Baxter, Vera Baxter

A escritora, roteirista e diretora Marguerite Duras experimenta a transposição puramente literária para o cinema em Baxter, Vera Baxter. A narrativa coloca em cena praticamente duas personagens em longos diálogos, com estilo literário, sobre as angústias e frustrações dos relacionamentos amorosos.

Vera Baxter mora em uma luxuosa casa de campo alugada por seu marido. Ela recebe a visita de uma mulher que deve acompanhá-la ao encontro de seu amante, Michel Cayre. Vera passa o filme quase todo sentada no sofá, entabulado conversas frias e ao mesmo tempo plenas de significados com essa mulher desconhecida. A música de uma festa na casa vizinha invade o ambiente repetidamente. Inserts de Vera nua na cama compõem a trama dessa mulher reservada e enigmática, que, possivelmente, foi cedida como dívida de jogo por seu marido ao amante Michel Cayre. A película exige a entrega do espectador às reflexões literárias provocadas pelos densos diálogos.

Baxter, Vera Baxter (França, 1977), de Marguerite Duras. Com Claudine Gabay (Vera Baxter), Delphine Seyrig (a desconhecida), Gérard Depardieu (Michel Cayre).. 

Kung-Fu Master!

Agnès Varda envereda por um tema ousado, polêmico, diria até mesmo proibido. O amor de uma mulher de cerca de 40 anos por um adolescente. Durante uma festa em sua casa, promovida por sua filha Lucy, Mary-Jane fica encantada por Julien, colega de escola de Lucy. Ela decide que precisa vê-lo novamente e começa uma série de encontros com o garoto, a princípio, despretensiosos, mas que caminham cada vez mais e mais para a paixão mútua. A relação se concretiza durante uma viagem de férias em Londres, depois, Mary-Jane e Julius partem para uma estada em uma ilha na Inglaterra.

Jane Birkin e Charlotte Gainsbourg, mãe e filha na vida real, transpõem essa condição para o filme. A relação entre as duas se anuncia cada vez mais conflituosa, à medida que o caso da mãe se revela. O garoto Julien é interpretado por Mathieu Demy, filho de Agnès Varda e Jacques Demy. 

Apesar de controverso, Kung-Fu Master traz a sensibilidade característica da diretora francesa. Em um determinado momento, a mãe de Mary-Jane diz à filha que ela deve se entregar à paixão, apesar de tudo caminhar para a inevitável punição. 

Kung-Fu Master! (Kung-Fu Master! Le petit amour, França, 1988), de Agnès Varda. Com Jane Birkin (Mary-Jane), Charlotte Gainsbourg (Lucy), Mathieu Demy (Julien), Lou Doillon (Lou).  

O amor dos leões

Agnès Varda realizou este filme durante sua estada em Los Angeles, em 1969, centrando a narrativa em um triângulo amoroso, formado por Viva (a atriz de Andy Warhol, interpretando ela mesma), Jim e Jerry. Sexo a três, amor livre, viver os dias entre o mar, o sol e as piscinas, tudo indica o aclamado verão do amor que marcou a rebeldia juvenil dos anos 60. 

Em meio a esta utopia, a diretora insere imagens dos astros e estrelas de Hollywood: fotos, cartazes, a famosa calçada da fama, citações, segundo Viva “a pressão aqui em Hollywood é tão grande, vinda de todas aquelas pessoas mortas.”

Como pano de fundo, a própria Agnès Varda participa da trama, pois está tentando terminar um filme com a estrela Shirley Clarke, que passa por uma crise profissional e pessoal que resulta em uma overdose de remédios. 

O amor dos leões é um retrato utópico e realista (os três protagonistas vivem em frente à TV acompanhando os impactos políticos do assassinato de Rober Kennedy) do final dos anos 60, quando parece que todo a rebeldia caminha para o erro.

O amor dos leões (Lions love (…and lies), EUA, 1969), de Agnès Varda. Com Viva (Viva), James Rado (Jim), Gerome Ragni (Jerry), Shirley Clarke (Shirley). 

Nós

O documentário da feminista Alice Diop, filha de pais senegales, é dedicado ao escritor François Maspero: “O seu livro Les Passagers du Roissy Express me incitou a ver e amar o que havia diante dos meus olhos.”

