Ladrão de casaca

Ladrão de casaca (To catch a thief, EUA, 1954), de Alfred Hitchcock, é um charme completo, tem Cary Grant, Grace Kelly e a Riviera Francesa.  As externas foram rodadas no litoral sul da França. John Robie (Cary Grant) é “o gato”, ex-ladrão de jóias que vive em uma bela casa nas montanhas, com vista para o mediterrâneo. Uma série de roubos de jóias acontece nos hotéis e ele é o principal suspeito. Para provar sua inocência, deve prender o verdadeiro criminoso que imita seus gestos nos antigos roubos. Seu caminho vai se cruzar com Francie Stevens (Grace Kelly), bela e misteriosa mulher da Riviera.

As cenas de perseguições de carros nas estradas e os belos jardins de mansões traduzem a beleza estonteante da Riviera Francesa. O filme é um primor de diálogos e insinuações visuais. Em uma cena, Francie e Robbie estão no quarto do hotel, à noite. Ela está com vestido branco. O colar de diamantes se destaca em seu pescoço. Os dois estão à janela, vendo fogos de artifício.

– Se quer ver os fogos de artifício, é melhor apagar a luz. Hoje verá uma das vistas mais fascinantes de toda a Riviera. Falo dos fogos de artifício. – diz Francie.

– Foi o que pensei. – completa Robbie.

Hitchcock disse que Ladrão de casaca “era uma história bem leve, não era uma história séria” e que Grace Kelly lhe interessava porque, nela, o sexo era indireto.

“Quando trato das questões de sexo na tela, não esqueço que, mesmo aí, o suspense comanda tudo. Se o sexo é espalhafatoso demais e óbvio demais, acabou-se o suspense. O que é que me dita a escolha de atrizes loiras e sofisticadas? Procuramos mulheres de alta classe, verdadeiras damas, mas que no quarto se tornarão putas. A pobre Marilyn Monroe tinha o sexo estampado em todo o rosto, como Brigitte Bardot, e isso não é muito fino. (…) Veja o início de Ladrão de Casaca. Fotografei Grace Kelly impassível, fria, e no mais das vezes mostro-a de perfil, com um ar clássico, muito bonita e muito glacial. Mas quando circula pelos corredores do hotel e Cary Grant a acompanha até a porta do quarto, o que faz? Afunda seus lábios nos dele.” – Hitchcock Truffaut – Entrevistas.

Ladrão de casaca é um dos grandes sucessos de bilheteria de Alfred Hitchcock. É um filme bem-humorado com toques de suspense e algumas da marcas características do diretor. O homem acusado injustamente. Revelações surpreendentes. A elegância dos atores e dos locais de filmagem. A atriz loira pretensamente fria, mas carregada de sensualidade. Assista ao filme e decida por quem você vai se apaixonar: Grace Kelly, Cary Grant ou a Riviera Francesa.

Referência: Hitchcock/Truffaut – entrevistas. François Truffaut. São Paulo: Braziliense, 1983

Sindicato de ladrões

Terry Malloy (Marlon Brando), ex-boxeador, conversa com seu irmão Charley (Karl Malden), no banco traseiro do carro. Ele lembra como Charley entrou no vestiário numa noite de luta e disse: “Hoje não é a sua noite. Vamos apostar no Wilson.” Amargurado, Terry completa: “Você é meu irmão. Não devia ter me deixado entregar lutas por trocados.” Charley comenta que ele também lucrou com a luta. A câmera dá close no rosto de Terry, que diz:

– You don’t understand! I could have had class. I could have been a contender. I could have been somebody. Instead of a bum, which is what I am – let’s face.

Impossível traduzir a intensidade, a beleza da cena. São momentos do cinema que serão lembrados para sempre. Basta consultar qualquer antologia do cinema e a cena está lá. Marlon Brando está lá.

