Coisas modernas

Quando escrevo, evito palavras desgastadas. Modernidade. Detesto a palavra, pode ser birra, mas reconheço, não consigo imaginar mais a vida sem essas coisas modernas. Tenho uma amiga que jura, “nunca vou ter celular”. Mas ela é viciada em mensagens eletrônicas. Um dia, ela me enviou o trecho final do conto Os Mortos, de James Joyce, o que me lembrou de tempos bons da literatura e do cinema.

Quando assisti a Os vivos e os mortos (The dead, 1987, EUA), de John Huston (1906-1987), adaptado do conto de James Joyce, saí do cinema com aquele sentimento incompreensível que nasce diante da verdadeira obra de arte. O trecho final do conto, interpretado pelo ator irlandês Donal McCann, “enquanto ele ouvia a neve cair suave através do universo, cair brandamente – como se lhes descesse a hora final – sobre todos os vivos e todos os mortos”, é o que se chama poesia no cinema. Harmonia perfeita de cinema e literatura. Passei a garimpar os filmes de John Huston. Coisa de cinéfilo, a gente faz uma relação de filmes e não sossega enquanto não assistir a todos.

John Huston foi boxeador, criador de cavalos, pintor, escritor. Para sorte nossa, se decidiu pelo cinema. Excêntrico, exigiu que as filmagens de Uma aventura na África (The African Queen, EUA, 1952) fossem realizadas em locações no continente africano. Queria caçar um elefante. Chegava a parar as filmagens por dias e saía à caça de seu elefante. Clint Eastwood contou esta história no filme Coração de caçador (White hunter, Black heart, EUA, 1990). John Huston levou uma vida apaixonada, entre bebidas, mulheres, viagens, filmes. No final da vida, doente e debilitado, dirigiu Os vivos e os mortos na cadeira de rodas e mostrou ao mundo o cinema que já não existia.

Tenho ido pouco ao cinema – meio por falta de tempo, meio por preguiça, muito por não ter o que ver. O cinema contemporâneo mostra a falta que fazem John Huston, Billy Wilder, Alfred Hitchcock, John Ford, Luchino Visconti, François Truffaut. Eles estão hoje naquelas prateleiras esquecidas que levam a etiqueta Clássicos. Imagino a sensação que meu pai, meu tio que era porteiro do Cine Jacques, sentiram vendo filmes como Rocco e seus irmãos (Rocco i suoi fratelli, Itália, 1960), de Luchino Visconti, naquela tela grande e mágica do cinema. Não tinham nada além do cinema naquela época. Creio que bastava.

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Feliz ano novo

A mãe fez o sinal da cruz assim que o carro passou pela ponte sobre o rio das Velhas. Voltou o rosto com olhar carinhoso para os filhos no banco de trás da perua Dodge, roçou de leve a mão do pai no volante. Era seu jeito de encarar com otimismo os sessenta quilômetros de estrada de terra que nos separavam do sopé da Serra do Cipó.

Cerca de três horas antes, o pai cumpriu seu ritual de arrumar cuidadosamente as bagagens no carro. No porta-malas traseiro, mochilas das crianças, a pesada mala da mãe, panelas, pratos e talheres, mesa de acampamento, banquinhos dobráveis, fogareiro de três bocas, dois pequenos botijões de gás – um para o fogo da comida, outro para o lampião. No bagageiro acoplado em cima do carro, a barraca de dois quartos, colchões, travesseiros e roupas de cama.

– Não esqueceu nada? – perguntou à mãe enquanto dava voltas com a corda de nylon, apertando a lona de plástico sobre as bagagens. Um dos meus desejos ainda é aprender a dar aquele nó de marinheiro no final, a corda rigidamente esticada, prensando a lona.

À medida que o Dodge vencia as lombadas da estrada, o barulho de panelas e talheres batendo se misturava às músicas de Nat King Cole, Elvis Presley e Frank Sinatra saídas da fita cassete gravada pelo pai. O sol forte da manhã castigava o interior do carro, os vidros abertos, a poeira começava a impregnar em cada um de nós.

– Mãe, meu estômago tá embrulhando.

– Falta pouco meu filho, já estamos chegando.

– Um humm… – insinuou o irmão mais velho, sorriso nos lábios, olhos presos no intenso movimento de final de ano da estrada. Carros abarrotados de bagagens no teto, pneus arriados pelo peso, passageiros se espremendo nos bancos. O pai cortou um fusquinha, a mãe reclamou da imprudência naquela estrada perigosa.

– Perigo nada, olha a reta. – disse o pai, voltando a se concentrar no volante, nas lombadas sem fim que faziam meu estômago dar voltas sobre ele mesmo.

– Não tome o pozinho que fica no fundo do copo. – alertou a mãe enquanto misturava o bicarbonato com limão. Fechei os olhos e tomei o líquido de um gole só. Ela entrou na barraca para acabar de arrumar os colchões, as mãos passando sobre os lençóis estendidos para tirar as dobras e deixar aquele suave toque de mãe na cama dos filhos.

A barraca tinha dois quartos separados que se prendiam na armação de tubos de alumínio. Uma lona cobria toda a extensão dos quartos, deixando um vão em frente a eles que servia como uma espécie de sala. Após o fecho que encerrava o interior, uma extensão retangular servia de varanda. O pai estava agachado do lado de fora, martelo na mão, batendo ainda mais nos piquetes, esticando as cordas que prendiam o teto de lona no chão.

