O dinheiro

Em seu último filme, Robert Bresson retoma princípios básicos de seu cinema, em termos narrativos e estéticos. A trama tem semelhanças com seu clássico extremo, O batedor de carteiras.

Um jovem, em Paris, pede adiantamento da mesada ao seu pai. O pedido é negado, o jovem recorre a um amigo e os dois resolvem passar adiante uma nota falsa de 500 francos. O crime se dá em uma loja de equipamentos fotográficos. No mesmo dia, o dono da loja repassa a nota como pagamento a Yvon, um bombeiro que acaba de prestar serviços na loja. 

Essa trama aparentemente simples, de uma nota falsa que circula de mão em mão na cidade, ganha contornos trágicos quando Yvon, sem saber da falcatrua, paga suas despesas em uma lanchonete com a nota. Ele é preso, julgado, perde seu emprego e, sem dinheiro, envereda pelo mundo do crime. 

Bresson aplica em O dinheiro (adaptado de um conto de Tolstoi) seu famoso radicalismo na direção de atores. Os personagens agem quase como autômatos, sem demonstrar emoções como tristeza ou raiva. Yvon aceita seu destino trágico com uma resignação fria, sua transformação em um honesto trabalhador, em um adorável pai de família, no mais cruel assassino, acontece de forma natural. A decupagem simples, direta, os cortes secos, uma imagem sucedendo à outra como fotos que passam diante de nossos olhos – estamos diante, pela derradeira vez, da genialidade simples de Robert Bresson. 

O dinheiro (L’Argent, França, 1983), de Robert Bresson. Com Christian Patey (Yvon Targe), Vincent Ristenucci (Lucien), Caroline Lang (Elise). 

Mouchette – A virgem possuída

A adolescente Mouchette vive no campo. Seu dia é dividido entre cuidar da mãe, que tem uma doença terminal, e frequentar a escola, onde pratica atos delinquentes, como jogar torrões de terra nas colegas, escondida abaixo da estrada. Um dia, ao sair da escola, resolve ir para casa pelo bosque e é surpreendida por uma tempestade. Ela se abriga na cabana do caçador Arsène, que acabara de ter um confronto com o guarda florestal Mathieu que pode ter terminado em morte.

A trágica narrativa de Robert Bresson evoca sentimentos inerentes à natureza humana das personagens: desejos ardentes, entrega aos vícios, provocações mútuas que levam a agressões. Mouchette participa e se entrega a estas experiências com ousadia e agressividade, quase ciente de seu destino trágico. A obra-prima de Robert Bresson é instigante e perturbadora.

Mouchette, a virgem possuída (Mouchette, França, 1967), de Robert Bresson. Com Nadine Nortier (Mouchette), Jean-Claude Gilbert (Arsène), Jean Vimenet (Mathieu), Marie Cardinal |(Mãe de Mouchette). 

A grande testemunha

Na infância, Jacques e Marie ganham um burro de presente, que passam a chamar de Baltazar. Jacques é filho do proprietário das terras onde vive o pai de Marie, um professor do interior adepto a novas práticas de cultivo. Quando termina as férias de verão, Jacques volta para Paris, após trocar juras de amor eterno com a pequena Marie.  

A grande testemunha é um melancólico estudo sobre as transformações da personalidade, motivadas pela passagem do tempo, principalmente a ruptura entre a infância e adolescência. Muitos anos depois, a adolescente Marie se apaixona por Gérard, cruel líder de uma gangue de jovens. A relação entre os dois oscila entre entregas carinhosas e atitudes completamente abusivas por parte de Gérard.

É um filme triste, refletido de forma intensa no olhar puro de Baltazar, que tem também uma infância alegre ao lado das duas crianças e, na vida adulta, sofre inacreditáveis violências físicas e psicológicas devido à sua condição de burro de carga. 

“O penúltimo filme em preto-e-branco de Robert Bresson – que faz par com Mouchette, de 1967 – é um estudo sobre a santidade, um conto poderoso e tocante sobre perversidade e sofrimento, e um olhar impiedoso sobre a crueldade inata e os impulsos destrutivos do homem. Ao tratar o burrinho do título como símbolo de pureza, virtude e salvação e escolher uma estrutura episódica para sua obra, Bresson confere a A grande testemunha uma intensidade notável, que ainda é acentuada pelo estilo visual despojado.”

Toda essa pureza e sofrimento é marcada por uma sequência tocante: após ser açoitado pelo seu dono, Balthazar consegue fugir e se esconde na casa abandonada onde viveu seus dias felizes com as crianças. Seu grito lancinante ao percorrer os ambientes decrépitos e solitários da propriedade é de destruir o coração. 

A grande testemunha (Au hasard Balthazar, França, 1966), de Robert Bresson. Com Anne Wiazemsky (Marie), Walter Green (Jacques), François Lafange (Gérard), Jean-Claude Guilbert (Arnold). 

Referência: 1001 filmes para ver antes de morrer. Steven Jay Schneider. Rio de Janeiro: Sextante, 2008.