Sindicato de Ladrões (1954) ganhou oito Oscars, incluindo filme, ator (Brando), atriz coadjuvante (Eva-Marie Saint), diretor e roteiro original. O filme começa com um trabalhador sendo assassinado pelos membros do sindicato dos estivadores de Nova Iorque. Terry Malloy presencia o crime e passa a ser assediado pela polícia para depor na comissão de inquérito contra o sindicato. Os dirigentes ameaçam todos os trabalhadores, inclusive Terry, para não depor.

Elia Kazan (1909-2003) foi dos mais prestigiados diretores do cinema americano. Criou o Actor’s Studio de onde saíram atores com estilo revolucionário de interpretação, entre eles, Marlon Brando, James Dean e Warren Beatty. Sua carreira tem uma mancha: na década de 50, na famosa caça às bruxas (macartismo) empreendida por congressistas americanos, Kazan denunciou ex-companheiros da juventude que militaram no partido comunista. Na época, os estúdios cinematográficos, pressionados pelo governo, demitiram roteiristas, atores e diretores denunciados.  Os demitidos entravam na lista negra e não conseguiam mais emprego. Muitos críticos analisam Sindicato de Ladrões como a tentativa de redenção ou justificativa do diretor. O personagem de Marlon Brando, Terry Malloy, é um delator que no final do filme se transforma em herói dos trabalhadores.

Motivado ou não pela culpa, Elia Kazan ajudou a criar um clássico do cinema. É um filme sobre corrupção, sobre trabalhadores famintos que buscam apenas mais um dia de trabalho, sobre dirigentes que usam o dinheiro e a violência para manter o poder. É um filme sobre pessoas que compram e pessoas que se vendem. O trailer, em 1954, anunciava,“É um filme sobre o nosso tempo.” Sindicato de Ladrões deveria ser relançado nos cinemas brasileiros. Com o trailer original.

Sindicato de Ladrões (On the Waterfront, 54, EUA), de Elia Kazan. Com Marlon Brando, Karl Malden, Lee J. Cobb, Rod Steiger, Eva-Marie Saint.

Quatro casamentos e um funeral

Quatro casamentos e um funeral (Four weddings and a funeral, EUA, 1994), de Mike Newell, é das comédias-românticas mais admiradas pelo público e pela crítica. O filme mantém a estrutura básica do gênero: encontros e desencontros com humor, romance, sexo e música contagiante até o happy-end.

Heitor Capuzzo aponta,  no livro Lágrimas de luz – o drama romântico no cinema, essas características comuns em determinado gênero cinematográfico.

“O drama romântico utiliza, reiteradamente, a narrativa em dois grandes blocos dramáticos. O que separa ambos os blocos é uma espécie de ‘lua-de-mel’, ou seja, ‘a consumação do amor’. O início é marcado pelo encontro, a rápida formação do par, os subterfúgios para driblar as pressões externas, a definição de espaços específicos e os momentos de felicidade, que comprovam a existência efetiva da ligação amorosa. Como os filmes industriais desenvolveram o happy-end, com a união do par ao final, o drama romântico permite ao espectador aguardar, tensamente, a separação ou acontecimentos trágicos que irão intervir para a sua não viabilidade.”

Quatro casamentos e um funeral utiliza dos elementos dramáticos comuns à comédia-romântica. Charles (Hugh Grant) é uma espécie de Don Juan, solteiro convicto. Conhece Carrie (Andie MacDowell) em um casamento. Os dois se encantam, passam a noite juntos e se separam. Voltam a se encontrar. Carrie está noiva, mas dorme novamente com Charles. Os encontros e desencontros se sucedem, incluindo casamento de um e de outro.

O que transforma, então, Quatro casamentos… em um filme diferente do gênero, capaz de agradar público, crítica e entrar para a galeria dos filmes mais queridos do cinema? Em primeiro lugar, a escolha do ângulo de visão do diretor sobre acontecimentos rotineiros da sociedade. Mike Newell vê tudo com olhar amoral, contemplativo, reforçando o humor de pequenos, mas importantes acontecimentos na vida dos casais. Os discursos dos padrinhos após o casamento, os erros do padre iniciante (Rowan Atkinson em divertida participação), uma bizarra cena de amor entre recém-casados aos ouvidos de Charles, escondido no armário, as gags sem fim de Charles com suas ex-namoradas. Os personagens se divertem com as situações, assim como o público.

