São duas histórias cujas narrativas não têm relação direta uma com a outra. Um jovem perambula sozinho pelas montanhas agrestes, se alimentando primeiro de pequenos insetos e outros animais. Passo a passo, se transforma em um canibal. Mata e come outros peregrinos das montanhas como ele. Aos poucos, outras pessoas o seguem, como uma espécie de legião de canibais. Julian Klotz, filho de um rico industrial que mantém relações comerciais escusas com a Alemanha desde o período nazista, vive em uma suntuosa mansão, um castelo repleto de ambientes, obras de arte e jardins exuberantes. Desde criança, tem como diversão misteriosas visitas à pocilga da propriedade. Ida, sua namorada, anuncia logo no início do filme: “Somos dois ricos burgueses, Julian. O destino que nos uniu não é qualquer um. É natural que nos orgulhemos. Na verdade, só estamos aqui nos analisando porque é nosso privilégio.”
Pocilga é uma incursão surrealista de Pasolini a temas que marcaram sua obra fílmica e teórica: a religiosidade, a repressão política, contestações aos valores morais da sociedade, a exploração capitalista, o consumismo exacerbado, os conflitos inerentes à entrega aos mais profanos desejos da mente e do corpo humanos.
O filme ecoou de forma perturbadora, provocando críticas acirradas para o bem e para o mal. Os longos diálogos filosóficos entre os personagens que habitam a mansão se contrapõem à silenciosa narrativa que acompanha a trajetória do canibal. Teatro e cinema em conjunção em mais uma obra rebelde de Pasolini.
Pocilga (Porcile, Itália, 1969), de Pier Paolo Pasolini. Pierre Clémenti (Canibal), Jean-Pierre Léaud (Julian Klotz), Alberto Lionello (Sr. Klotz), Ugo Tognazzi (Herdhitze), Anne Wiazemsky (Ida), Margarita Lozano (Madame Klotz).
A fase final da carreira de Luis Buñuel apresenta três obras-primas que funcionam como trilogía: Via láctea (1969), O discreto charme da burguesia (1972) e O fantasma da liberdade (1974).
A comédia O discreto charme da burguesia traz a marca surrealista de Buñuel em uma trama aparentemente banal: três casais de amigos burgueses tentam jantar juntos por vários dias, mas são interrompidos por acontecimentos inusitados. Estão sentados à mesa quando chega um pelotão do exército, entra na casa e anuncia que estão em treinamento na região. Vão a conhecido restaurante e antes de serem servidos, descobrem que o dono do estabelecimento está sendo velado na sala ao lado. Estão em casa de um dos anfitriões e, pouco antes do jantar, descobrem que o casal proprietário fugiu, repentinamente, todos fogem com temor que a polícia está para chegar. Em meio aos jantares, situações absurdas acontecem, mistura de sonho e realidade dos personagens.
“A estrutura narrativa é minuciosamente construída por interrupções: do ato de comer, do ato amoroso e do ato da fala. As personagens encontram-se tão impedidas em suas ações quanto as de O anjo exterminador, com a diferença de que não se encontram confinadas em um único espaço. O discreto charme da burguesia prenuncia a frustração causada em O fantasma da liberdade, em que a câmara passeia de um núcleo dramático para outro, abandonando-o antes de sua conclusão. Ao final da narrativa de O discreto charme, não se sabe a partir de que momento Acosta começou a sonhar – tanto pode ter sido durante toda a narrativa quanto apenas na sequência final. O imbricamento entre sonho e realidade é levado ao ponto de não se poder diferenciá-los.” – Erika Savernini.
O discreto charme da burguesia (Le charme discret de la bourgeoisi, França/Itália/Espanha, 1972), de Luis Buñuel. Com Fernando Rey, Paul Frankeur, Delphine Seyrig, Bulle Ogier, Stéphane Audran, Jean-Pierre Cassel, Julien Bertheau, Milena Vukotic, Michel Piccoli.