– Tá vendo a cachoeira? Nesta época do ano costuma cair um toró no alto da serra, chuva forte, a enchente desce de repente, não dá nem tempo de correr. Por isso nunca podemos armar acampamento perto do rio. Aqui é seguro e não há vento que levante isto. – o pai tocou com os dedos a corda esticada.

Naquela noite, sentados na grama do lado de fora da barraca, o pai abriu uma garrafa de vinho, a mãe distribuiu refrigerante para os filhos. Uma garoa começou a incomodar, esfriar a noite quente de verão. As camisinhas presas nos bocais dos liquinhos iluminavam o acampamento. Perto das luzes, famílias e amigos reunidos, alguns rindo alto, outros silenciosos observavam o tempo, casais abraçados, crianças deitadas em pequenos colchões, um cachorro pequinês irritava com latidos agudos.

A garoa deu lugar a pesadas gotas de chuva. Recolhemos às pressas os banquinhos, o isopor com as bebidas, a garrafa de vinho. Um raio caiu no alto da serra seguido de um estrondo ensurdecedor. A chuva mudava de lado de uma hora para outra, o vento forte começou a balançar os tetos das barracas. A mãe olhava assustada para o alto da serra, estremecendo com os raios, se benzendo a cada trovão.

Entramos em um dos quartos da barraca. O vento balançava o teto, fortes rajadas de chuva batiam em cima, nos lados. A irmã caçula estava sentada no canto, os braços segurando as pernas dobradas, a cabeça pousada nos joelhos. A mãe puxou-a para junto de si.

Ouvi gritos do lado de fora, passos de gente correndo, mais gritos. Saí do quarto e abri o fecho da porta, o irmão também espiava. Solto, o teto da barraca em frente balançava ao vento. Três homens seguravam as cordas que ainda restavam presas no chão. Quando o vento diminuía, a lona descia sobre a barraca e logo a seguir uma forte rajada a levantava de novo. As mulheres no interior gritavam, uma delas não resistiu ao desespero, saiu correndo e entrou no carro, parado pouco à frente.

Ao lado, a lona de outra barraca rasgou-se ao meio. A água invadiu o interior, o casal tirava roupas de cama e mochilas, indo e voltando correndo do carro. De repente, todos os ventos se reuniram no alto da serra e desceram juntos pelo acampamento, foi assim que a mãe contou a história às amigas depois. O vento varreu quase tudo que encontrou pelo caminho. Tetos de barraca voaram, alguns bateram na copa das árvores e ficaram estendidos sobre os galhos, outros caíram no rio. Roupas de cama espalharam-se pela grama, panelas rolaram. Um estrondo alastrou-se pelo céu, ecoando em cada montanha que achou à sua frente.

A mãe gritou pelos filhos. Entramos assustados no quarto da barraca. Ela abriu os braços, nos aconchegando em seu peito, sua cabeça acima das nossas, olhos atentos a cada movimento, ouvidos presos nos trovões.

– Onde está seu pai? Onde está seu pai? – seus braços apertaram mais ainda os filhos.

Poucos segundos depois, o pai entrou. Seu rosto respingando água, roupas encharcadas. Ele correu os olhos por toda a barraca, passando as mãos pelo teto, às vezes ajoelhava-se em um canto mais difícil. Por fim, sentou-se do lado de fora dos quartos, pegou seu copo de vinho que permanecia intacto em cima da mesinha de acampamento.

– Dei uma olhada nos piquetes lá fora, estão todos bem presos, as cordas no lugar, olha só, a barraca nem se mexe. – disse olhando para o teto. Em seguida, levantou o copo de vinho no gesto característico, a mãe ainda agarrada aos filhos.

– Feliz ano novo.

Gotas de óleo

Um dia jogo óleo nos cabos desse elevador.

– Pensando na vida Seu Joaquim? – perguntou Dona Marta, depois de observar por alguns segundos o vizinho olhando para o teto do elevador.

Há quase quarenta anos morando naquele prédio, Joaquim tinha a impressão que cabos, roldanas, máquinas e portas daquele elevador nunca tinham visto lubrificação. Depois de acabar com a pequena fortuna que o avô lhe deixara, ele fora ganhar a vida consertando pequenas máquinas. Joaquim tinha prazer em esguichar óleo Singer nas junções, fazer a engrenagem funcionar lentamente até deixar de ouvir completamente o ruído de máquina contra máquina. Ele voltou os olhos para Dona Marta. Lembrou-se sem saudade de uma noite lá pelos anos cinqüenta. O marido viajando, os dois no mesmo elevador. A porta se abriu no andar onde ela morava. Marta ficou olhando para Joaquim, a porta voltou a se fechar e ela subiu para o apartamento dele.

– É a única coisa que a gente faz agora Dona Marta, pensar na vida  – respondeu Joaquim. O elevador parou no andar de Dona Marta. Ela saiu lentamente, sem mesmo se despedir.