Até mesmo nos momentos dramáticos, o filme assume essa naturalidade cotidiana. A beleza de Matthew (John Hannah) declamando o poema de W. H. Auden no funeral de seu namorado Gareth (Simon Callow) está no comportamento das pessoas na igreja. Elas assistem a uma das mais bonitas revelações de amor do cinema com olhar terno, como se naquele momento não houvesse lugar para a dor, apenas para a beleza dos amantes refletida nos versos do poema.

O segredo do filme está também na reiteração dos aspectos comuns do gênero, mas sem aquele exagero estético. A música pontua sutilmente, as cenas de sexo apresentam cortes nos momentos precisos – uma manhã na cama após a noite de amor começa com belo plano do Rio Tâmisa, em Londres, a câmera em travelling lento até entrar pela janela e enquadrar Charles entre lençóis amarrotados, sob o olhar de Carrie.

A cena final, na chuva, remete a momentos emocionantes do cinema, como despedidas em meio ao caos urbano. “O espaço preferido dos realizadores dos anos 40 para as despedidas do par central é a estação de trem. Metaforicamente, permite imobilizar o amante que fica só na estação com o afastamento rápido e em crescendo daquele que está embarcando.” – Heitor Capuzzo.

Ninguém resiste a beijos de adeus ou de reconciliação em meio à névoa do aeroporto, interrompidos pelo apito do trem ou molhados pela chuva. É a magia do cinema romântico desde a sua mais tenra idade.

Referência: Lágrimas de luz – o drama romântico no cinema. Heitor Capuzzo. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1999

Quando Paris alucina

Quando Paris alucina (Paris – when it sizzles, EUA, 1963), de Richard Quine, é uma deliciosa paródia do próprio cinema, exercício de metalinguagem que se torna comum em filmes a partir dos anos 60. Richard Benson (William Holden) é um roteirista de sucesso, porém passa por aquela crise de criatividade que acomete escritores de tempos em tempos. Gabrielle Simpson (Audrey Hepburn) é a secretária enviada pelo produtor para datilografar o roteiro de Richard. Quando ela chega ao suntuoso quarto de hotel onde o roteirista vive, descobre que ele não tem sequer a ideia para o filme, o escritor passa o tempo se divertindo.

Enclausurados no quarto, os dois começam a imaginar uma divertida história, bem ao gosto dos produtores americanos: casal se conhece nas ruas de Paris, se apaixonam, se envolvem em uma trama nonsense de espionagem e por aí vai. A metalinguagem entra na encenação da história. Holden e Hepburn interpretam um filme dentro do filme, vivendo as personagens que imaginam nas ruas de Paris.

“Com este argumento, Richard Quine realizou uma espécie de brincadeira com a forma de se fazer cinema em Hollywood, intercalando a história que a personagem do roteirista escreve, com a história do próprio Quando Paris alucina. Verificam-se ainda várias citações de outros filmes e das estruturas narrativas de diversos gêneros cinematográficos. Além disso, Quine explora as possibilidades de utilização do recurso da metalinguagem, chegando a ser didático em alguns momentos em que os códigos do discurso cinematográfico são explicitados, apostando em um ‘pacto’ com o espectador de segundo nível de leitura.” – Ana Lúcia Andrade.

As brincadeiras com o cinema acontecem a todo instante. Clichês de roteiros das comédias românticas, furos da história, câmeras que avançam e retrocedem para captar um novo ângulo da cena que não deu certo, o mesmo personagem é hora um detetive e momentos depois um vampiro. Esta estrutura aparentemente despojada e irônica faz de Quando Paris alucina um filme inovador, provocando o jogo narrativo com o espectador que deve conhecer e prever as artimanhas linguísticas do cinema.

Antonio Costa faz a associação entre o cinema deste período e o público.

