Os erros de Hitchcock

Durante sua carreira, Hitchcock sempre refletiu sobre o processo de construção do filme, da ideia à montagem, às vezes se baseando em seus próprios erros. “Num filme de aventura, o personagem principal deve ter um objetivo, é vital para a evolução do filme e para a participação do público, que tem de apoiá-lo, e eu quase diria ajudá-lo, a alcançar esse objetivo.”

Na conversa com François Truffaut, Hitchcock ponderou, a partir desta perspectiva, sobre o motivo de Agente secreto (Secret agent, Inglaterra, 1936) não ter dado certo. “O herói (John Gielgud) tem uma missão a cumprir, mas essa missão o repugna, e ele tenta evitá-la. Tem de matar um homem e não quer matá-lo. É um objetivo negativo, e isso resulta num filme de aventura que não avança, que gira no vazio.”

O filme foi baseado em duas novelas de Somerset Maugham: O traidor e O mexicano careca. Richard Ashenden (John Gielgud) é um agente secreto britânico enviado à Suíça para matar um espião alemão que ainda precisa ser identificado. Seu ajudante será o General (Peter Lorre), um falso mexicano frio e inescrupuloso. 

O espião alemão está hospedado no Hotel Excelsior. Na recepção do hotel, Richard descobre que sua esposa, a Sra. Ashenden, está à sua espera no quarto. Elsa Carrington (Madeleine Carroll) será acompanhante do agente durante sua missão, um álibi seguro, caso necessário – a falsa esposa é comum nas histórias de espionagem e, geralmente, a turra entre os dois evolui para cenas de romance e sexo.   

À noite, Richard e o General estão na capela do hotel, onde descobrem um homem morto, estrangulado. Um botão de punho de terno está na mão do homem. Pouco depois, no cassino do hotel, os dois identificam um homem cujo punho do terno é composto exatamente pelo mesmo botão. É o espião, concluem. 

Caypor (Percy Marmont) é um turista inglês de meia-idade, tem como hobby a fotografia de pássaros e, a todo momento, se mostra simpático e bondoso – será mesmo um espião? O dilema aumenta quando Shipper, o cachorrinho de Caypor, invade o hall do hotel. Os seguranças tentam expulsar o animal que agora está seguro nos braços de seu tutor, sendo afagado com todo carinho, O talento de Hitchcock em instaurar a sombra da dúvida no espectador se concretiza nessa sequência. 

A sequência do assassinato do turista inglês é tão triste que o melhor é abandonar o filme. Caypor se oferece para ser guia de Richard e do General em um passeio pelas montanhas. Richard pede a Elsa que cuide da esposa da vítima. Elsa está deslumbrada com o caso de espionagem e deseja acompanhar passo a passo o desfecho, se recusando a cuidar da esposa. “Eu tenho que entreter essa velha chata, enquanto você vai caçar e se divertir.” Richard responde: “Posso lhe lembrar algo? Que não vamos caçar uma raposa e sim um homem. Um homem que tem uma esposa. Já sei que cumprimos com nossa obrigação. Mas é um assassinato. A sangue frio. E a você parece uma diversão.”

Durante a subida para a montanha, na cabine do teleférico, Caypor brinca com uma criança. Montagem alternada mostra Elsa “entretendo a velha chata”. Shipper está deitado, olhando para a porta fechada. 

Na montanha, os três caminham conversando alegremente. Shipper se aproxima da porta e começa a chorar. Caypor contempla a bela vista do alto da montanha. Shipper chora mais e mais no pé da porta. Elsa olha para o cachorro com um semblante tenso e triste.  

No topo da montanha, Richard hesita e fala para o General: “Eu não o faço. É horroroso. O agente secreto tenta convencer Caypor a descer de volta. Mas é ele quem desiste e volta até uma cabana que serve como ponto de apoio para os montanhistas. 

Shipper arranha a porta com desespero. Elsa agora tem a cabeça cabisbaixa. Do ponto de apoio, Richard visualiza o General e sua vítima por uma luneta. Uma íris se forma, recortando Caypor na beira do precipício e o General atrás, com a mão nas costas do turista. Ouve-se o grito estridente de Shipper. Corta para Richard: “Se vire Caypor. Cuidado.” Ele tira o olho da luneta, o choro triste de Shipper toma conta da cena. Corta para Elsa olhando para o cão, que uiva, um uivo desolador, doloroso. A esposa e Elsa choram juntas. 

Pouco depois, na mesa de um bar estão Richard, Elsa e o General. Richard recebe um papel, lê o telegrama e o joga sobre a mesa: “Sua mensagem recebida. Erraram de homem. Encontrem o que nos interessa.” Consumido pela culpa, Richard Ashenden não se empenha mais na missão. A partir daí, vai caminhar com tristeza e resignação para o seu trágico fim. 

O dilema do agente secreto é o prenúncio de dois dos melhores filmes de Hitchcock nos Estados Unidos: A sombra de uma dúvida (1943) e O homem errado (1956).  O erro do diretor não foi criar um herói que “tem uma missão a cumprir, mas essa missão o repugna, e ele tenta evitá-la.” Foi mostrar a morte do outro herói, um homem ingênuo, bondoso, amável com a esposa, com as crianças e com seu adorado cachorrinho de forma tão triste – a estrutura da sequência traz a maestria do uso da montagem alternada em seus aspectos dramáticos e remete ao pai de todos neste quesito: D. W. Griffith, basta citar a estruturação da luta dos pugilistas e do idílio amoroso do jovem casal em Lírio partido (1919). 

Em seu filme seguinte, Sabotagem (1936), Alfred Hitchcock fez uma das sequências mais famosas do uso da montagem alternada para levar o espectador ao extremo do suspense. Cometeu outro erro, aquele que considera o pior de sua carreira: a explosão da bomba no colo de um garoto dentro de um bonde, novamente tendo um cachorrinho ao seu lado, nos braços de uma adorável senhora. “Fazer morrer uma criança num filme; beira-se o abuso de poder do cinema. O que acha?” – François Truffaut. “Concordo. É um grave erro.” – Hitchcock. 

Difícil terminar esse texto, pois erros são assim: momentos de introspecção e ensinamentos para quem os cometeu. 

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