Andrei Rublev

Andrei Tarkovski se debruçou na biografia do famoso pintor de ícones russos, que viveu na Idade Média, para construir uma narrativa poderosa, que dialoga com o passado e o presente vivido pelo cineasta na então União Soviética. 

A narrativa é dividida em oito capítulos. O prólogo, desconectado da vida de Andrei Rublev, mostra um indivíduo tentando voar em um balão. Tarkovski prepara o leitor para a história que começará, pois o esforço sobrehumano na tentativa do voo é formado por imagens que misturam os mais belos sonhos, seguidas do pesadelo da queda e morte. 

Após o prólogo, começa a história de Rublev. Ele é escolhido para criar os afrescos de uma catedral. Durante a viagem, ele presencia a inacreditável violência que impera na Rússia medieval. Ao salvar uma jovem prestes a ser estuprada, Rublev mata o agressor e, como autopunição, se impõe ao silêncio durante anos. A jornada termina com o episódio mais espetacular: ele acompanha a construção de um sino gigantesco por um jovem que, descobre-se depois, não sabia como fazê-lo. 

“Andrei Rublev destoa de todas as vidas de artista já levadas ao cinema. No lugar da habitual progressão dramática e das cenas que tentam dar concretude à ideia de genialidade mostrando a criação de uma obra, Tarkovski escolheu mostrar o personagem vagando em meio a horrores, testemunhando perseguições, dominações e crueldades e, como reação, renegando seu talento para a alcançar a beleza.” – Cássio Starling Carlos

A analogia entre passado e presente encontra ressonância no começo da carreira de Tarkovski. O cineasta realizou seu primeiro longa, A infância de Ivan (1962), em processo de rígido controle dos dirigentes do cinema soviético. Enfrentou, como Rublev, uma jornada marcada pela tentativa de impor sua visão pessoal sobre a arte. A repressão à arte na União Soviética foi retratada simbolicamente na trajetória de crueldades vividas por Andrei Rublev. 

“Quando concluiu Andrei Rublev (1966) a era do degelo já havia sido substituída pela era da estagnação, fase em que o regime soviético se fecha num conservadorismo que inviabiliza a liberdade de expressão esboçada no início da década. Depois de pronto, o filme foi taxado de ‘sombrio’, ‘violento’ e ‘pessimista’, portanto, inadequado ao espírito festivo dos 50 anos da Revolução de 1917 e ficou censurado até 1971.” – Cássio Starling Carlos. 

Andrei Rublev (Rússia, 1966), de Andrei Tarkovski. Com Anatoly Solonitsyn (Andrei Rublev), Ivan Lapikov (Kirill), Nikolay Sergeyev (Theophanes), Mikhail Koronov (Foma), Irina Tarkovskaya (Durochka). 

Referência: Andrei Tarkovski. Andrei Rublev. Coleção Folha Grandes Diretores no Cinema. Cássio Starling Carlos e Pedro Maciel Guimarães. São Paulo: Folha de S. Paulo, 2018.

Solaris

Muito se diz sobre as semelhanças entre Solaris e 2001 – Uma odisseia no espaço (1969), de Stanley Kubrick. Os dois filmes exigem a entrega contemplativa do espectador; trabalham com intrincadas reflexões psicológicas, envolvendo a busca por entender o mistério da vida; têm passagens abertamente surrealistas, como longas viagens metafísicas; os finais são abertos, incompreensíveis, porém plenos de significados. Enfim, são dois clássicos da ficção científica, do cinema.

Solares é baseado em um romance de Stanislaw Lem, escritor polonês, publicado em 1961. Tarkovski adaptou livremente a obra, incluindo sequências inexistentes no romance, como no início. Em uma bela casa de campo, o psicólogo Kris Kelvin tem uma longa conversa com o piloto Berton, sobre a estação espacial soviética do planeta Solaris. Mortes misteriosas acontecem a bordo, a missão de Kris é ajudar a tripulação. 

Corta para Solaris, Kris encontra mais um membro da tripulação morto e os dois restantes com sérias perturbações psicológicas. Para surpresa do psicólogo, ele encontra também sua  falecida esposa Hari, que passa a mover Kris rumo ao seu passado, suas memórias e desejos mais ocultos. 

“Entretanto, essa convidada não é apenas manifestação física. Possui inteligência, ego, memória e ausência de lembranças. Não sabe que a Hari original se suicidou. Questiona Kelvin, quer saber mais a respeito de si mesma, acaba deprimida ao perceber que não pode ser quem parece. Até certo ponto seu ser é limitado ao que Kelvin sabe a seu respeito, uma vez que Solaris não pode saber mais do que Kelvin; este tema fica mais claro na refilmagem de 2002, de Steven Soderbergh e George Clooney.” – Roger Ebert.  

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A infância de Ivan

O filme começa na interseção que marca a narrativa: sonhos e/ou memórias. Ivan está feliz, em um ambiente campestre repleto de lirismo. Ele olha fascinado para uma teia de aranha, ouve o som de um cuco, sua mãe está ao seu lado, feliz com esse momento. A sensação de idílio é tão perfeita que Ivan começa a voar pelo campo, como em uma metaformose que transcende corpo e alma. É um sonho, sabemos logo a seguir. 

