O vampiro

O vampiro (Vampyr, Dinamarca, 1932), de Carl Dreyer.

David Gray (Nicolas de Gunzburg), jovem estudante de ocultismo, chega a uma vila nos arredores de Paris. À medida que lê trechos de um livro sobre vampiros, realidade e sonhos se misturam em sua mente, provocando confusão também na mente do espectador. 

Caryl Dreyer fez uma adaptação livre de Camille, conto de Sheridan Le Fanu. O filme foi financiado pelo barão holandês Nicolas de Gunzburg, que interpreta o protagonista. Muito do clima de terror da película vem da estética e linguagem inovadoras: sombras que se movem sozinhas, imagens fragmentadas de aparições ligeiramente disformes de personagens, o espírito que deixa o corpo de Allan Gray enquanto ele dorme, a impressionante sequência do corpo do protagonista em um caixão com uma pequena janela de vidro deixando vislumbrar apenas seu rosto. 

“A grandeza do primeiro filme sonoro de Carl Dreyer se deve em parte a sua abordagem do tema do vampiro através da sexualidade e do erotismo e em parte pela sua muito peculiar estética onírica. No entanto, ela também está relacionada à remodelação radical da forma narrativa por parte do diretor. Fazer uma sinopse do filme não significa apenas traí-lo, mas também deturpá-lo. Embora nunca seja menos do que hipnotizante, ele embaralha as convenções do estabelecimento do ponto de vista e continuidade e inventa uma linguagem própria. Algumas das sensações e imagens representadas por essa linguagem são verdadeiramente fantásticas: a longa viagem de um caixão do aparente ponto de vista do cadáver; uma dança de sombras fantasmagóricas dentro de um celeiro; a expressão de desejo carnal de uma vampira por sua frágil irmã; a misteriosa morte por asfixia de um médico cruel dentro de um moinho de trigo; e a prolongada sequência de sonho que consegue imiscuir-se de forma sinistra na própria narrativa.”

O vampiro foi um fracasso de público, que talvez ainda não estivesse preparado para essa incursão pelo puro terror psicológico. No entanto, assim como a maioria dos filmes saídos da incompreendida mente genial de Carl Theodor Dreyer, ganhou com o tempo o status de cult e se tornou referência para gerações de cineastas que se aventuram pelas obscuras narrativas do gênero terror. 

Referência: 1001 filmes para ver antes de morrer. Steven Jay Schneider. Rio de Janeiro: Sextante, 2008.

Dias de ira

Dias de ira (Vredens dag, Dinamarca, 1943), de Carl Dreyer.

Em uma vila dinamarquesa no início de 1600, a jovem Anne (Lisbeth Movin) é casada com o idoso pastor Absalon (Thorkild Roose). Um passado atormenta a relação do casal: a mãe de Anne foi considerada bruxa, mas o caso foi encoberto por Absalon, assim ele poderia desposar a jovem. O filho de Absalon retorna a casa e se apaixona por Anne, dando início a um ousado e perigoso romance. 

Os horrores da inquisição rondam a Europa e Marte (Sigrid Neiiendam), uma idosa, é acusada de bruxaria, torturada e condenada à morte no fogueira.  Marte, conhecedora do passado, ameaça Absalon: se o pastor não a salvar da morte, o clero será informado do acobertamento.

Dias de ira foi responsável pelo exílio do diretor Carl Dreyer. O filme foi produzido e exibido durante a ocupação nazista na Dinamarca, que aderiu ao regime de Hitler pacificamente. A sequência da tortura de Marte, acompanhada com um sádico interesse pelos clérigos é um dos grandes momentos de terror psicológico do cinema. A inquisição delegava aos religiosos, homens, o poder de aplicar o “dia da ira de Deus”. Os nazistas entenderam o recado do mestre Carl Theodor Dreyer.  

Gertrud

Gertrud (Dinamarca, 1964), de Carl Dreyer. 

Em seu último filme, Carl Dreyer, com 75 anos, compõe uma das obras mais radicais do novo cinema dos anos 60, dominado pela juventude rebelde, cujos principais representantes são os franceses da nouvelle-vague. No final do século XIX, Gertrud (Nina Pens Rode) é uma mulher de meia idade, casada com um advogado e futuro ministro de estado. Ela foi uma cantora operística de sucesso – não é revelado o motivo dela abandonar os palcos – e vive resignada, frequentando um grupo social formado por artistas e intelectuais.  Em uma conversa franca com o marido, Gertrud revela que vai deixá-lo, pois está apaixonada por um jovem músico. 