Referência: Índices de um cinema de poesia. Pier Paolo Pasolini, Luis Buñuel e Krzysztof Kieslowski. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2004
Um cão andaluz (Un chien andalou, França, 1928), de Luis Buñuel.
Quando exibo o filme em sala de aula, aviso os alunos e alunas sobre o impacto da cena inicial. Mão de um homem (Luis Buñuel) afia a navalha. Ele tem um cigarro no canto dos lábios. Ele sai do quarto, contempla o céu da sacada, um fiapo de nuvem se aproxima da lua cheia. Corta para close de mulher, a mão do homem se aproxima de um de seus olhos, o abre e posiciona a navalha em frente ao olho. Corta para o fiapo de nuvem passando em frente a lua. Corta para um superclose da navalha cortando o olho da mulher, o globo ocular espirra na face.
O cuidado em avisar os espectadores de minhas aulas de História do Cinema se deve a uma sessão inadvertida: após a cena da navalha, dois alunos saíram da sala em busca de ar, conforme relataram.
Um cão andaluz nasceu da parceria entre Luis Buñuel e Salvador Dalí, espanhóis que formaram, junto com o poeta Federico Garcia Lorca, irreverente trio quando residiram em Madri. Contam que praticavam atos de contestação social bem antes de conhecerem as ideias surrealistas. Por exemplo: uma amiga dos três se vestia de prostituta, entrava no metrô. Na estação seguinte, um dos três entrava vestido de padre e começava a molestar a mulher. Na terceira estação, outro entrava vestido de policial e partia para espancar o padre, dizendo que “padres sempre molestam prostitutas”. Depois da conturbada reação das pessoas no metrô, eles desciam e iam beber.
Em Paris, Buñuel trabalhou como assistente de direção para aprender a técnica cinematográfica, enquanto Dalí era apresentado à sociedade das artes. Entusiasmado com o aprendizado, Buñuel propôs a Dali a realização de um filme. Segundo ele, “O roteiro foi escrito em menos de uma semana, segundo uma regra muito simples adotada de comum acordo: não aceitar nenhuma ideia, nenhuma imagem que pudesse dar ensejo a uma explicação racional, psicológica ou cultural. Abrir todas as portas ao irracional. Não acolher senão as imagens que nos impressionassem, sem procurar saber por quê.”
O filho de Buñuel, Juan-Luis, explica a relação do pai e Dali durante a escrita do roteiro: Dali diria, por exemplo, um boi ataca a câmera. Meu pai não gostava da ideia e Dali a aceitava imediatamente. Eles criavam cenas. “Há uma mulher”. “Bom, o que ela faz?” “Pula corda”. “Má ideia”. “Ela está com medo”. “Bem. De que?” “Dois pedaços de corda.” “Interessante. Onde estão?” “São de ouro.” “Não.” “Há um homem puxando.” “Bom. Puxando o que?” “Um trem ou um piano.” “Piano é ótimo.” “O que há no piano?” “Uma corda de pular.” “Não.” “Dois jumentos mortos.” “Grande.” E assim por diante.
Buñuel conseguiu dinheiro com a mãe e, depois de gastar metade do dinheiro em boates, rodou o filme em quinze dias. O resultado é um filme com continuidade narrativa, princípio básico da linguagem cinematográfica, mas completamente desconectado da lógica.
“Muitas vezes, por conta de sua grande influência sobre os videoclipes de rock, Um cão andaluz foi e continua sendo reciclado e reduzido a uma coleção de imagens desconexas, impactantes e incongruentes: um cavalo morto em um piano, formigas saindo da mão de alguém. Porém essa abordagem ignora o que dá à obra sua força coesiva: o fato de que, em muitos aspectos, Buñuel respeita escrupulosamente certas convenções da continuidade clássica e encadeamento de imagens, criando uma atmosfera narrativa sólida e inquietante entre esses fragmentos do inconsciente. Trata-se de uma dialética entre racionalidade superficial e as forças profundas e revoltas do Id que Buñuel continuaria explorando até o fim de sua carreira.”