“Junto a esses traços distintivos que permitiram unificar experiências nascidas e desenvolvidas em contextos diversos e distantes um do outro, é preciso recordar a formação e a rápida maturação de um novo tipo de público, que atribui ao cinema um papel diferente daquele por ele tradicionalmente desempenhado, um público mais maduro e preparado no aspecto político cultural e no do conhecimento do cinema e da sua linguagem.”

Ana Lúcia Andrade destaca que este novo tipo de cinema, surgido a partir da decadência do sistema de estúdios da indústria hollywoodiana, é mais aberto à participação do público.

“Evidentemente, o reconhecimento desta citação (a autora escreve sobre uma cena do filme que remete aos musicais) só faz sentido para o espectador que detém essas informações anteriores ao filme, sendo que o seu desconhecimento em nada altera o sentido da trama de Richard Quine. Entretanto, com esta segunda leitura, o espectador mais atento ‘aprecia’ o jogo irônico da citação e, mais exatamente, a sua proposital incongruência.”

Quando Paris alucina dialoga com o público que entende e participa das novas construções linguísticas, mas que continua ingenuamente fascinado por aquilo que o cinema tem de mais bonito e sedutor: um close no rosto de Audrey Hepburn.

Referências:

O filme dentro do filme. A metalinguagem no cinema. Ana Lúcia Andrade. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1999

Compreender o cinema. Antônio Costa. São Paulo: Globo, 1989

Mais forte que a vingança

“Chamai-me Ismael” é das primeiras frases famosas da literatura universal. É o início de Moby Dick, de Herman Melville. Após se apresentar, Ismael narra que em momentos de tédio, “sempre que a minha alma se transforma num novembro chuvoso… percebo então que chegou a hora de voltar para o mar.” Ismael embarca no navio do Capitão Ahab e acaba envolvido na maior batalha de todos os tempos do homem contra a força da natureza.

Moby Dick influenciou grandes obras da literatura. O escritor inglês Joseph Conrad abordou os limites do homem em livros como  Nostromo, Lord Jim e Coração das trevas. No cinema, Na natureza selvagem (2007), direção de Sean Penn, usou da mesma temática, resultando em uma narrativa bela e espetacular – e aqui vale a ressalva: nas mãos de bons diretores como Sean Penn, a natureza ocupa seu lugar de espetáculo cinematográfico, beleza selvagem frente ao homem diminuto, vencível.

Mais forte que a vingança (Jeremiah Johnson, EUA, 1972), de Sydney Pollack, é outra referência a Moby Dick no cinema. A analogia começa na introdução. O filme abre com plano geral de barco a remo no rio, se aproximando lentamente da margem. Jeremiah Johnson (Robert Redford) desce do barco e,  enquanto caminha, um narrador repete basicamente as palavras do início de Moby Dick. “Seu nome era Jeremiah Johnson. Dizem que ele queria ser um montanhês. A história diz que foi um homem inteligente e aventureiro, próprio para as montanhas. Ninguém sabe de onde ele veio, mas isso não importava muito. (…) Comprou um cavalo e outras coisas necessárias à vida nas montanhas. E disse adeus à vida que tinha lá embaixo. Esta é a sua história”. Enquanto ele cavalga rumo às montanhas rochosas do Colorado, de onde nunca mais sairia, se transformando em uma lenda, começa a tocar a balada Jeremiah Johnson. A letra da música ajuda a definir o perfil do personagem, caracterizando um homem desiludido com a vida, provavelmente traumatizado pela sangrenta guerra civil americana, que recorre ao isolamento das montanhas. Como Ismael, busca refúgio na natureza selvagem.

Sydney Pollack (1934/2008) se baseou na história verídica do lendário ermitão Jeremiah para compor uma apologia ecológica, defesa do estilo de vida dos índios americanos e dos montanheses que usavam os recursos da natureza de forma consciente, tirando dela apenas o necessário para sobreviver. As paisagens do filme são deslumbrantes e ajudam a entender porque alguns poucos aventureiros se arriscam em territórios inóspitos. Gelo, grandes rios, ventos inconstantes, precipícios, estreitos caminhos, animais selvagens, são forças difíceis de vencer. É território dos índios que aprenderam a respeitar os desafios. Jeremiah Johnson conquista o respeito dos índios porque, como eles, passa a entender a natureza.

