do cinema. O curta usa as escadas da Cinemateca Francesa que conduzem ao Museu do Cinema. A montagem alternada intercala pessoas descendo as escadas com cenas de diversas obras filmadas em escadas. É uma sucessão de imagens que remetem à história do cinema, filmes que marcaram gerações, o fascínio irrompe em cada take.
O curta-metragem celebrou os 50 anos da Cinemateca Francesa e, por coincidência, a escadaria tem exatamente 50 degraus. Agnès Varda recortou cenas dos seguintes filmes: Juve contre fantômas – Louis Feuillade, Pépé le moko – Julien Duvivier, O encouraçado Potemkin – Sergei Eisenstein, A imperatriz vermelha – Josef von Sternberg, Cidadão Kane – Orson Welles, Ran – Akira Kurosawa, Le coup du parapluie – Gérard Oury, O desprezo – Jean-Luc Godard, Modelos – Charles Vidor, A história de Adele H – François Truffaut.
Você tem belas escadarias, sabia? (T’as de beaux escaliers, tu sais, França, 1986), de Agnès Varda.
Este curta-metragem mudo, na verdade um mini filme de cerca de quatro minutos de duração, foi inserido no longa Cléo das 5 às 7. É uma grande homenagem aos primórdios do cinema e conta com uma atração à parte: Jean-Luc Godard como protagonista, ainda sem seus marcantes óculos escuros.
A narrativa segue uma aventura burlesca às margens do Sena, Godard e Anna Karina interpretam um casal que se despede na ponte e um pequeno acidente acontece, de forma repetida, quando a jovem enamorada está de saída. A fotografia em preto e branco, montagem acelerada, interpretações caricatas, é puro cinema mudo, com certeza uma divertida experimentação para os jovens da nouvelle-vague francesa.
Os amantes da Ponte Mac Donald (Les fiancés du Pont Mac Donald, França, 1961), de Agnès Varda. Com Jean-Luc Godard e Anna Karina.
Agnes Varda está sentada em um banco de praça, lendo. Ela narra: “Em 1933 houve uma pesquisa sobre o que poderia ser feito aos monumentos para embelezar Paris. André Breton respondeu: dê ao Leão de Belfort um osso para roer e vire-o ao oeste.”
O tom surrealista consagrado por André Breton está presente na narrativa de O leão volátil. Clarisse é aprendiz de vidente, tem os olhos fascinados pelas predições de sua mentora, Madame Clara. Em alguns dias seguidos, sempre na hora do almoço, ela encontra Lazarus, porteiro que trabalha nas catacumbas parisienses. Os encontros acontecem sempre na Praça Denfert-Rochereau, onde fica a estátua do Leão de Denfert.
Clarisse, sempre com olhar deslumbrado, apaixonado, vê pequenos acontecimentos místicos, surrealistas. Objetos desaparecem nas mãos de Lazarus; o próprio Lazarus desaparece ao atravessar a rua; a sugestão de Breton aparece ante seus olhos: o leão tem um osso na boca, depois é substituído por Zgougou, o gato de Agnès Varda (mascote do Ciné-Tamaris, produtora da cineasta). São os olhos de leitores e espectadores de cinema que, assim como videntes, imaginam coisas o tempo todo.
O leão volátil (Le lion volatil, França, 2003), de Agnés Varda. Com Julie Depardieu (Clarisse), Frédérick E. Grasser-Hermé (Madame Clara), David Deciron (Lazarus).
O filme começa com uma imagem fotográfica do aeroporto de Paris, aviões estacionados na pista. Créditos anunciam “un photo-roman de Chris Marker”.Narração em off determina os rumos da narrativa: “Esta é a história de um homem marcado por uma imagem da infância. A cena que o afligiu por sua violência e cujo sentido ele só compreenderia muito mais tarde teve lugar na grande plataforma de Orly alguns anos antes do começo da Terceira Guerra Mundial.”
Estamos diante de um dos filmes de ficção científica mais surpreendentes e ousados do cinema. Toda a história é contada a partir de fotografias em preto e branco que se sucedem, espécie de experimentação foto novelística de Chris Marker. Muito tempo após a Terceira Guerra Mundial, os humanos vivem em porões e outros ambientes subterrâneos, pois o ar exterior está contaminado pela radioatividade. Um homem é convencido a viajar no tempo, primeiro ao passado, depois ao futuro, em uma tentativa de resgate das memórias da humanidade. Ele foi escolhido por ter fortes imagens mentais, memórias afetivas, que preservariam sua identidade nestas viagens no tempo. O escolhido é a criança que frequentava o aeroporto de Orly aos domingos com os pais e que seria marcado por uma imagem desta infância, a de uma bela mulher na plataforma, seguida da morte de um homem.