Joaquim entrou no apartamento pensando na vergonhosa derrota daquela noite. Eu nunca deveria ter deixado o rei sem proteção. Rainhas foram feitas para isso, proteger os reis. Pensou em outros jogos, em noites no Cassino da Urca rodeado de fichas e dançarinas. Talvez fosse a sua sina, perder, perder e sair com uma garota pendurada em seu pescoço, cheirando a bebida, para uma noite qualquer em quarto de hotel.

Preciso me concentrar. Amanhã pego de jeito aquele velhaco do Valdir. Abriu a janela da sala. Ouviu irritado o ranger de janela velha. Armou o tabuleiro de xadrez na mesa para pensar. Amanhã pego o Valdir de jeito.

O silêncio do apartamento. Não consigo me concentrar. Música, música. Preciso de música. A voz de Frank Sinatra invadiu seus ouvidos. Há muitos e muitos anos, em que ano Joaquim? não me lembro mais, final de década de 30, sim, é isso, estava em Nova Iorque. Fui com amigos a um bar, final de noite, uma orquestra desconhecida cantando sabe-se Deus para quem. A plateia mais preocupada com o último uísque, homens e mulheres cheirando a álcool, fumo, extasiados da noite. No palco, um rapaz de uma magreza tímida e feia cantava. Alguém disse: É o Frank Sinatra. Esse menino vai longe.

Virou a capa do disco. “Para Joaquim, amor da minha vida. Da sua Eleonora”. A voz de Frank Sinatra tomou conta “And now, the end is near, and so I face, the final curtain / my friend, I’ll say it clear / I’ll state may case, of wich I’m certain / I’ve lived, a life that’s full / I’ve traveled each every highway / And more, much more than this / I did it my way.”

Quem é Eleonora? Não consigo me lembrar. Eleonora. É a Nora? Não. Nora tinha cabelos vermelhos, um jeito inesquecível de descer pelo meu corpo. Preciso me concentrar, pegar o Valdir de jeito amanhã. Vou dormir. Fechou a janela. Esse barulho.

Joaquim foi até a dispensa, pegou sua caixa de ferramentas. O velho tubo de óleo Singer. Derramou algumas gotas na janela, começou o lento movimento de vai e vem. Mais algumas gotas, vai e vem, o ruído sumindo aos poucos. Mais algumas gotas, mais, a janela agora desliza suave, sem barulho. Joaquim podia ouvir até mesmo a brisa solitária da noite.

Confeitaria Colombo

“Oi. Chegou há muito tempo?”

“Não. Acabei de chegar.”

Pedro olhou para o copo com resto de água turva, mistura de gelo derretido e coca, em cima da mesa.

“Desculpe. Fiquei perdido, faz tempo que não venho ao Rio, acabei me confundindo ….”

“Não precisa explicar, eu, eu…. cheguei cedo, eu sempre chego cedo, você me conhece, eu ….”

Pedro apertou a mão de Ângela levemente. Ela desviou o rosto, escondendo os olhos molhados, escondendo o rosto levemente vermelho de ansiedade, escondendo de si mesma a vontade de olhar fundo nos olhos dele. “Cheguei. Chegaste. Vinhas fatigada / E triste, e triste e fatigada eu vinha.”

“Olavo Bilac freqüentava esse lugar. Todos os dias no final da tarde. Ficava na calçada conversando até não poder mais. Conversava com os amigos, até com estranhos que lhe pediam autógrafos. Ele adorava a fama. Você consegue imaginar a beleza de tudo isso? poetas, escritores, você consegue imaginar as conversas, as ideias, os amores que nasciam nas calçadas. Naquela época as pessoas conversavam, Pedro.”

O garçom chegou com o bloquinho nas mãos.

“Um conhaque, por favor.”

“Ângela! Você não bebe.”

Ela olhou distraída para a porta de entrada. “Tinhas a alma de sonhos povoada, e a alma de sonhos povoada eu tinha….”

“É verdade.” Ângela fez um gesto para o garçom.

“Um capuccino. Sem conhaque.”

“Dois, por favor.”

Um casal de idosos entrou, sentaram-se à mesa perto da porta da confeitaria. Um breve ressentimento tomou conta de Ângela. “Era ali que o poeta ficava, sentado nos finais de tarde”. Seus olhos encontraram de passagem os da velha senhora que percorriam o ambiente, como se fosse a primeira vez. Ângela passou a olhar para a decoração que tanto conhecia, envolvida pelo longo silêncio que se interpôs entre ela e Pedro. Ela ficava sempre fascinada com as bancadas de mármore, os lustres, aquela mobília de época, uma belle époque de poesias, de romance. “E paramos de súbito na estrada / Da vida: longos anos, presa à minha / A tua mão, a vista deslumbrada / Tive da luz que teu olhar continha”.

“Quanto tempo você fica fora dessa vez?”

Pedro demorou alguns segundos a responder, buscando tempo na colher mexendo o café.

“Dois anos. Talvez mais. É um grande projeto, a fábrica aprovou a ideia, esse carro, não sei, esse carro é o projeto da minha vida.”

“Eles não conversam.”

“O que?”

“O casal de idosos sentado na mesa de Bilac. Ela fica olhando a decoração, presta atenção nas pessoas que entram. Ele lê uma revista. Existe esse tempo? Basta apenas estar perto um do outro, assim, perto, respirando juntos. Ou é um tempo em que nem a beleza diz mais nada. Sua mulher vai com você?”

