Intolerância

“Dickens usa montagem alternada e eu também vou usar” Com essa afirmação, feita nos preparativos da filmagem de Intolerância, D. W. Griffith revolucionou o cinema em 1916. O filme narra quatro histórias: a queda da Babilônia; a paixão de Cristo; o massacre de protestantes por católicos na noite de São Bartolomeu, na França; a história de um jovem criminoso que tenta se redimir e é injustamente condenado à morte por um crime que não cometeu – passada nos EUA dos primeiros anos do século XX. 

A revolução acontece na montagem alternada, pois os episódios são apresentados ao espectador de forma intercalada, fragmentos de cada história, forçando o espectador a guardar na memória onde cada uma das histórias foi cortada, cabendo a cada um sentado na cadeira de cinema montá-las linearmente. Com quase quatro horas de duração, a ousadia de Griffith foi um fracasso de bilheteria, talvez os ingênuos frequentadores de cinema da época não estivessem preparados para tanto arroubo linguístico. Os produtores, então, exibiram as duas principais histórias separadas, montadas de forma linear: a queda da Babilônia e a trama do jovem condenado à morte. 

Apesar do fracasso nas bilheterias e da divisão do filme, a comunidade cinematográfica mundial elegeu o filme original como uma obra-prima, cuja influência se estendeu à União Soviética, motivando experimentações que se tornaram célebres na montagem do cinema revolucionário de Eisenstein. 

“Para entender Griffith, deve-se visualizar uns Estados Unidos compostos de mais do que visões de automóveis velozes, trens aerodinâmicos, fios de telégrafo, inexoráveis correias de transmissão. É-se obrigado a compreender este segundo rosto dos Estados Unidos também – os Estados Unidos tradicionais, patriarcais, provincianos. E então se ficará consideravelmente menos espantado com a vinculação entre Griffith e Dickens. Os fios desses dois Estados Unidos são entrelaçados no estilo e personalidade de Griffith – como nas mais fantásticas de suas sequências de montagem paralela.” – Sergei Eisenstein. 

Intolerância (Intolerance, EUA, 1916), de D. W. Griffith. Com Lillian Gish (mãe que balança o berço), Mae Marsh (querida), Robert Harron (rapaz), Howard Gaye (Cristo), Margery Wilson (Olhos Castanhos), Constance Talmadge (garota da montanha), Alfred Paget (Baltazar), George Siegmann (Ciro).  

Referência: D. W. Griffith. Intolerância. Coleção Folha Grandes Diretores no Cinema. Cássio Starling Carlos e Pedro Maciel Guimarães. São Paulo: Folha de S. Paulo, 2018

Lírio partido

O pai adotivo de Lucy (Lilian Gish) pede a ela um sorriso. Lucy é incapaz de sorrir devido aos sofrimentos constantes por que passa, uma vida miserável, implacável, sentida nas frequentes surras que leva do pai, lutador de boxe que descarrega sua raiva e frustrações com chicotadas na filha. Temendo desapontar o pai e ganhar nova surra, Lucy coloca os dedos indicador e médio nos cantos dos lábios, como se fizesse o V, e estica a boca, simulando um sorriso que permanece alguns segundos em seu rosto.

Este gesto acabou se tornando a marca de Lírio partido (Broken blossoms, EUA, 1919) de D. W. Griffith. Lucy usa os dedos em V em outras cenas para abrir seu sorriso melancólico. A menina fora abandonada recém-nascida e adotada pelo Lutador. Violento, bêbado e descontrolado, ele usa a filha como saco de pancadas ao menor sinal de contrariedade. Lucy se arrasta pelas ruas de Londres até que conhece o Chinês, jovem que abandonou o oriente para difundir as ideias do Buda, mas rapidamente conheceu o mundo miserável e se entregou ao vício de narcóticos, enquanto busca sentido para a vida. Os dois se apaixonam e vivem um trágico romance.

Lírio partido é dos primeiros e mais contundentes melodramas do cinema. Lilian Gish conta que o famoso gesto dos lábios aconteceu por acaso. A atriz contraíra a gripe espanhola e ficara alguns dias sem filmar. Chegou ao set abatida. Griffith pediu a ela um sorriso. Sem motivos para isso, ela intuitivamente levou os dedos aos lábios, esticando-os. O diretor gostou e esse gesto se transformou no aspecto simbólico do sofrimento da jovem Lucy. Reflete também a sensibilidade de Griffith, seu domínio pioneiro da narrativa cinematográfica. A importância de Griffith consiste na capacidade de articular os planos e movimentos de câmera a favor da narrativa, criando suspense, motivando o espectador a antecipar e sofrer com a sequência das ações.

Em O nascimento de uma nação (1915), seu primeiro clássico, Griffith cria espetacular sequência final de suspense e angústia para o espectador ao contrapor planos da cabana sendo atacada com cavaleiros correndo para salvar os refugiados. À medida que os atacantes vencem a resistência dos sitiados, entrando na cabana, tentando derrubar a porta do quarto, entrando pelas janelas, o diretor corta estas cenas, alternando para o galope desenfreado dos salvadores, tornando os planos cada vez mais ágeis. A alternância das cenas retarda o tempo de tomada da cabana, criando a cada corte angústia e suspense no espectador.

Impossível desconsiderar nesta sequência, e neste filme, que os atacantes são um grupo de negros e os heróis são a ku klux Khan. Griffith despejou em O nascimento de uma nação sua verve racista. Você assiste ao filme com sentimentos contrastantes: admiração pelas inovações linguísticas e revolta pela abordagem abertamente racista.

Lírio partido tem outra sequência exemplar para entender a importância do cinema de Griffith: a luta de boxe entre o Lutador e o Tigre, perto do clímax do filme. Lucy, depois de sofrer mais uma surra do pai, foge pelas ruas de Londres e é resgatada pelo oriental que a coloca no andar de cima de sua loja. Aos poucos, Lucy se recupera, surge entre os dois um clima de romance. Um dos amigos do Lutador descobre e conta a ele que a menina está refugiada na casa do oriental. Revoltado, o pai diz que vai acertar as contas com os dois, mas antes tem que derrotar o Tigre em uma revanche de boxe.

É outro aspecto importante das inovações introduzidas por Griffith: através do fluxo narrativo da história, ele prepara o espectador para o clímax. A violência do confronto entre o Lutador e o Tigre, no ringue, se alterna com o idílio romântico entre Lucy e o Oriental. Troca de socos e agressões se contrapõem à troca de olhares, de gestos carinhosos. A alternância e o ritmo das cenas paralelas sugerem de forma dramática ao espectador o que está por vir: assim que a luta terminar, vai explodir a verdadeira violência. O espectador imagina que o resultado do confronto pode influenciar tragicamente no destino dos dois amantes, afinal, o Lutador já demonstrara do que é capaz em momentos de frustração, ódio e vingança.

Esta sequência exemplifica  uma das características fundamentais do jogo narrativo cinematográfico, praticamente definido por Griffith: o espectador se sente impotente, preso à cadeira de cinema, angustiado, tenso, capaz de se projetar em um final trágico ou feliz, com sentimentos suscetíveis, abertos às maravilhosas surpresas que grandes filmes proporcionam.