Dreyer adaptou a peça do sueco Hjalmar Soderberg, escrita em 1906. As cenas se passam quase totalmente em interiores, em longos planos sequências, a câmera parada nos atores, com ligeiros movimentos quando eles se movem. Os extensos diálogos versam sobre o amor, Gertrud se entrega a um romantismo sem perspectivas, pois sabe que seus amantes a colocam depois do trabalho e da arte. 

Carl Dreyer, a exemplo de Robert Bresson, trabalha com a não-interpretação do elenco. Durante suas longas digressões, Gertrud não olha para os quatro homens que perpassam sua busca pelo amor pleno. Seu olhar fita o vazio, suas expressões, assim como a de seus interlocutores, não demonstram sentimentos. 

“Dreyer filma a obra com uma contenção fascinante. Com quase duas horas de duração, o filme todo consiste em menos de 90 planos. Por longos períodos de tempo, a câmera permanece em plano médio, observando a conversa de duas pessoas. Apesar de tomados por sentimentos fortes, amor e desespero, os personagens raramente elevam a voz. Há poucos cenários e apenas uma externa. A simplicidade é o máximo nos décors, entre os diretores consagrados, talvez apenas Ozu tenha ousado o risco de tal austeridade estilística. Em sua estreia em Paris, Gertrud foi recebido com uma hostilidade incompreensível pela imprensa e pelo público. Desde então, foi reconhecido como a última pérola de um dos mais singulares cineastas de todos os tempos. É um filme que, como sua heroína, deve ser avaliado em seus próprios termos.”

Elenco: Nina Pens Rode (Gertrud Kanning), Bendt Rothe (Gustava Kanning) , Ebbe Rode (Gabriel Lidman), Baard Owe (Erland Jansson), Axel Strobye (Axel Nygen).

Referência: 1001 filmes para ver antes de morrer. Steven Jay Schneider. Rio de Janeiro: Sextante, 2008.

A palavra

Difícil ver A palavra (Ordet, Dinamarca, 1955), de Carl Dreyer, sem refletir sobre a natureza do  milagre. A Fazenda Borgen é a morada de uma família de religiosos ortodoxos. O patriarca Morten, os irmãos Mikkel, Johannes e Anders, Inger, esposa de Mikkel que está prestes a ganhar seu terceiro filho. A fraternidade reina entre os moradores, a religiosidade pontuando ações e comportamentos: Mikkel perdeu sua fé, Anders é o caçula temente a Deus e seus princípios, Johannes é visto como louco, pois acredita ser a reencarnação de Jesus Cristo. 

O filme, uma adaptação da peça teatral de Kaj Mund, conquistou o Leão de Ouro no Festival de Veneza. Foi filmado praticamente em estúdio, retratando o interior da casa Borgen e a casa do rival religioso de Morten. Os diálogos reinam absolutos na trama, remetendo a conflitos psicológicos, reflexões filosóficas e religiosas, provocando debates acalorados sobre  a fé e, principalmente, sobre como a intolerância religiosa domina as relações familiares e sociais. 

“De fato, este é, em muitos aspectos, o filme mais ‘realista’ ou ‘naturalista’ sobre o poder da fé, do amor (em todos os sentidos) e do sobrenatural já realizado. Dreyer abstém-se de qualquer tipo de trucagem. Embora as imagens em preto-e-branco minimalistas, porém excepcionalmente belas, de Henning Bendtsen confiram à casa e aos pastos dos Borgen um certo resplendor, o ritmo lento de Dreyer, seus planos longos e direção enganosamente simples podem sugerir que o filme é um drama intimista sobre fazendeiros comuns. Apenas a voz sedutora de Johannes pode parecer algo incomum, mas ele, no fim das contas, não bate bem da cabeça. Esta é a grandeza de A palavra: quando o ‘milagre’ acontece, o filme já conquistou nosso respeito por sua integridade – compreendemos as pessoas na tela, pois suas atitudes, emoções, pensamentos e dúvidas são comuns as nossas. E, quando Inger abre os olhos novamente, provavelmente sentimos exatamente o mesmo que elas: assombro, felicidade e uma admiração genuína. Pois, mesmo que A palavra não consiga nos converter à crença religiosa, teremos ao menos testemunhado arte cinematográfica de primeira grandeza.”  

Elenco: Henrik Malberg (Morten Borgen), Birgitte Federspiel (Inger Borgen), Emil Hass Christensen (Mikkel Borgen), Preben Lerdorff Rye (Johannes Borges), Cai Kristiansen (Anders). 

Referência: 1001 filmes para ver antes de morrer. Steven Jay Schneider. Rio de Janeiro: Sextante, 2008.