Até mesmo no lado mais cruel da história, a vingança, o respeito mútuo entre Jeremiah e uma tribos de índios, os Corvos, permanece. Os índios sempre o atacam isoladamente, não em bando, em lutas individuais até a morte, prevalecendo a lei do mais forte, assim como na natureza.

Mais forte que a vingança é um filme lento, contemplativo, pontuado por planos gerais deslumbrantes, minimalista em diálogos. As imagens permitem ao espectador sentir e se encantar de forma lenta com a história. Como o Moby Dick de Melville. Certas narrativas exigem paciência para construir a história, parágrafo a parágrafo, cena a cena, se deparando aos poucos com histórias envolventes, até chegar a finais sublimes da literatura e do cinema.

Quero viver

Quero viver é o filme que merece ser visto por todos que defendem a pena de morte, assim como Não matarás, de Krzysztof Kieslowski. Barbara Graham ganha a vida aplicando golpes, como passar cheques sem fundo, enganar homens endinheirados e outras falcatruas, passando temporadas nas prisões. Ela resolve largar tudo e se casar com um barman, tem um filho, mas o vício em jogos do marido provoca a separação e leva Barbara a voltar para o mundo do crime. A jovem se alia a Santo e Perkins, dois homens violentos. Após um golpe mal sucedido, o trio é preso e Barbara é acusada de espancar uma senhora idosa até a morte.

A virada do filme acontece durante o julgamento: mesmo sem provas evidentes, o julgamento caminha para a condenação de Barbara, com a ajuda da imprensa que não mede esforços em estampar manchetes tendenciosas sobre o caso, transformando a ré em celebridade nacional. Condenada à pena de morte, segue-se uma sequência de recursos e a luta solitária do jornalista Ed Montgomery para tentar provar a inocência de Barbara.

Baseado em série de reportagens de Montgomery (ganhador do Prêmio Pulitzer pelo trabalho), Quero viver é dos mais pungentes tratados contra a pena de morte. A sequência final do filme transcorre durante a lenta agonia de Barbara no corredor da morte . O diretor Robert Wise estende os sentimentos da condenada para o espectador, trabalhando com imagens impressionantes e detalhadas da preparação da câmara de gás, quase uma aula científica sobre os procedimentos. Perto da execução, os telefonemas do Governador adiam por minutos a hora fatal e prolongam o desespero. Em determinada cena, o grito de Barbara ao ouvir o telefone ecoa e repercute na alma de todos nós. Triste a justiça dos homens que decretou e insiste, em várias partes do mundo, em manter a pena de morte.

Quero viver  (I want to live!, EUA, 1958), de Robert Wise. Com Susan Hayward (Barbara Graham), Simon Oakland (Ed Montgomery), Virginia Vincent (Peg), Theodore Bikel (Carl Palmberg), Wesley Lau (Henry Graham), Philip Coolidge (Emmett Perkins), Lou Krugman (Jack Santo).

Assim estava escrito

Segundo a publicação 1001 filmes para ver antes de morrerAssim estava escrito (1952) é “Ainda o melhor filme hollywoodiano sobre Hollywood.” Três personagens da meca do cinema, roteirista, diretor e atriz, estão reunidos no escritório de uma grande produtora. Eles aguardam telefonema do produtor Jonathan Shields (Kirk Douglas). Jonathan tenta retomar a carreira, em decadência em Hollywood, tentando convencer os antigos “amigos” a se reunirem no projeto de um filme.