“Vai.” Pedro respondeu rapidamente, largando a colher de súbito dentro da xícara  ”Nós vamos procurar uma casa em Turim. É uma fase nova na minha vida, eu preci….”

“Nel mezzo del camin….”

“Como?”

Ângela tomou um pequeno gole do cappuccino, sentiu o gosto quente e doce tocando sua língua, deixou o líquido deitar na sua boca antes de deixá-lo descer pela garganta. “Na partida / Nem o pranto os teus olhos umedece”.

“Seu café está esfriando.”

Primas

Por sorte a chuva parou. Deixou o ar da primeira noite de janeiro menos quente, mais gostoso para encontros amorosos. A maioria das barracas está fechada, às escuras, um ou outro lampião com a luz baixa faz imaginar alguém ainda por aí, olhando estrelas ou bebendo, o que costuma dar no mesmo.

Não sei se Flávia consegue sair a essa hora. “Vou ver”, ela prometera. Para meu coração adolescente. para meus olhos, boca, mãos, braços e tudo que você imaginar, era uma promessa. No pequeno caminho de pedregulhos entre as barracas vem andando uma mulher. Quase, uma menina. Flávia. Longos cabelos morenos encaracolados, olhos entre castanho e amêndoa (ainda não enxergo daqui, mas conheço de cor esses olhos), lábios com gosto de morango em meus sonhos – como Tess do Roman Polanski, o andar como quem pisa na ponta dos pés.

“Oi, peraí, você não é…”

“A Flávia pediu para avisar que não vem. O pai, você sabe.”

“Que pena.”

“Pois é. Sou a Josi.”

Eu sei. A prima da Flávia. Cabelos louros, lisos, rosto claro, faces brancas com manchas cor-de-rosa nas bochechas, olhos – está escuro não consigo ver a cor dos olhos. O rosto… tem sua graça.

“Oi Josi.”

“Eu preciso ir. Vim só dar o recado.”

“Não, fica. Vamos conversar um pouquinho. Tenho reparado em você.”

“Eu também. Também reparo em você.”

No canto, separada da turma, ela ficava me olhando, lembro agora. Meninos e meninas se reuniam todas as noites perto da quadra de vôlei, conversando, flertando. Josi, retraída, ficava em silêncio, abaixava a cabeça quando se falava uma ou outra bobagem. A gente bebia vinho Chapinha escondido dos pais e ela com aquele olhar assim, recriminando. Alguém acendia um cigarro e ela logo dava um jeito de ir embora. Voltava o rosto uma ou duas vezes e desaparecia no meio das barracas.

Agora, encolhida no canto do banco, os olhos baixos, os pés brincando com as pedras no chão, as mãos sem saber direito onde ficar… Passaram-se alguns minutos, apenas o barulho da cachoeira, das águas convidativas de janeiro.

“Tenho que ir embora.”

“Não. Espera.” Levantei-me e a puxei pelo braço. Josi encostou a cabeça em meu peito. Senti o cheiro de seus cabelos morenos, minha mão abriu caminho entre os fios encaracolados até o seu pescoço. Ela olhou para cima, seus olhos castanho-amêndoas parados nos meus. Um sorriso moldou suas faces morenas. Nossos lábios e línguas se juntaram. Ela tem gosto de morango.

Naquela noite, eu era apenas um adolescente beijando uma menina pensando em outra. Apenas um adolescente.

Poemas adolescentes

A freira debruçou-se sobre os ombros de Bruno, olhou as letras no papel e ordenou que ele repetisse a lição: a s d f g, a s d f g. Na simplificação dos meninos do bairro, a Escola Profissionalizante Nossa Senhora da Piedade era chamada Cursinho das Freiras. Ficava na Rua das Freiras, fácil de falar como a Rua de Baixo e a Rua de Cima.

Na década de 70, o trágico desmoronamento da construção da Gameleira soterrou e matou diversos operários na hora do almoço. A construção foi abandonada, ficaram as ruínas e um gigantesco terreno vazio, plano – onde hoje funciona o Expominas. Os meninos fizeram ali um campo de futebol. Terra batida, pedras no lugar das traves, linhas imaginárias marcando as saídas do campo. Nas tardes de sábado, os meninos se reuniam depois do almoço, uns convidando os outros: “vamos jogar bola no cemitério.” Tudo muito simples para mentes ainda desprovidas de dor e sofrimento.

Ainda criança, mas já sabendo da necessidade de trabalhar cedo, Bruno matriculou-se no curso de datilografia das freiras. Passava uma hora por dia dedilhando as teclas, dedo a dedo, letra a letra, até decorar a seqüência correta: a s d f g, ç l k j h. Por conta dessa persistência e do fascínio de ver as palavras se formando a tinta, virou exímio datilógrafo. Quando começou a trabalhar de office-boy, contou nota a nota o primeiro salário, descontou o dinheiro da condução e gastou tudo na compra de uma máquina de escrever portátil, Olivetti Lettera 35, de metal, cinza, fita metade preta metade vermelha para os grifos.