Na primeira sequência, o ver e ouvir é representado por um casal e seu filho, em um bosque, observando de binóculos cervos selvagens. A partir daí, a diretora segue o cotidiano de personagens que usam o trem RER B, que atravessa Paris, conectando subúrbios ao centro da cidade.

Compõem o filme um mecânico africano, uma cuidadora de idosos, um escritor e a própria Alice Diop que interage com os retratados. No final, uma simbólica, metáfora, preparação de “nobres”, vestidos a caráter para uma caça aos animais, confirma a disparidade social sugerida durante a narrativa, que dá voz aos moradores da periferia.  

Nós (Nous, França, 2021), de Alice Diop.

Nuestros cuerpos son sus campos de batalla

A diretora francesa Isabelle Sollas centra sua câmera na trajetória política, combativa, de Claudia e Violeta, duas mulheres trans. Elas reúnem e lideram grupos de ativistas que buscam conscientizar a conservadora sociedade argentina dos direitos transfeministas. 

A narrativa traz depoimentos de Claudia, Violeta e outras mulheres, momentos de reivindicações nas ruas, cenas cotidianas de casa e trabalho, além da cobertura do julgamento de um homem acusado do assassinato de Diana Sacayán, uma mulher trans. 

Isabelle Solas planejou o documentário a partir do encontro com mulheres do Colectivo Otrans. “Queria dissecar como o desejo pode ser político, esta fonte individual e coletiva que torna possível pensar o mundo de forma diferente. Estes corpos que se movem neste território conturbado e violento que é hoje a Argentina; e que são em si mesmos um ato de resistência.” – declara a diretora.

O título do documentário foi inspirado no cartaz da artista Bárbara Kruger, criado em apoio à luta pelo aborto: Your body is battleground.

Nuestros cuerpos son sus campos de batalla (Argentina, 2021), de Isabelle Solas. 

Titane

O filme abre com uma criança sentada no banco traseiro do carro, imitando o som do motor. O motorista, seu pai, mostra-se irritado e a repreende severamente. A criança, nervosa, solta-se do cinto de segurança, fazendo com que seu pai se distraia do volante, provocando um acidente. Após passar por uma delicada cirurgia no cérebro, a criança sai do hospital e, a primeira coisa que faz, é correr para o carro e encostar a face no vidro com os braços abertos, simulando um grande e terno abraço no veículo. 

Corta para Alexia, agora uma jovem, protagonizando uma dança erótica em cima do capô de um carro esporte. A plateia masculina vai ao delírio, Alexia é uma celebridade neste meio. Sua única motivação são os carros, com quem desenvolve uma relação até mesmo erótica: atenção para a cena de sexo de Alexia com um carro, que resulta em uma inacreditável gravidez. 

Logo no início do filme, Alexia revela uma compulsão para a violência, praticando um série de assassinatos. Violência e erotismo se misturam de forma agressiva, quase repulsiva, neste instigante thriller da diretoria Julia Ducournau, vencedor da Palma de Ouro em Cannes. Quando o bombeiro Vincent entra em cena, a reviravolta no roteiro encaminha o filme para uma espécie de fraternidade familiar, mas mantendo o tom ousado e violento. Titane surpreende pela narrativa, pela estética, pelas relações entre personagens distópicos, cada um à sua maneira. 

Titane (França, 2021), de Julia Ducournau. Com Vincent Lindon (Vincent), Agathe Rousselle (Alexia), Garance Marillier (Justine), Lais Salameh (Rayane). 

A festa

Janet acaba de ser nomeada Ministra da Saúde no governo inglês. Junto com seu marido Bill, um professor universitário, ela reúne um pequeno grupo de amigos em sua casa para comemorar. Um casal de lésbicas, Martha e Jinny, que passou por inseminação artificial e está grávida de trigêmeos. April, a melhor amiga de Janet, junto com seu marido, Gottfried. Tom, um profissional do mercado financeiro.