Flashbacks reconstituem a carreira deles ao lado de Jonathan, revelando que cada um tem motivo justo para recusar a parceria. “O diretor Fred Amiel (Barry Sullivan) é um antigo sócio que foi incentivado por Shields a fazer um filme de monstros barato chamado A maldição do homem-gato (A marca da pantera vem à mente), mas então é afastado do projeto dos seus sonhos, uma produção mexicana risivelmente ‘importante’ chamada A montanha distante. Georgia Morrison (Lana Turner), a filha vulgar e bêbada de um astro encrenqueiro estilo John Barrymore, é retirada da sarjeta, transformada em uma deusa do cinema e depois trocada por uma qualquer (a maravilhosamente irônica Elaine Stewart) na noite da estréia. Dentre os três, o menos disposto a perdoá-lo é o roteirista profissional James Lee Bartlow (Dick Powell), cuja mulher frívola e assanhada (Gloria Grahame, vencedora do Oscar) Shields repassa para o ‘amante latino’ Victor ‘Gaucho’ (Gilbert Roland), que a mata em um acidente de avião.”

Assim estava escrito é um retrato frio, cruel, da indústria do cinema. Roteiristas, atores, diretores e produtores representam esta comunidade movida a sonhos milionários, muitos deles se despindo de escrúpulos para alcançarem o estrelato. Na visão impiedosa de Vincente Minnelli, dos grandes diretores da era de ouro de Hollywood, assim são os sonhos, assim é o cinema.

Assim estava escrito (The bad and the beautiful, EUA, 1952), de Vincente Minnelli. Com Lana Turner, Kirk Douglas, Walter Pidgeon, Dick Powell, Barry Sullivan.

Fonte: 1001 filmes para ver antes de morrer. Steven Jay Schneider (editor geral). Rio de Janeiro: Sextante, 2008.

O encouraçado Potemkin

Revi O encouraçado Potemkin (Bronenosets Potyomkin, URSS, 1925), de Sergei Eisenstein, em edição restaurada da Versátil. O filme tem sequências que compõem o que se conhece como antologia do cinema: os marinheiros incrédulos ante superlativas lentes sobre larvas na carne; a preparação da execução dos insubordinados no tombadilho, seguida da tomada do encouraçado pelos marinheiros; o velório de Vakulinchuk no porto; o massacre perpetrado pelos Cossacos na escadaria de Odessa; o embate final entre a esquadra russa e o Potemkin.

A escadaria de Odessa, sequência mais famosa do filme, não estava em nenhuma versão do roteiro, só foi incluída depois que Eisenstein descobriu as escadas. Ele imaginou a sequência a partir de uma ilustração de revista: “um cavaleiro, no meio da bruma, batia em alguém com seu sabre”.

O encouraçado Potemkin é um filme sobre luta de classes, revoltas, violência, sobre o poder. O cine punho de Eisenstein está nas mãos dos trabalhadores e cidadãos comuns que bradam, erguem os braços, apresentam os punhos em closes perturbadores e magnéticos. Mas acima de tudo, o filme é sobre o poder das imagens. A montagem agressivamente acelerada se contrapõe a algumas das mais belas imagens calmas em preto e branco do cinema: navios ancorados no porto, encobertos pela bruma noturna; réstia de luz se estendendo pelo oceano; um pescador solitário emoldurado pelos navios e pela tenda onde jaz o corpo do marinheiro; Vakulinchuk morto com uma vela entre as mãos; a nuvem de fumaça negra sobre o mar…

Imagens a quebrar o ritmo deste filme alucinado, como dizendo ao espectador, é hora de se deixar levar pela beleza, de se submeter ao poder da imagem e se entregar ao cinema.

Gilda

“Nunca houve uma mulher como Gilda” é das frases mais verdadeiras do cinema. O filme que lançou o mito, segundo Ruy Castro “era para ser apenas um bom drama romântico, com ação e tensão e uma baita personagem feminina.”

A história, centrada em um triângulo amoroso, já foi contada repetidas vezes. Johnny Farrell (Glenn Ford) trabalha em um cassino de Buenos Aires, cujo proprietário, Ballin Mundson (George Macready) , tem outros negócios escusos, envolvendo contrabando com alemães durante a segunda guerra mundial. Mundson viaja a negócios e volta casado com Gilda (Rita Hayworth), ex-cantora de cabaré e, por coincidências do destino, ex-amante de Johnny. Os dois nutrem sentimentos que vão da paixão ao ódio e a trama, como em todo bom filme noir, caminha para o desenlace trágico do amor a três.

