Muitos filmes da Nova Hollywood (movimento que teve início em 1967 e se fortaleceu durante os anos 70) tocaram em temas espinhosos, considerados quase tabus pelo cinema. O diretor Mike Nichols praticamente deu o pontapé inicial no movimento e nesses temas polêmicos com A primeira noite de um homem (1967), história de um jovem de 21 anos que é seduzido pela esposa do sócio de seu pai, mulher de cerca de 40 anos.
O sexo também permeia a narrativa de Ânsia de amar. Jonathan e Sandy dividem o quarto na faculdade e passam parte da noite conversando sobre conquistas amorosas e sexuais. O machismo determina o tom das conversas. Quando os dois se apaixonam por Susan, a trama ganha ares de competição.
À medida que envelhecem, os amigos continuam trocando confidências, incluindo agora desilusões amorosas, frustrações, aquilo que poderia ter sido. O final é perturbador, reflete as consequências na vida dos dois, principalmente de Jonathan, que se entregou por inteiro à sua condição de conquistador, essa espécie deplorável de predador que insiste em se pavonear pelas noites sem respeito algum pelas mulheres, pela sociedade.
Ânsia de amar (Carnal knowledge, EUA, 1971), de Mike Nichols. Com Jack Nicholson (Jonathan), Arthur Garfunkel (Sandy), Candice Bergen (Susan), Ann-Margret (Bobbie).
Dolly Levi chega a Yonkers para arranjar o casamento do rico comerciante Horace Vandergelder. A ideia é casar Horace com Irene Molloy, dona de uma loja de chapéus em Nova York. O que Horace não sabe é que a casamenteira tem outros planos e, durante um dia e uma noite em Nova York, série de encontros vai mudar os rumos do arranjo.
Com direção de Gene Kelly, Alô, Dolly! é exuberante do início ao fim. Os figurinos, a direção de arte, as cores, tudo tem o tom extravagante, principalmente as sequências dentro do restaurante de luxo. Destaques para a coreografia dos garçons na dança que começa na cozinha e invade o salão; para a participação de Louis Armstrong na bela canção título; para Barbra Streisand com figurinos adoravelmente cafonas.
Alô, Dolly! (Hello, Dolly!, EUA, 1969), de Gene Kelly. Com Barbra Streisand (Dolly Levi), Walter Matthau (Horace Vandergelder), Michael Crawford (Cornelius Hacki), Marianne McAndrew (Irene Molloy), Danny Lockin (Barnaby Tucker), E. J. Peaker (Minnie Fay), Joyce Ames (Ermengarde), Tommy Tune (Ambrose Kemper).
George e Doris estão comendo em mesas distintas, no restaurante de um hotel à beira-mar, na Califórnia. Flertam, brincam à distância, pouco depois estão juntos na mesa. Entra o tradicional clipe das comédias românticas, a bela cançãoThe last time felt like this, acompanhando o início do romance do casal. Corta para manhã do dia seguinte, George e Doris acordam na mesma cama. Lettering indica o ano: 1951.
Tudo bem no ano que vem (1978) é divertida abordagem sobre o relacionamento de amantes com o passar do tempo. George e Doris são casados, logo no dia seguinte remoem a culpa, mas se declaram apaixonados. Resolvem se encontrar todo ano, durante um final de semana, no mesmo hotel. A trama acompanha a evolução do romance e dos personagens durante 26 anos. As elipses, sempre pontuadas pela mesma canção, acontecem com a inserção de fotografias de fatos relacionados à época: políticos, músicos, cenas de cinema, jovens nas ruas, imagens de guerra.
O desafio do diretor Robert Mulligan é segurar a trama durante quase duas horas com apenas dois personagens, dentro do mesmo cenário, a cabana do hotel. A passagem do tempo é indicada tanto pelas mudanças físicas e psicológicas (George e Doris afetados por fatos, como a Guerra do Vietnã), como de figurinos (Doris aparece vestida de hippie). O destaque do filme são os diálogos, com força e bom-humor o suficiente para retratar o comportamento dos amantes diante das escolhas (bela história de amor), assim como para apontar que os personagens são resultados de seu próprio tempo.
Tudo bem no ano que vem (Same time, next year, EUA, 1978), de Robert Mulligan. Com Ellen Burstyn (Dóris), Alan Alda (George).
A geração de diretores americanos dos anos 70 redefiniu o cinema, assumindo a influência de Sem destino (1969) em diversas instâncias, incluindo escolhas temáticas e narrativas, além das estratégias de produção. O filme tem caráter mítico. Relatos apontam o fato dos realizadores terem confundido arte e realidade durante as filmagens, principalmente na questão consumo de drogas e álcool. Sem destino dialoga com o público jovem e, claro, com os amantes do cinema.