Abandonou o cursinho das freiras e continuou o treinamento diário. Saía do trabalho, ia para o colégio noturno e depois das aulas gastava meia hora na mesa da sala de jantar, batendo a máquina, como a mãe costumava dizer. Às vezes, o barulho acordava a mãe, ela levantava-se, perguntava se Bruno tinha jantado e emendava, “o que você está fazendo?” “Escrevendo”, era a invariável resposta. Escrevendo trabalhos de escola, foi dos primeiros da classe a sempre entregar tudo datilografado, impecavelmente corrigido, escrevendo arremedos de contos, crônicas, qualquer coisa que se assemelhasse a um texto. Escrevendo poemas e mais poemas que o ajudaram muito na difícil arte de conquistar.

Era a época das discotecas, das festinhas de bairro, cada fim de semana na casa de um amigo. Meninos e meninas chegavam com LPs, compactos, cassetes, o som 3 em 1 no volume máximo. Todo mundo dançando feito John Travolta no filme Os embalos de sábado à noite. Menos Bruno. Ficava encostado na parede da sala. Seus olhos sempre se apaixonavam, mas até ele se decidir a menina tinha sumido, sozinha ou com alguém mais despojado. Restava a máquina de escrever à noite, a mãe assustada pela hora daquele negócio batendo.

Quando o tempo dava uma oportunidade ao flerte, bem lento no seu caso, ou seja, quando a menina se permitia a olhares furtivos durante dias – em alguns casos meses – Bruno descobriu um jeito. Entregava um pedaço de papel dobrado dentro de um livro, no caderno de escola, ou pedia uma amiga para se fazer de correio. Ele esperava a menina ler e reler o poema, telefonava, convidando para um domingo à tarde no cinema. Sentavam, os braços roçando, dedos acariciando o dorso da mão até se entrelaçarem. Beijavam-se e o filme ficava esquecido na tela.

Nessas noites a mãe ouvia a máquina de escrever batendo mais forte.

Philip, o gato

Quando criança, nunca dei tiro de chumbinho em gatos. O máximo que fiz, por curiosidade, foi segurar um felino de cabeça para baixo, a três palmos do chão, para ver se caía em pé. Sempre respeitei os bichanos. Adolescente, conheci o Rio de Janeiro. Nunca vou me esquecer do Pão de Açúcar, das argentinas na praia, do gato.

Minha tia morava em Ramos, uma hora de ônibus até as praias de Copacabana e Ipanema. De dia, praia, à noite, por prudência e idade, conversa na porta da rua. Meus primos tinham hábitos suburbanos. Frequentavam a quadra do colégio no sábado, ouviam jogo do Flamengo no domingo á tarde, jogavam baralho até tarde da noite.  E tinham um gato. Gato errante de muros e lamentos. Desaparecia toda noite.

Casa pequena, dois quartos, eu dormia no chão da sala. Era casa geminada, mofo nas paredes, tacos soltos, alguns podres. Naquela noite, fui dormir cedo, cansado da praia. Estendi o colchão no canto, encostado na parede. Abri os olhos na madrugada. A cerca de 20 centímetros do meu rosto, o gato. Sentado no chão da sala, a elegância dos felinos, boca fechada, bigodes equilibrando o rosto numa estética perfeita, pelos limpos e brilhantes, olhos parados nos meus. Fechei os olhos, abri. O gato continuava na mesma posição, como escultura de olhos vivos. Virei para a parede e demorei a adormecer, sabia que ele ainda estava lá, observando. Durante todas as outras noites dormi virado para a parede, rosto colado no mofo.

Depois desta noite, não sei se por acaso ou cisma, os gatos sempre procuram meu olhar. À noite, dirigindo, quando o farol bate num felino, naquele breve instante em que ele pára, calcula o risco do atropelamento e depois desaparece, meu olhar se encontra com o dele. Não, esta história não vai chegar a animais pretos na encruzilhada ou a Edgar Allan Poe. Nada de bruxos, nada de reencarnações. É história de amantes como outra qualquer. A minha namorada tinha um gato.

Conheci Mércia em um bar de jornalistas. Próximo à redação do jornal, o bar ficava aberto pela madrugada, esperando os notívagos. Os jornalista chegavam um a um, alguns eufóricos pelas belas reportagens, outros frustrados pelos cortes do editor, outros sonhando mais alto do que meras resenhas culturais, como Mércia. Ela trabalhava no caderno 2, passava a noite conversando sobre as matérias que fizera e as que não fizera. Quando conversava sobre contos policiais, seus olhos, bem, num desses olhares… terminamos a noite em seu apartamento.

Eu o enxerguei assim que ela abriu a porta: Philip, o gato. Enrodilhado no sofá da sala, levantou a cabeça, seus olhos fixos em mim. Passou a ser rotina. Duas ou três vezes por semana, do bar direto para o apartamento. Dormíamos até tarde, dez, onze da manhã, mas era durante a madrugada que temores me assaltavam. O gato, em algum canto da casa, eu sabia, espreitava. Meu olhar, vez por outra, cruzava com o dele na porta do quarto.

Naquela noite, quando entramos, eu não vi Philip. Estava cansado, fui direto para o quarto. Adormeci. Acordei perto das cinco da manhã, uma sensação de que estava sendo observado. Pressenti um vulto se esgueirando na porta do quarto. Olhei em volta, a luz fraca do abajur projetou sombra na parede, felinamente rápida. Pulei da cama, Mércia se assustou. Suor começou a escorrer pelo meu rosto, ela perguntou se eu estava passando mal. “Preciso de um banho.”