A pista influenciou uma série de filmes modernos sobre viagem no tempo com a intenção de reconstruir a história, destacando-se o Exterminador do futuro (1984). O final elíptico e surpreendente também antecede diversos finais de narrativas semelhantes. Para muitos, A pista é o melhor curta-metragem da história do cinema. A beleza etérea das fotografias que se sucedem justifica essa escolha, associada a uma narração poética, reflexiva, sobre o tempo, sobre as memórias, sobre o amor: “Em Orly, aos domingos, os pais levam seus filhos para verem os aviões prestes a partir. Deste domingo, a criança cuja história contamos, reveria por muito tempo o sol fixo, o cenário armado na extremidade da plataforma, e um rosto de mulher. Nada distingue as memórias de outros momentos. Só mais tarde é que se fazem reconhecer, por cicatrizes.”
A pista (La jetée, França, 1962), de Chris Marker. Com Étienne Becker, Jean Négroni, Hélène Chatelain, Davos Hanich, Jacques Ledoux.
Neste curta documental, Éric Rohmer acompanha as andanças de Nadja, jovem estudante de ascendência iugoslava, pelas ruas de Paris. Ela está na cidade para desenvolver sua tese sobre Marcel Proust e suas caminhadas são pontuadas por narração em primeira pessoa, quando ela reflete sobre a cidade, as pessoas.
É claro, Paris é a grande personagem do curta. A câmera passeia ao lado de Nadja por lugares icônicos: a Sorbonne, Quartier Latin, Montparnasse, Belleville, os cafés e parques, além de redutos famosos da cinefilia. É a câmera de Éric Rohmer como um flâneur pela cidade que esteve presente em diversos filmes ao longo de sua carreira, sempre refletida com o charme, a beleza e a sensibilidade próprias do olhar do cineasta.
Nadja em Paris (Nadja à Paris, França, 1964), de Éric Rohmer.
A narração em primeira pessoa encaminha essa história de possível adultério, ciúme, obsessão e crime. A jovem esposa do arquiteto Poznyecev passa seus dias ensaiando a Sonata a Kreutzer, acompanhada de um também jovem violinista. A desconfiança se instaura na mente do arquiteto que passo a passo fica cada vez mais dominado pelo ciúme. Ele finge uma viagem a trabalho e volta repentinamente para casa, flagrando o casal de músicos deitados no sofá.
Jean-Luc Godard, que atua como coadjuvante, é o produtor do curta. Claude Chabrol e François Truffaut também aparecem em pontas. O projeto colaborativo dos jovens críticos de cinema tem uma atração à parte: Poznyecev vai encontrar seu amigo crítico (Godard) no trabalho, cujo cenário é nada mais nada menos que a própria Cahiers Du Cinema.
La sonate à Kreutzer (França, 1956), de Éric Rohmer. Com Éric Rohmer (Poznyecev), Françoise Martinelli (a esposa). Jean-Claude Brialy (Trukhacevskij).
O curta de Éric Rohmer, com dois personagens em cena, filmado inteiramente dentro de um apartamento (residência de Claude Chabrol), mistura humor, ironia e crítica social. Véronique, uma jovem tutora, tenta ensinar matemática e francês a uma criança. No entanto, o estudante refuta com análises lógicas, mesmo que baseadas em seu raciocínio infantil, as questões apresentadas pela tutora.
O destaque da trama são as investidas da criança contra a tutora e, naturalmente, contro os procedimentos de ensino. Tudo que a criança quer é despachar a professora e voltar para suas brincadeiras no chão da sala. Ficar livre daquilo é também a sensação expressa pela professora que, vez por outra, tira os sapatos e esfrega com impaciência (e talvez com leve erotismo) os pés. .
Véronique et son cancre (França, 1958), de Éric Rohmer. Com Nicole Berger (Véronique) e Alain Delrieu (estudante).
Este curta experimental foi filmado em 1951 como um filme mudo. Quase dez anos depois, Éric Rohmer resgatou a película e sonorizou a narrativa, com dublagens de Stéphane Audran e Anna Karina, uma das musas da nouvelle-vague. Mas o grande destaque é a participação de Jean-Luc Godard, com 21 anos, interpretando Walter.
Charlotte está esperando o horário do trem e, antes do embarque, vai até seu apartamento para preparar uma refeição rápida. Walter a acompanha e, enquanto Charlotte prepara um bife, fica o tempo todo encostado na parede. Os diálogos são curtos, os gestos se dividem entre a espera pelo bife (cujo tamanho impede de ser dividido entre os dois) e sugestões amorosas.
O curta é mais um exemplo de como jovens realizadores, no caso os ainda críticos da Cahiers Du Cinema, se envolvem em projetos colaborativos, trabalhando com ideias simples e fascinantes.
Charlotte e seu bife (Presentation ou Charlotte et son steak, França, 1960), de Éric Rohmer.