“Sem destino desafiou boa parte da sabedoria convencional de Hollywood. É um filme de e para os jovens (Hopper só tinha 32 anos quando o dirigiu), com a trilha sonora de grandes expoentes da contracultura como Steppenwolf, Jimi Hendrix e Bob Dylan. Nenhum dos atores principais (Nicholson, Hopper e Fonda) era uma grande estrela. A narrativa é tão liberal quanto os personagens. Não há uma história de amor convencional e o filme tem um final brutal e infeliz. Feito com um orçamento muito pequeno, foi um enorme êxito de bilheteria. Ajudou a abrir o caminho para obras que desafiaram as convenções de Hollywood, inclusive novos filmes para exibir o talento de Nicholson, como Cada um vive como quer e O dia dos loucos.”
Sem destino (Easy rider, EUA, 1969). Direção de Dennis Hopper. Com Peter Fonda (Capitão América), Dennis Hopper (Billy), Jack Nicholson (George Hanson).
Referência: 1001 filmes para ver antes de morrer. Steven Jay Schneider (editor). Rio de Janeiro: Sextante, 2008
Segunda Guerra Mundial, Pianosa, ilha no mar mediterrâneo, próximo à Toscana. O Capitão Yossarian faz parte do esquadrão de bombardeiros da Força Aérea Americana. Na primeira sequência do filme, ele é esfaqueado por um varredor de rua. Entra flashback, a montagem do filme assume o tom irreverente com idas e vindas na história, confundindo o espectador entre a realidade da guerra e a mente do soldado possivelmente moribundo.
Ardil 22, baseado no romance antibelicista de Joseph Heller, é uma incursão pela loucura da guerra, com ironia, humor negro e personagens insanos. A própria premissa do título representa os absurdos meandros da guerra: para tentar ser mandado para casa, Yossarian pretende demonstrar insanidade, mas um médico o alerta que quem deseja escapar da guerra é perfeitamente lúcido, invalidando o argumento; os dois discutem , o doutor conclui que este é o Ardil 22.
A película faz parte de uma série de obras que, nos anos 70, questionaram de forma contundente as incursões militares americanas, principalmente na Segunda Grande Guerra e na campanha do Vietnã. Além de Ardil 22, vale citar Mash (1970), Patton, rebelde ou herói (1970), O franco atirador (1978) e Apocalypse now (1979).
Ardil 22 (Catch-22, EUA, 1970), de Mike Nichols. Com Alan Arkin (Yossarian), Martin Balsam (Colonel Cathcart), Richard Benjamin (Major Danby), Arthur Garfunkel (Nately), Jack Gilford (Doutor Daneeka), Anthony Perkins (Padre Tappman), Martin Sheen (Dobbs), Jon voight (Milo), Orson Welles (General Dreedle).
Frank Serpico (Al Pacino) ingressa na polícia de Nova York e rapidamente se defronta com uma realidade: a corrupção dos policiais de rua. Colegas são responsáveis por coletas de dinheiro, vindo de cafetões, pessoas ligadas ao jogo, traficantes. O dinheiro é dividido entre membros do departamento, com parte reservada para os delegados e chefes do departamento.
O filme é baseado na história de Serpico, policial que serviu nos anos 70 e não aceitava dinheiro de suborno. Ele passa a ser perseguido pelos colegas, sua honestidade se transforma em ameaça ao departamento. O policial é sistematicamente transferido e sofre represálias.
Serpico empreende uma luta pessoal contra a corrupção, buscando apoio nas corregedorias, indo aos tribunais. Sofre uma tentativa de assassinato e tem que se mudar para o exterior, passando a viver sob o serviço de proteção às testemunhas.
Sidney Lumet compõe um filme vigoroso, contido nas cenas de violência, mas forte nas relações sociais que se criam a partir de um dos principais problemas da polícia na Nova York dos anos 70. O filme valeu a segunda indicação de Dustin Hoffman ao Oscar de melhor ator, após o sucesso de O poderoso chefão (1972).
Serpico (EUA, 1973), de Sidney Lumet. Com Al Pacino, John Randolph, Jack Kehoe, Barbara Eda-Young.
Hair (EUA, 1979), de Milos Forman, tem o poder das lembranças. Passei parte da adolescência e juventude dentro de uma sala de cinema. Lembro-me de assistir à história de Claude e Berger cinco ou seis vezes. Saía do cinema sem entender as sensações, voltava na semana seguinte.