Virei o rosto para o chuveiro, deixei a água quente bater em meu rosto por longo tempo, aliviando meus pensamentos. Quando entrei no quarto, Mércia estava sentada na beira da cama, minha camisa nas mãos, olhar desolado. “Você não vai acreditar.” Ela abriu os braços e estendeu a camisa de malha. Três longos cortes paralelos, começando perto da gola, desciam até o fim da camisa, terminando pouco antes da barra. Perfeitos, descendo em diagonal, como três garras rasgando meu peito.

Mércia saiu gritando por Philip, fiquei com a camisa nas mãos, sentindo os cortes. Peguei uma camisa qualquer no guarda-roupa, vesti as roupas apressado sem dizer nada. Na porta, beijei Mércia pouco menos demorado, os olhos tentando encontrar o gato atrás da amante. Desci as escadas, abri o portão da entrada, olhei para cima. Mércia estava na janela, como sempre. Mas eu só enxergava o olhar de Philip, em algum canto da casa.

A estranha

“É um Primitivo. Italiano. Tem aroma intenso, frutado com toques de ameixa, especiarias e baunilha.” “Eu não entendo nada de vinhos. Gosto, apenas.” Enquanto virava lentamente o líquido na taça de Camila, Fernando pensou em mudar de assunto, disfarçar também sua ignorância sobre o assunto. Acabou revelando. “Eu também não. Foi indicação do vendedor. As características decorei da Internet. Na verdade, entrei pela primeira vez em uma casa de vinhos. Para impressionar você.” Camila sorriu e levou a taça aos lábios. Por um momento, vermelhos se confundiram. Depois, juntou sua boca ácida a de Fernando.

Dois anos antes, Fernando estava sentado em uma pizzaria com a mulher e um grupo de amigos. Ele nem sabia o que fazia ali, ficou calado a maior parte do tempo, o dedo dando voltas na borda do copo de chopp. Às vezes sorria, fazia um comentário qualquer, se voltava para o copo. Despertava com a gargalhada da mulher, alta, estridente. Nos primeiros anos de casado, ele se divertia com esse rir espontâneo. Gostava da risada aberta, sem pudor. Aos poucos, a admiração se transformou em indiferença e, em vários momentos, irritação.

Notou isso pela primeira vez em uma sexta-feira à noite. Assistiam a um DVD, uma leve comédia romântica. Fernando não achou graça no filme, mas sua mulher ria, ria. Uma raiva repentina tomou conta dele, temendo mostrar a irritação, inventou uma desculpa qualquer e saiu da sala. Entrou no chuveiro, deixou a água morna cair sobre o corpo por quase dez minutos. Seus ouvidos ainda escutavam as risadas na sala. Só voltou a assistir ao filme no início da madrugada, quando a mulher já dormia. Deixou o som do home-teather baixo, quase um sussurro. Gostou do filme, surpreendeu-se rindo sozinho na sala.

Sentiu um aperto de mão em sua coxa e levantou os olhos do copo de chopp. Tentou participar da conversa, riu da piada de um dos amigos. A mulher deitou o rosto em seu ombro. Fernando apertou a mão dela, os olhos se desviaram de novo para a mesa em frente.

Ele a vira assim que se sentara à mesa: morena, cabelos pretos cortados rente à orelha, deixando o longo pescoço à mostra. Ela estava sentada com amigas duas mesas adiante. Observando-a melhor, reparou que os cabelos eram pintados. Ela acabara de levar uma taça de vinho aos lábios e o vermelho contrastou com a pele clara. Fernando desviava os olhos, voltava a olhar, a mulher estranha sempre com a taça nos lábios, suas faces ganhando um tom afogueado. Enquanto brincava com o dedo no copo, Fernando passou a imaginar o vinho dançando na boca daquela mulher desconhecida.

A estranha passou a provocá-lo. Ela girava a taça na mão, o vinho circulando no interior. Aproximava a taça do nariz, tomava um gole devagar, olhos fechados. Abria o olhar na direção de Fernando, ficando nele sem pudor até o vinho descer pela garganta. Tudo isso acontecia em poucos e discretos segundos, como se, experiente, ela calculasse o tempo exato para a mulher de Fernando não perceber as insinuações.  Às vezes, a estranha estremecia, um arrepio, como se a brisa de maio que entrava pela janela soubesse exatamente quando atingir aquele pescoço atrevidamente nu: no momento em que o líquido quente e seco passasse pela garganta.

Fernando disse algo no ouvido da esposa e caminhou em direção ao banheiro. Passou pela mesa da estranha e quase sentiu o cheiro de álcool e pele. Saiu do banheiro. Caminhava pelo estreito corredor entre as mesas quando deu de cara com ela. Pararam a poucos centímetros de distância, se olharam apenas o tempo certo para decidir como sairiam daquela situação. Ele se pôs de lado com uma leve reverência.  A estranha entrou no banheiro.

A mulher ria alto dentro do carro, lembrando-se de casos dos amigos. Fernando não se importou com as risadas. Dirigia devagar, concentrado em cada movimento do carro para compensar a irresponsável atitude de dirigir após ter bebido. Em casa, a mulher se livrou rapidamente das roupas e se deitou, dormindo em seguida. No banheiro, Fernando tirou do bolso da calça o guardanapo de papel que a estranha colocara em sua mão naquele breve instante em que ficaram de frente para o outro: Camila.