A ruptura é brutal. Ivan é um adolescente que luta na Segunda Guerra Mundial. Ele atua em missões de espionagem e se infiltra no front de batalha em arriscadas missões. Seu desejo de vingança está estampado em seu rosto e em suas atividades destemidas: sua mãe foi assassinada pelos nazistas. 

O recém formado cineasta Tarkovski foi chamado pela Mosfilm, órgão de cinema estatal soviético, para assumir o posto de diretor no filme quando as filmagens já haviam iniciado. Tarkovski fez diversas alterações no roteiro, baseado em um conto de guerra de Vladimir Bogomolov. 

“Bogomolov descreve os cenários com a invejável precisão de uma testemunha ocular dos acontecimentos que constituem a base da história. O princípio pelo qual o autor se deixou conduzir foi o da minuciosa reconstituição de todos os lugares, como se ele os houvesse visto com os próprios olhos. O resultado pareceu-me fragmentado. (…) Todos esses lugares são descritos com grande precisão, mas não apenas foram incapazes de provocar em mim qualquer emoção estética, como, de resto, eram também um tanto quanto destoantes. Esta ambientação não tinha condições de despertar as emoções apropriadas às circunstâncias de toda a história de Ivan, da forma como a concebi. Senti, o tempo todo, que para o filme ser bem-sucedido a textura do cenário e das paisagens devia ser capaz de provocar em mim recordações precisas e associações poéticas.” – Tarkovski. 

As mudanças não significaram apenas questões estéticas envolvidas entre a transposição da literatura para o cinema. Em busca da poesia, o diretor estruturou o filme a partir de quatro sonhos de Ivan. As cenas de guerra e as incursões de Ivan no front inimigo permaneceram, mas sempre como um contraponto agressivo, desumano, aos momentos de idílio da infância de Ivan. As imagens da guerra soam como um choque abusivo, cruel, desumano, frente às memórias da infância que Ivan carrega. 

“Apesar de tudo o que vemos durante o filme, apesar, enfim, do ‘enforcamento’ da infância, da paz, enfim, do humanismo, ao happy beginning corresponderá o happy ending, pois, não obstante a guerra, a morte e a miséria, a única coisa que Ivan – como todos nós – consegue manter inalterada, intocada, indestrutível, é isso: a memória, as imagens de felicidade e das pessoas amadas que conserva consigo para a eternidade. Eis o que nenhuma metralhadora ou bomba apaga: o reduto da memória, esse resistente dínamo que, como o projetor de cinema, recupera imagens do passado, de uma realidade que já não é atual, mas que nos ajuda a compreender e a viver um pouco melhor no mundo.” – Francisco Noronha

Ingmar Bergman expressou sua profunda admiração pelo cineasta soviético: “Tarkovski é o maior de todos, pois se move, sem dúvida, no espaço do sonho; não explica, o que explicaria afinal de contas? Ele é um sonhador que conseguiu pôr em cena suas visões, no mais pesado mas também mais dúctil de todos os meios.”

Em A infância de Ivan enxergamos, ou melhor, sentimos, com plenitude, esse cineasta sonhador, poeta, mago das imagens, capaz de provocar no espectador aquilo que ele mesmo tanto buscou: recordações e associações poéticas. 

A infância de Ivan (Ivanovo detstvo, Rússia, 1963), de Andrei Tarkovski. Com Nikolai Burlyayev, Valentin Zubkov, Nikolai Grinko. 

Referências: 

Esculpir o tempo. Andrei Tarkovski. São Paulo: Martins Fontes, 1998. Tarkovski. Eterno retorno. Phillipe Ratton (organização). Belo Horizonte: Fundação Clóvis Salgado, 2017

O espelho

Alguns cineastas do leste europeu assumiram a ponta no que se pode chamar de cinema moderno, trabalhando com imagens que transitam entre o onírico, o surreal. Buscam a beleza estética e exigem entrega contemplativa do espectador. Daí o epíteto de filmes de arte, mas prefiro a expressão cinema-poesia.

O espelho (Zerkalo, URSS, 1974), de Andrei Tarkovsky, é uma sucessão fragmentada de imagens que se misturam no tempo,  buscando a história de duas gerações. A mãe cria seu filho sozinha, em uma bucólica residência castigada pelo vento. Adulto, o filho tenta recuperar suas lembranças, vivendo ao lado da mulher (mãe e esposa são interpretadas por Margarita Terekhova). Poemas escritos pelo pai de Tarkovsky, numa bela narração em off, amparam as imagens que se confundem no tempo.

“Tarkovsky é uma figura mais radical e modernista do que o seu herdeiro russo mais evidente, Alexandr Sokurov. O espelho é construído como uma colagem na qual vinhetas recriadas deliberadamente borram o passado e o presente, sendo livremente misturadas com cenas de arquivo de vários países e citações desconexas de música clássica (Bach, Pergolesi, Purcell). A atmosfera lembra a dos sonhos, codificada e obscura. Em meio a isso, Tarkovsky mantém uma bela simplicidade, colocando-se em consonância com Terrence Malick: o movimento de elementos naturais (vento, fogo, chuva), as paisagens sem fundo de rostos humanos e um sentido da passagem do tempo – tudo conspira para transmitir a impressão da ‘respiração’ do próprio mundo.”

Referência: 1001 filmes para ver antes de morrer. Steven Jay Schneider (editor geral). Rio de Janeiro: Sextante, 2008.