
Quando Charles Foster Kane soltou da mão a redoma de vidro e pronunciou a palavra “rosebud”, uma revolução se anunciou na história do cinema. As extravagâncias técnicas que o diretor Orson Welles e o diretor de fotografia Gregg Toland imprimiram em Cidadão Kane (Citizen Kane, EUA, 1941) assombraram o mundo cinematográfico. Em termos narrativos, camadas de flashbacks também inovaram na busca do jornalista pelo significado da palavra que Kane pronuncia antes de morrer. No entanto, a trama parte de recurso tão antigo quanto contar histórias: a volta à infância motivada por um objeto simbólico.
Corta para 2001. O fotógrafo Bobby Garfield está em seu estúdio, fotografando uma redoma de vidro. Toca a campainha, ele recebe encomenda pelo correio. Abre a caixa e se depara com uma surrada luva de beisebol. Junto, recorte de jornal informa sobre a morte de um herói militar. Pensamentos de Bobby anunciam: “O passado pode chegar derrubando a sua porta. E você nunca sabe para onde ele vai te levar. Você só pode esperar que seja um lugar para onde você queira ir.” Bobby pega a foto de uma menina, coloca na carteira e sai em busca de seu passado.
Segundo o roteirista Michel Chion, acessórios cenográficos podem ter papel revelador ou mesmo simbólico: “É o caso de objetos cuja posse é disputada e que representam o poder, a riqueza, o saber ou ainda a infelicidade, a lembrança, a infância (o trenó de Citizen Kane, que representa o objeto perdido).” Esses clichês narrativos são caros ao cinema clássico americano.
A viagem leva Bobby ao funeral do amigo de infância Sully, dono da luva. Durante a solenidade, outro recurso narrativo comum é usado: flashbacks revelam os meninos Bobby e Sully e a menina Carol brincando no bosque.
Lembranças de um verão é adaptação de texto de Stephen King, autor especialista no gênero literário que desperta emoções há tempos imemoriais. Um princípio de textos do autor é a volta à infância em um período determinado que demarca a passagem. Em toda boa narrativa de gênero como as do mestre Stephen King, o passado esconde mistérios.
Personagens centrais para a elucidação do mistério escondido em um verão da década de 50, quando Bobby acaba de completar 11 anos, entram em cena quando o flashback toma conta da narrativa. A mãe do garoto, o pai ausente e Ted Brautigan, inquilino que chega para morar no andar de cima da casa de Bobby.
Jacqueline Nacache indica que a forma mais segura de identificar o gênero consiste na análise do início do filme, quando elementos simbólicos e personagens são apresentados ao espectador. Não pretendo analisar passo a passo o filme. Concentro-me nos minutos iniciais para dizer do fascínio que sinto por narrativas que, de forma clássica, me permitem descobertas de mistérios envoltos aos personagens e me remetem a recantos insondáveis da memória.
Lembranças de um verão trabalha com temas fundamentais na formação de todos nós: atitudes lúdicas da infância, bullying, amizade, o primeiro beijo, pacto entre amigos, a incompreensão do universo dos pais, assédio, o fascínio por um adulto que pode determinar como vamos enxergar o mundo (no caso de Bobby, aprender com Teddy a olhar o futuro). A guerra fria também demarca a narrativa, “homens ordinários” perseguem Teddy e algo que ele tem para uso em fins políticos..
O filme acontece com a simplicidade visual e técnica das narrativas clássicas, pontuada por frases de efeito e trilha sonora encantadora. Ao final do filme, fica da simplicidade o que todos nós buscamos por mais complexo que seja: “Aquele foi o último verão da minha infância.”
Lembranças de um verão (Hearts in Atlantis, EUA, 2001), de Scott Hicks. Com Anthony Hopkins (Ted Brautigan), Anton Yelchin (Bobby Garfield), Hope Davis (Liz Garfield), Mika Boorem (Carol Gerber), David Morse (Bobby Garfield adulto).
Referências:
O roteiro de cinema. Michel Chion. São Paulo: Martins Fonte, 1989
O cinema clássico de Hollywood. Jacqueline Nacache. Lisboa: Edições Texto & Grafia, 2005