O mesmo guardanapo que ele segurara durante muitas noites nestes dois anos. Sentado em frente ao computador, passeando pela Internet, ele abria seu pequeno bloco de anotações e tirava o guardanapo de papel. Já nem precisava mais dele, há muito decorara aquele número de celular. Mas acabava por esconder o papel novamente, colocando-o cuidadosamente no meio das páginas, sem amassá-lo.

Camila tomou outro gole do vinho. Ela estava diferente: cabelos ruivos quase chegando nos ombros. Assim que ela passou pela porta, Fernando pensou “talvez nem seja a mesma mulher”. Ele tivera que se explicar no telefone, contar em detalhes o encontro na pizzaria dois anos antes, o impasse na porta do banheiro, o guardanapo de papel. “Ah, sei. Claro, a gente pode se encontrar”.

Fernando passou os dedos entre seus cabelos, tocou de leve a pele do pescoço. Ela encolheu os ombros, pressionando sua mão com a nuca. A garrafa de vinho já estava quase pela metade e ele não sabia ainda o que fazer.

Sabia apenas que estava agora com uma estranha de cabelos ora ruivos ora pretos chamada Camila. Quando abrira a porta do apartamento, não a reconheceu. Ele a lembrava de cabelos curtos, cortados rente às orelhas, deixando à mostra a pele clara do longo pescoço. Durante dois anos, olhando aquele guardanapo de papel, Fernando a imaginou de todas as formas. E agora, buscando com os lábios o pescoço encoberto pelos cabelos, ele sentia um estranho e enjoativo gosto de vinho.

Zé do Muro

Bate você…. você.” Demorei um pouco a entender os gritos do técnico no meio da confusão de jogadores cercando o juiz na grande área. Batata já estava com a bola nas mãos, próximo à marca do pênalti. Zé do Muro continuava gritando: “Bate você… você.”, o dedo apontando para mim.

Acredito que nenhum dos jogadores do meu time, todos adolescentes entre 13 e 16 anos, sabia o nome depois de José, mas o bairro inteiro conhecia a origem do apelido. A rotina de Zé do Muro era simples: saía de casa por volta das três da tarde, descia a rua até o bar e bebia, com amigos ou sozinho, até o momento em que o dono do bar começava a baixar as portas. Não é difícil imaginar a dificuldade em andar rua acima após essa longa jornada etílica. Ele andava dez ou quinze passos e apoiava o ombro no muro, esperava um pouco, andava mais alguns passos, encostava-se no muro novamente. Virou Zé do Muro.

Zé do Muro só era visto sóbrio duas vezes por semana: na sexta-feira, dia de treino do time de meninos da rua, e no jogo de domingo. As mãos trêmulas segurando o cigarro, gritando enraivecido por erros fundamentais como passes mal trocados. Depois dos treinos, a gente se sentava, Zé do Muro ao centro, a noite tomando conta do campo. Em cinco minutos de preleção, ele versava sobre preceitos que, ensinava, todos deveriam respeitar no futebol. Nunca chute a bola com o bico da chuteira; dribles só têm sentido na direção do gol, o resto é firula, provocação; não existe idiotice maior do que cruzar a bola da intermediária para a grande área, pois os zagueiros estão sempre de frente…

Eram 40 minutos do segundo tempo. O placar, 3 x 2 para o time adversário. Decisão do torneio Bola de Ouro, patrocinado pelo Bar do Careca. O empate levaria o jogo para a prorrogação. Batata já com a bola debaixo do braço. Zé do Muro continuou gritando até deixar claro a ordem: eu fizera os dois gols do meu time e deveria bater o pênalti. Peguei a bola das mãos de Batata.

O morro atrás do gol estava cheio de torcedores: pais, mães, irmãos, parentes, vizinhos – manhãs de domingo de futebol. Respirei fundo, olhar fixo nos olhos do goleiro. Corri e um segundo antes desviei os olhos para a bola.

Naquela noite, caminhei sozinho pelo bairro. Andei por cerca de uma hora, as ruas quase desertas, passando pelos prédios que se erguiam na explosão imobiliária vertical daqueles anos 70. Ao voltar, quando virei a esquina da minha rua, vi um vulto encostado no muro a poucos metros de distância. Decidi atravessar para o outro lado, pensei, no estado em que está ele não vai me ver. Mas Zé do Muro começou a andar em passos acelerados, firmes, em poucos segundos estava na minha frente. Ele despenteou meus cabelos com a mão, sua voz soou clara e forte: “Da próxima vez, olhe firme nos olhos do goleiro.”

A seguir, voltou a caminhar. Quando abri o portão da minha casa, olhei para trás. Quase no fim da rua, iluminado pela luz do poste, Zé encostado no muro. Ele andou mais alguns passos, apoiou o ombro novamente no muro. Assim, de muro em muro até virar a esquina.

Voo noturno

O avião passou em frente a parede de vidro do bar do hotel, em direção a pista de pouso. Era o terceiro avião que Fábio seguia com o olhar, as luzes indicando a aproximação desses fascinantes voos noturnos. Agradeceu ao garçom o copo de uísque, deixou os olhos no reflexo do vidro, agora encontrando a escuridão.