O clima de alegria e confraternização muda drasticamente quando Bill faz uma revelação que envolve morte e adultério. A festa tem uma estrutura completamente teatral, apesar de o roteiro ser original para cinema: a encenação acontece em um único ambiente com sete personagens. O humor ácido está nos diálogos e em situações inusitadas, como o personagem de Tom que entra no banheiro a todo instante para cheirar cocaína. O conflito principal da trama gira em torno de uma personagem ausente, a mulher de Tom. Mas revelações bombásticas são feitas a cada minuto das conversas. O final surpreendente deixa o espectador fascinado diante de um grande roteiro.

A festa (The party, Inglaterra, 2021), de Sally Potter. Com Timothy Spall (Bill), Kristin Scott Thomas (Janet), Patricia Clarkson (April), Gottfried (Bruno Ganz), Cherry Jones (Martha), Emily Mortimer (Jinny), Cillian Murphy (Tom).

As filhas do fogo

Duas namoradas se encontram em Ushuaia, após um longo tempo afastadas. Em um bar, elas namoram livremente e são ofendidas por um homofóbico. Uma jovem as defende e começa uma briga generalizada no estabelecimento. Elas fogem e começam um relacionamento a três que se intensifica quando fazem uma viagem de van pela Terra do Fogo. No caminho, acolhem outras mulheres lésbicas que praticam o amor livre, sem restrições. 

O road-movie pornô lésbico da diretora Albertina Carri é recheado de cenas ousadas, entremeadas pela narração da protagonista que está tentando estruturar um filme pornô. As divagações da jovem passam pela liberdade sexual, pela natureza do corpo feminino, pela incerteza sobre o que é pornográfico ou não.

Contra todas as expectativas, a natureza pornô da narrativa, o filme fez sucesso nas salas comerciais do Brasil. Atenção para a sequência de duas amantes fazendo sexo dentro de uma igreja, enquanto outra jovem em posição de voyeur se masturba e para a longa sequência final, em plano fechado frontal, de uma das jovens se masturbando.

As filhas do fogo (Las hijas del fuego, Argentina, 2018), de Albertina Carri. Com Disturbia Rocío, Mijal Katzowicz, Violeta Valiente, Rana Rzonscinsky, Canela M., Ivanna Colonna Olsen, Mar Morales, Carlos Morales Rios, Cristina Banegas e Érica Rivas. 

Chão

O documentário de Camila Freitas acompanha integrantes do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra que lutam para terem direito ao território de uma antiga fábrica de cana-de-açúcar. Sem narração ou legendas explicativas, o filme destaca os ativistas em momentos de luta pacífica nas ruas, buscando conscientizar os moradores da região, e em momentos de descontração nos acampamentos. 

O contraponto conservador é expresso em uma sequência nos tribunais, quando, diante de líderes do movimento, os juristas tentam justificar, usando complexos argumentos legais, a negação ao direito dos trabalhadores rurais. Belo em alguns momentos, visualmente encantador quando as lentes da diretora exploram todas as nuances das pessoas em sua luta cotidiana por direitos inegáveis (deveria ser assim), triste em outros, quando a realidade mostra sua face injusta, elitista e cruel.  

Chão (Brasil, 2019), de Camila Freitas.

Documenteur

Agnès Varda tece uma narrativa híbrida, entre o documentário e a ficção. Emile, jovem recém divorciada, vive com seu filho Martin, que tem cerca de 10 anos, em Los Angeles. Ela é imigrante e passa seus dias entre o trabalho como datilógrafa, os cuidados com o filho e andanças pela cidade. 

A diretora francesa, única mulher integrante da prestigiada nouvelle-vague francesa, parece ter uma câmera acoplada ao seu corpo. Por onde passa, a diretora produz um filme. Documenteur foi realizada durante sua breve estadia em Los Angeles no início da década de 80. Documentário ou ficção, não importa. É o retrato de uma jovem mulher, Emile, em busca de se integrar a um país que finge abrir as portas para todos os sonhadores, sonhos que se desfazem na luta cotidiana. Atenção para a bela imagem de Emile sentada nua na cama. É uma pura imagem de Agnès Varda. 

Documenteur (França, 1981), de Agnès Varda. Com Sabine Mamour (Emile Cooper) e Mathieu Demy (Martin Cooper).