Explicações para o fascínio? A rebeldia dos jovens hippies, livres pelas ruas da cidade, queimando convocações do exército, urinando na grama, invadindo festas da alta sociedade, se reunindo em grupos para fazer sexo, consumir drogas. As músicas. Donna Summer voando sobre o parque (Aquarius). Os cabelos ao vento de Hud andando a cavalo (Sodomy). O lamento da mulher de Woof vendo seu companheiro entregue ao destino (Easy to be hard). O carro cheio de jovens cortando o deserto, capota abaixada, o sol no rosto, a felicidade que vai acabar em pouco tempo (Good morning starshine). As lágrimas rolando pelo rosto de Berger de cabelos cortados, em uma fila de soldados, embarcando para a realidade (Manchester). O grupo de amigos no alto da colina, as cruzes brancas no cemitério, a multidão de jovens invadindo o gramado do Capitólio (Let the sunshine in).
É isso. É um musical. É Hair… É o cinema dos anos 70.
Nas mãos de Sidney Lumet, atores enclausurados em pequenos ambientes se transformam em gigantes da interpretação. E os filmes, em clássicos. Doze homens e um segredo (1957), seu filme de estreia, tem esta marca. Um dia de cão (1975), idem.
Até os deuses erram é palco para brilhante interpretação de Sean Connery. O ator interpreta o Sargento Johnson, policial britânico que há 20 anos convive com crimes hediondos. O policial participa da investigação de um estuprador de meninas que já fizera três vítimas. Um suspeito é preso nas ruas da cidade após aparecer a quarta vítima. Johnson fica sozinho com o suspeito na delegacia. O interrogatório motiva uma explosão de violência do policial.
O filme é baseado em peça teatral. Os momentos marcantes são os longos embates psicológicos entre os personagens. O confronto entre Johnson e sua mulher aflora a personalidade doentia do sargento, agravada pelos crimes que investigou. O investigador responsável por apurar o que aconteceu dentro da cela entre Johnson e o criminoso provoca um jogo de tortura psicológica entre interrogado e interrogador.
O melhor do filme fica por conta de Johnson e Baxter (Ian Bannen), o provável pedófilo, na sala de interrogatórios. A edição do filme surpreende o espectador, inserindo a sequência em três momentos da narrativa. Os acontecimentos são os mesmos em cada sequência, porém o diretor escolhe pontos de vista diferentes entre os envolvidos. A revelação da psicose de Johnson também tem o toque de gênio de Sidney Lumet: flashes de imagens desconexas deixam o espectador compartilhar da dor do policial.
Em Até os deuses erram o espectador chega ao limite da angústia. Difícil sair impune destes ambientes enclausurados de Sidney Lumet.
Até os deuses erram (The offence, EUA/Inglaterra, 1972), de Sidney Lumet. Com Sean Connery, Trevor Howard, Ian Bannen.
O caminho do arco-íris (Finian’s Rainbow, EUA, 1968). A carreira de Francis Ford Coppola no mainstream de Hollywood não poderia começar melhor: dirigindo a adaptação de famoso musical da Broadway, com o mito Fred Astaire no papel principal. O jovem recém-saído da universidade de cinema, autor até aquele momento de dois filmes independentes, entrava no perigoso circuito dos poderosos produtores de cinema.
“Aos 28 anos, Coppola (…) aceitou dirigir O Caminho do Arco-íris – que já chegou às suas mãos com um orçamento mínimo para um musical, um elenco pré-escolhido e um produtor de grande força -, contrariando suas próprias expectativas. Ele explicou: ‘Comédia musical é algo que eu cresci vendo com minha família, e achei, francamente, que era uma coisa que encheria meu pai de orgulho.’ Coppola, porém, era rigidamente controlado pelo produtor Joe Landon. O jovem diretor detestava a ideia de ter de filmar no quintal do estúdio, queria trabalhar em locação no Kentucky, onde a história se passava; mas, obviamente, o estúdio negou seu pedido e, ao contrário de Beatty, ele não tinha força suficiente para conseguir o que queria. Nos últimos dias de filmagem, Coppola conseguiu escapar e fugiu para a região da baía de São Francisco com alguns atores e uma equipe mínima, e filmou em estilo de guerrilha.” – Peter Biskind
Apesar da ousadia estética de Amor, sublime amor (1961) e do sucesso retumbante de A noviça rebelde (1965), ambos de Robert Wise, o gênero musical já estava em franca decadência nos conturbados anos 60, época das desenfreadas experimentações psicodélicas, dos hippies americanos queimando convocações para o serviço militar, das mulheres abraçando com fervor a causa feminista, dos jovens saindo às ruas em massa para protestar contra atos governamentais. Parecia não haver espaço para o cinema feliz, no qual as pessoas cantavam ao invés de conversar, e muito menos para o sapateado ingênuo de Fred Astaire.