Nas diversas vezes em que viera a Zurique, nunca encontrara tempo para se sentar em uma das mesas do bar, perto da janela de onde se vê o aeroporto. Lembrou-se dos tempos de menino. O tio morava próximo ao aeroporto da Pampulha. Quando a família de Fábio visitava o tio, o menino rapidamente dava um jeito de fugir daquelas conversas de sofá, atravessava a rua, empilhava cinco ou seis tijolos ao lado do muro do aeroporto e esperava, pescoço pouco acima do muro, um avião pousar. Se fosse corajoso, colocaria mais alguns tijolos na pilha, com um pequeno esforço conseguiria subir e sentar-se no alto do muro, as pernas caídas do lado de dentro enquanto os aviões desfilavam em frente, a pista ao alcance de algumas poucas passadas.

Mas Fábio era menino medroso. Imaginava um guarda gordo, grosso bigode cobrindo a boca, o cassetete pendurado no cinto chegando quase até o chão, quepe enterrado na cabeça. O guarda chegava debaixo do muro, agarrava suas pernas e o puxava para o lado de dentro, jogando-o ao chão. Deitado na terra, ele sentia o pé do guarda em seu peito, o cassetete batendo de leve na sua face, o brilho sádico no olhar do policial.

Fábio girava o copo de uísque, o líquido dando voltas nas laterais. Depois de tantos anos, tantos voos, não sabia bem porque estava agora olhando de novo aviões a pousar. Olhou o relógio, ainda tinha cerca de uma hora antes de sair para o aeroporto.

Adriana chegou cheirando a banho, os longos cabelos molhados, o tom fresco do ar da noite estampado em suas faces. Deixou a chave do quarto em cima da mesa. Outro avião cortou o silêncio que se interpôs naquela troca de olhares. “Você não pode ficar mais um ou dois dias?”, ela  perguntou.

Eles se conheceram três dias atrás. Adriana estava sentada na amurada às margens do rio, um livro nas pernas, o corpo ligeiramente curvado, uma jaqueta jeans a protegendo do vento da tarde. Às vezes ela ajeitava os cabelos atrás da orelha, tentando evitar que eles atrapalhassem sua leitura.

Já fazia cerca de cinco minutos que Fábio a observava – uma quase menina perto dele, sentado no banco do jardim poucos metros adiante. Adriana levantou os olhos na direção de Fábio e deixou-os assim, um flerte longo, curioso, como se olhasse para um rosto há muito tempo querido. Ela levantou-se, caminhou em direção ao estranho que a encarava tão sem cerimônia e ao mesmo tempo tão meigo, sentou-se a seu lado no banco, deitou o rosto no ombro de Fábio e continuou a leitura.

“Não, não posso ficar. Tenho mil coisas para fazer no Brasil, devo voltar em três ou quatro meses, depende dos negócios. Até lá seu curso já acabou. Você vai ficar bem?”, respondeu Fábio, voltando a girar o uísque no copo. “Porque você não fica mais uma noite. Nós voltamos para o quarto…” “Não posso. Tenho negócios a resolver, minha …. Não me olhe assim…”

Fábio tirou os braços de Adriana com calma de seu pescoço. Fazia mais de uma hora que estava acordado, controlando a respiração como se embalasse o sono da jovem deitada em seu dorso. Resolveu se levantar. À medida que deslizava para o lado, substituiu seu corpo pelo travesseiro, pousando a cabeça dela suavemente, sem acordá-la.  Sentou-se na escrivaninha em frente à cama.

A meia luz do quarto era suficiente. Ligou o computador pensando em preencher os relatórios que deveria encaminhar para a empresa. Precisava de uma desculpa para justificar o atraso de um dia, não só na empresa. Enquanto o windows rodava na tela negra do notebook, deixou os olhos no espelho em frente, presos na imagem nua de Adriana na cama. Ela estava de bruços, abraçada com o travesseiro, o corpo resplandecendo de juventude, uma perna ligeiramente dobrada, a outra esticada, a imagem de menina impregnando o quarto de desejo. “Em que você está pensando?” Fábio não havia percebido os olhos semicerrados de Adriana. “Aposto que está pensando em mim, com tesão.”

Ele ficou um longo tempo olhando, percorrendo seu corpo, até que ela pegou novamente no sono, os braços apertados no travesseiro, as costas arfando lentamente. Não. Não pensava em você. Pensava no menino empilhando tijolos até dar conta de esticar o pescoço por cima do muro. Ele desce, pega mais três ou quatro tijolos, consegue apoiar as palmas das mãos no muro e com um pequeno impulso passa uma das pernas, depois outra e, cansado, as mãos um pouco arranhadas, senta-se no alto, as duas pernas para o lado de dentro do muro. O menino espera um bom tempo até um avião apontar no horizonte, refletindo o sol do final de tarde. O avião passa bem em frente a ele, pousando com leveza na pista.

O sol começa a desaparecer, deixando a tarde avermelhada. O menino espera outro avião, talvez apareça um guarda gordo, de grossos bigodes, o longo cassetete pendurado no cinto, e o puxe pelas pernas. Talvez.