Sobre a famosa primeira cena, filmada com o poder do cinema em transformar sonhos em imagens sombrias e aterradoras, Luis Buñuel escreveu: “Para submergir o espectador em um estado que permitisse a livre associação de ideias, era necessário produzir nele quase um choque traumático logo no começo do filme, por essa razão nós o começamos com o plano do olho seccionado, muito eficaz. O espectador entrava no estado catártico necessário para aceitar o desenvolvimento ulterior.”
A primeira exibição pública de Um cão andaluz foi promovida para “a fina flor de Paris”, formada por aristocratas, escritores, pintores e o grupo surrealista. Relembrando a primeira exibição, Buñuel relata que estava muito nervoso e ficou atrás da tela com uma vitrola, trocando discos durante a projeção, alternando entre tangos argentinos e Tristão e Isolda. Ele colocara pedras nos bolsos para atirar na plateia em caso de vaias. No final da projeção, Um cão andaluz foi aplaudido por minutos e as pedras foram jogadas ao chão.
Após cada sessão em minhas aulas de cinema, fico algum tempo sem saber por onde começar, esperando, talvez, alunos e alunas recuperarem o ar. Hoje, revi o filme sozinho, sem meus adoráveis espectadores. Estamos em casa, lidando com seres invisíveis que penetram em nossos organismos, atacam o consciente, o inconsciente, provocam sonhos tenebrosos que, se dependesse da imaginação sem limites de Luis Buñuel, estariam apenas na tela de cinema, fascinando espectadores na sala escura.
Referências:
1001 filmes para ver antes de morrer. Steven Jay Schneider (editor geral). Rio de Janeiro: Sextante, 2008
Índices de um cinema de poesia. Pier Paolo Pasolini, Luis Buñuel e Krzysztof Kieslowski. Erika Savernini. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2004
Meu último suspiro. Luis Buñuel. São Paulo: Cosac Naify, 2009
O filme traz pequenas histórias desenvolvidas a partir do cotidiano burguês. Criada e babá leem livro sobre a revolução francesa no parque enquanto as meninas são assediadas por um homem. Secretária de médico viaja para o interior para visitar o pai doente e se encontra com estranhos personagens em hotel de beira de estrada. Professor tenta ensinar “costumes sexuais” a militares. Homem é diagnosticado com câncer de fígado, chega em casa e é avisado que a filha sumiu, no entanto ela está diante de seus olhos o tempo todo. Jovem poeta atira a esmo nas pessoas do alto de um prédio. Delegado de polícia recebe telefonema da irmã morta há quatro anos.
As história são interligadas por personagens que se cruzam ao fim de cada história. O teor surrealista está presente em cada trama, algumas dominadas por sonhos perturbadores, outras por desejos inconscientes, a maioria oscilando entre sexo, morbidez e morte.
“Em O fantasma da liberdade, a narrativa se compõe de esquetes autônomos, que não chegam a se realizar plenamente. O espectador é lançado de um lado para o outro, ao bel-prazer da câmera – que parece fascinada pelas possibilidades narrativas subjacentes. (…) O fantasma da liberdade retoma características dos filmes anteriores, em uma narrativa fragmentada e incompleta em cada episódio que frustra o espectador em sua posição passiva.” – Erika Savernini.
O fantasma da liberdade (Le fantôme de la liberté, Itália/França, 1974), de Luis Buñuel.
Referência: Índices de um cinema de poesia. Pier Paolo Pasolini, Luis Buñuel e Krzysztof Kieslowski. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2004
Dois peregrinos percorrem o Caminho de Santiago. Sem dinheiro, vivem da caridade de estranhos durante a viagem. O road-movie os coloca diante de personagens simbólicos, em histórias episódicas pautadas por referências e citações bíblicas. Presente e passado se confundem aos olhos dos espectadores, além de incursões surrealistas, como a bela personificação da morte no assento traseiro do carro.