Em O caminho do arco-íris. Coppola copiou os clichês do gênero musical, talvez pressionado pelos produtores e, quem sabe, intimidado pela magnética presença de Fred Astaire. O famoso dançarino, por sua vez, é a sombra de si mesmo no filme. Seus números musicais são apagados, ensaia alguns passos em momentos sem grande expressão. Mesmo assim, Coppola criou uma sequência final belíssima, espécie de homenagem àquele que encantou o mundo por décadas com danças espetaculares. Ao som de “How are things in Glocca Morra”, entoada pelos demais personagens do filme, Fred Astaire caminha sozinho por estradas, vales e montanhas. Vai em busca do arco-íris, esta ilusão multicolorida que domina o imaginário de sonhadores, como o próprio cinema, como o próprio Fred Astaire.
Referência: Como a geração sexo-drogas-e-rock’n’roll salvou Hollywood. Peter Biskind. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2009.
“Chamai-me Ismael” é das primeiras frases famosas da literatura universal. É o início de Moby Dick, de Herman Melville. Após se apresentar, Ismael narra que em momentos de tédio, “sempre que a minha alma se transforma num novembro chuvoso… percebo então que chegou a hora de voltar para o mar.” Ismael embarca no navio do Capitão Ahab e acaba envolvido na maior batalha de todos os tempos do homem contra a força da natureza.
Moby Dick influenciou grandes obras da literatura. O escritor inglês Joseph Conrad abordou os limites do homem em livros como Nostromo, Lord Jim e Coração das trevas. No cinema, Na natureza selvagem (2007), direção de Sean Penn, usou da mesma temática, resultando em uma narrativa bela e espetacular – e aqui vale a ressalva: nas mãos de bons diretores como Sean Penn, a natureza ocupa seu lugar de espetáculo cinematográfico, beleza selvagem frente ao homem diminuto, vencível.
Mais forte que a vingança (Jeremiah Johnson, EUA, 1972), de Sydney Pollack, é outra referência a Moby Dick no cinema. A analogia começa na introdução. O filme abre com plano geral de barco a remo no rio, se aproximando lentamente da margem. Jeremiah Johnson (Robert Redford) desce do barco e, enquanto caminha, um narrador repete basicamente as palavras do início de Moby Dick. “Seu nome era Jeremiah Johnson. Dizem que ele queria ser um montanhês. A história diz que foi um homem inteligente e aventureiro, próprio para as montanhas. Ninguém sabe de onde ele veio, mas isso não importava muito. (…) Comprou um cavalo e outras coisas necessárias à vida nas montanhas. E disse adeus à vida que tinha lá embaixo. Esta é a sua história”. Enquanto ele cavalga rumo às montanhas rochosas do Colorado, de onde nunca mais sairia, se transformando em uma lenda, começa a tocar a balada Jeremiah Johnson. A letra da música ajuda a definir o perfil do personagem, caracterizando um homem desiludido com a vida, provavelmente traumatizado pela sangrenta guerra civil americana, que recorre ao isolamento das montanhas. Como Ismael, busca refúgio na natureza selvagem.
Sydney Pollack (1934/2008) se baseou na história verídica do lendário ermitão Jeremiah para compor uma apologia ecológica, defesa do estilo de vida dos índios americanos e dos montanheses que usavam os recursos da natureza de forma consciente, tirando dela apenas o necessário para sobreviver. As paisagens do filme são deslumbrantes e ajudam a entender porque alguns poucos aventureiros se arriscam em territórios inóspitos. Gelo, grandes rios, ventos inconstantes, precipícios, estreitos caminhos, animais selvagens, são forças difíceis de vencer. É território dos índios que aprenderam a respeitar os desafios. Jeremiah Johnson conquista o respeito dos índios porque, como eles, passa a entender a natureza.
Até mesmo no lado mais cruel da história, a vingança, o respeito mútuo entre Jeremiah e uma tribos de índios, os Corvos, permanece. Os índios sempre o atacam isoladamente, não em bando, em lutas individuais até a morte, prevalecendo a lei do mais forte, assim como na natureza.
Mais forte que a vingança é um filme lento, contemplativo, pontuado por planos gerais deslumbrantes, minimalista em diálogos. As imagens permitem ao espectador sentir e se encantar de forma lenta com a história. Como o Moby Dick de Melville. Certas narrativas exigem paciência para construir a história, parágrafo a parágrafo, cena a cena, se deparando aos poucos com histórias envolventes, até chegar a finais sublimes da literatura e do cinema.