No caso de Gilda, o amor a três tem conotações picantes e ousadas para a Hollywood dos anos 40. “De fato, em Gilda, há certas coisas suspeitas na relação entre Farrel e Mundson. Uma delas, a insistência com que terminam cada frase, dirigindo-se carinhosamente um ao outro pelo primeiro nome. Outra: Mundson, mais velho, ‘adota’ o boa-pinta Farrel depressa demais, revelando-lhe até a combinação de seu cofre. E mais outra: a frieza com que Mundson não se incomoda de ser traído por Gilda, desde que seja com Farrel – mas Farrel jamais o trairá com Gilda, e não se importa que ela dê suas voltinhas com estranhos, desde que Mundson não fique sabendo e se magoe. É claro que, no fim, o triângulo se resolve a favor de Farrel e Gilda – afinal, eles são os astros do filme. Mas que fica no ar um travo de bandalheira, ah, fica. E pode ser a razão do status de cult que o filme goza com o público gay.” – Ruy Castro.

O fato é que tudo isto fica em segundo plano a cada entrada de Gilda em cena. A primeira aparição é arrebatadora. “Gilda, are you decent?” – pergunta Mundson. Corta para Gilda se levantando repentinamente, os cabelos esvoaçando à frente da tela. As roupas ao longo do filme colam no corpo de Gilda como a evidenciar que Deus dedicou atenção especial a Rita Hayworth para colocar na boca do espectador o gosto da tentação. O cigarro e Gilda foram feitos um para o outro, numa combinação erótica que nem o mais perfeito marqueteiro da indústria seria capaz de conceber.

Poucas atrizes se eternizaram no imaginário de cinéfilos e espectadores comuns como Rita Hayworth ao interpretar Gilda. E se algum espectador ainda não conhece a conotação do nome Gilda, mire-se inúmeras vezes no strip-tease de luvas ao som de “Put the blame on mame”.

Gilda (EUA, 1946), de Charles Vidor. Com Rita Hayworth (Gilda), Glenn Ford (Johnny Farrell), George Macready (Ballin Mundson).

Referência: Um filme é para sempre. 60 artigos sobre cinema. Ruy Castro; organização Heloísa Seixas. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.

Pacto de sangue

Pacto de sangue (1944) comprova que cinema se faz com ideias, roteiros, incluindo diálogos primorosos. “Como eu poderia saber que um assassinato às vezes pode ter cheiro de madressilva?” – diz Walter Neff, se referindo à sua entrega total à paixão que o levou ao crime.

Billy Wilder sempre escreveu roteiros em parceria, desta vez com Raymond Chandler, um dos melhores autores da literatura policial noir. Segundo biógrafos, tiveram vários problemas, principalmente porque Chandler tentava se recuperar do alcoolismo e Billy Wilder bebia à medida que escrevia. Entre discussões, implicâncias mútuas e ameaças de separação, escreveram um dos melhores roteiros do cinema. O tema é avassalador e os personagens entraram para a história do cinema, mesclando sedução, ironia, melancolia,  ódio e duelos verbais cortantes como o próprio filme noir. Pacto de sangue é um clássico, essencialmente por ser um filme de Billy Wilder, diretor e, acima de tudo, roteirista.

“Exceto Hitchcock, nenhum outro diretor americano deixou tantas sequências clássicas quanto Billy Wilder – não pelos exibicionismo de câmera, mas pela inteligência por trás delas. Com a vantagem de que, nos filmes de Billy, as falas também são inesquecíveis (e esse era um dos motivos pelos quais ele nunca rodou um faroeste: os cavalos não falam).” – Ruy Castro

Pacto de sangue (Double indemnity, EUA, 1944), de Billy Wilder. Com Fred MacMurray (Walter Neff), Barbara Stanwyck (Phyllis Dietrichson), Edward G. Robinson (Barton Keys).

Referência: Saudades do século 20. Ruy Castro. São Paulo: Companhia das Letras, 1994.