“Buñuel considerava que Via Láctea era uma narrativa documental sobre a história das heresias no seio do cristianismo, posto que se constitui como uma dramatização de discussões teológicas. Percebe-se, então, o papel fundamental desempenhado pelos diálogos para a criação da continuidade narrativa. Os diferentes episódios e suas épocas dialogam diretamente; e esse diálogo enfatiza a presentificação da narrativa. Passado e presente só são reconhecidos como tal pelo figurino das personagens e pela espacialidade criada (o desvio dos peregrinos para fora da estrada).”
Via Láctea (La voie lactée, França/Itália, 1969), de Luis Buñuel. Com Paul Frankeur, Laurent Terzieff, Alain Curry.
Referência: Índices de um cinema de poesia. Pier Paolo Pasolini, Luis Buñuel e Krzysztof Kieslowski. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2004
Luis Buñuel planejou A morte no jardim como referência direta à Espanha do General Franco, de onde o diretor teve que se exilar no início de sua carreira. O cenário é a pequena vila de mineração incrustada em país indefinido da América Latina. O governo toma posse da mina de ouro e expulsa os mineradores. Eles se revoltam nas ruas da cidade e grupo de foragidos se encontra em um barco: o jovem explorador europeu que é acusado de roubo; minerador rico e sua filha surda e muda; o missionário da cidade; um soldado; a prostituta e o mercenário dono do barco.
Em termos narrativos, A morte no jardim guarda semelhanças com No tempo da diligências (1939), de John Ford. Representantes de classes sociais distintas estão juntos no mesmo veículo e se defrontam com o perigo. No faroeste de Ford, são os índios. No drama social de Buñuel, a floresta amazônica coloca em risco mortal os personagens.
A morte no jardim (La mort en ce jardin, França/México, 1956 ), de Luis Buñuel. Com Simone Signoret (Djin), Charles Vanel (Castin), Michel Piccoli (Padre Lizardi), Michèle Girardon (Maria), Georges Marchal (Shark).
A jovem Tristana perde a mãe e Dom Lope a assume como tutor. Já idoso, Dom Lope tem ideias progressistas, renega a religião, defende os trabalhadores e flerta com o socialismo, apesar de viver de renda em uma bela casa. Ele desenvolve por Tristana sentimentos dúbios: amor paternal e marital, a adotando como pai e amante. Tudo muda quando Tristana se apaixona por um jovem pintor.
O surrealista Buñuel despeja em Tristana, uma paixão mórbida seu olhar sem piedade sobre a sociedade e as relações humanas. O nobre Dom Lope reverte seus princípios ao menor desejo sexual; a ingênua Tristana se dilui entre o amor e o ódio, sem pudor em usar as pessoas de acordo com as oscilações de seu caráter.
“Buñuel desejava filmar esta adaptação do romance clássico de Benito Pérez Galdós desde 1963. Ele aborda um de seus tópicos favoritos: a sedução e a corrupção de uma pessoa inocente, Tristana (Catherine Deneuve) por Dom Lope (Fernando Rey), um cavalheiro muito mais velho cujos ideais políticos declarados são muito mais radicais do que sua forma de tratar as mulheres. Tristana sobrevive a essa opressão, depois da perda de uma perna, duplicando sua crueldade e estendendo seus efeitos, como na cena perturbadora em que ela exibe o seu corpo ao jovem empregado Saturno (Jesús Fernández).”
Tristana, uma paixão mórbida (Tristana, França/Itália/Espanha, 1970), de Luis Buñuel. Com Catherine Deneuve, Fernando Rey, Franco Nero, Lola Gaos, Antonio Casas.
Referência: 1001 filmes para ver antes de morrer. Steven Jay Schneider (editor geral). Rio de Janeiro: Sextante, 2008