São Bernardo

É nítida a influência de Robert Bresson e Yasujiro Ozu em São Bernardo (1971). De Ozu, a apropriação dos longos planos estáticos, distantes dos personagens. Diálogos inteiros são filmados em plano geral, a câmera não se aproxima dos atores, não permite ao espectador contemplar as emoções dos personagens. Tudo fica por conta da força das palavras. Quando a câmera se aproxima, Leon Hirszman se deixa influenciar por Robert Bresson: os atores interpretam de forma naturalista, frios e também distantes. Madalena (Isabel Ribeiro) não deixa transparecer nas faces ou nos olhos a sua lenta degradação psicológica. Paulo Honório (Othon Bastos) se permite a explosões refletidas nos gestos e transtornos do rosto, mas quase sempre a câmera o foca em um longo monólogo interior, as faces e o olhar sem expressão.

A intenção de Leon Hirszman, um dos maiores diretores ligado ao cinema novo, é valorizar o belo texto de Graciliano Ramos. A história de Paulo Honório, pobre trabalhador de Alagoas que se torna o poderoso proprietário da fazenda São Bernardo às custas de exploração e crimes, reflete a realidade da luta pelo poder no sertão nordestino. Hirszman, ao optar pela montagem seca, traduz o verdadeiro objetivo do romance: expressar o interior de Paulo Honório, o homem que luta com obstinação por riqueza e poder, mas não consegue vencer os demônios de sua alma.

São Bernardo (Brasil, 1971), de Leon Hirszman. Com Othon Bastos, Isabel Ribeiro.

Cinco vezes favela

Cinco vezes favela (Brasil, 1962) é dos mais importantes filmes do Cinema Novo. O título se refere à reunião de cinco curtas, cuja temática comum é o cotidiano dos moradores da periferia do Rio de Janeiro. Um favelado, de Marcos Farias; Zé da Cachorra, de Miguel Borges; Escola de Samba Alegria de Viver, de Cacá Diegues; Pedreira de São Diogo, de Leon Hirszman; Couro de Gato, de Joaquim Pedro de Andrade.

Os filmes exploram as injustiças sociais, bem ao feitio dos jovens realizadores cinemanovistas, empenhados em evidenciar a cruel realidade dos moradores da periferia. São obras deficientes em termos técnicos, representam a experimentação de diretores iniciantes que contavam com equipamentos precários. A exceção fica por conta de Couro de Gato, cujo diretor, Joaquim Pedro de Andrade, mesmo nos primeiros filmes já se destacava em termos técnico-narrativos.

“COURO DE GATO (o terceiro curta-metragem  de Joaquim Pedro, que havia realizado O MESTRE DE APIPUCOS, 1959, e O POETA DO CASTELO, 1959) apresenta um nível de realização bastante superior aos outros episódios, embora também centrado na representação do universo burguês característico da época e na exploração de sentimentos fáceis no espectador.  PEDREIRA DE SÃO DIOGO (de Leon Hirszman) também é um filme bem realizado, marcado pelas preferências eisensteinianas do jovem cineclubista. Conta a luta dos operários de uma pedreira para impedir que uma explosão mais forte venha fazer despencar diversos barracos localizados na beira do barranco onde trabalhavam.”

REFERÊNCIA: História do cinema brasileiro. Fernão Ramos (organizador). São Paulo: Círculo do Livro, 1987.

ABC da greve

1979. Um adolescente acaba de sair do seu trabalho como office-boy e se encaminha para o programa favorito no início da noite: pegar uma sessão de cinema, neste dia, no Cine Jacques. Perto da portaria do cinema, é surpreendido pela multidão que caminha em sentido contrário aos gritos, portanto porretes e outras peças de madeira. Pessoas correm assustadas, lojistas fecham apressados as portas. Ao adolescente, também aterrorizado, resta se jogar debaixo da porta já quase fechada do Rei do Disco (onde ele frequentemente ouvia LPs nas cabines individuais antes de se decidir por este ou aquele). A porta descerrada só não impede a passagem do som: gritos, vidros quebrados, cantos de ordem.

Lembrei-me desse episódio que marcou minha adolescência, durante a famosa greve dos operários da construção civil em Belo Horizonte, ao rever o documentário ABC da greve (Brasil, 1979), de Leon Hirszman.

Leon Hirszman era considerado pelos integrantes do grupo a voz política do cinema novo. Pedreira de São Diogo, curta que integra o clássico Cinco vezes favela (1962) é um grito de resistência a favor das favelas do Rio de Janeiro. Eles não usam black-tie (1981), meu filme favorito do diretor, marca o cinema brasileiro a partir dos anos 80, quando os realizadores se voltaram para a história recente de nosso país, ou seja, a ditadura militar.

Em 1979, o diretor acompanhou a lendária greve dos metalúrgicos no ABC paulista. As filmagens foram complicadas, negativos do filme tiveram que ser escondidos e tirados camuflados da sede do sindicato dos metalúrgicos. Com problemas na finalização, o documentário só foi concluído em 1989 e lançado em 1990, após a morte de Leon Hirszman.

ABC da greve é retrato contundente da situação dos trabalhadores no final dos anos 70, denúncia da falsidade do milagre econômico apregoado pelo regime militar. Compõem o documentário cenas de rua dos trabalhadores em greve, depoimentos dos próprios trabalhadores, discursos dos líderes sindicais em impressionantes reuniões de milhares de grevistas a céu aberto, a equipe de Leon tentando se infiltrar nos pátios das fábricas. Tudo com câmera realista, próxima dos acontecimentos.

Para completar, o documentário traz imagens contundentes de Luiz Inácio Lula da Silva. Presidente do Sindicato dos Metalúrgicos, Lula lidera a greve,  magnetiza os trabalhadores; as imagens registram seu poder carismático, a liderança e persistência que o levariam mais de duas décadas depois à presidência da república.

A voz política de Leon Hirszman produziu um dos mais importantes documentários da história recente do Brasil, filme que precisa ser revisitado em um momento no qual a extrema direita massacra a sociedade e os trabalhadores se mantêm calados no chão de fábrica.