O pequeno soldado

Bruno Forestier trabalha como repórter fotográfico em Genebra. Ele conhece a modelo Veronica Dreyer, por quem se apaixona de imediato. A relação entre os dois, transitando pela cidade, é o ponto de partida para uma intrincada e confusa trama de espionagem, envolvendo agentes da esquerda e da direita.

Bruno é coagido por agentes de uma facção franco-direitista e é forçado a matar um agente da Frente de Libertação Nacional Argelina. O repórter se recusa, é perseguido, preso e torturado. A longa sequência da tortura em um apartamento é o destaque do filme, levantou polêmicas a ponto da obra ser censurada pelo governo francês. 

“Esse thriller político cujo verdadeiro tema são os poderes miméticos da violência, em que a política se resume a um grande negócio sujo, em que direita e esquerda são rivais miméticos que se reconciliam na tortura, este pequeno filme maldito feito apressadamente, como um bloco de notas, proibido e enxovalhado à esquerda e à direita, talvez tenha sido o maior gesto iconoclasta godardiano, um verdadeiro gesto vanguardista de ruptura simbólica, uma fissura aberta na ordem do simbólico de seu tempo, como prova, aliás, sua imediata interdição – censurado pelo próprio Maulraux, então ministro da Cultura. Nesse ponto seria preciso fazer justiça até mesmo aos censores, pois o filme não foi censurado porque Godard ousou tocar abertamente no tabu da Guerra de Argélia, nem mesmo pela forma irresponsável, quase leviana, com que tratou o tema. A censura se deveu, no fundo, ao fato de Godard ter conseguido chegar à verdade, a uma imagem da Argélia, a tortura. À forma crua e precisa, quase didática, com que filma a tortura.” – Tiago Mata Machado. 

A força de O pequeno soldado está, claro, neste retrato realista, cruel de uma das guerras insanas que perpassaram o século XX. No entanto, impossível não se render também ao olhar de Godard sobre o cinema, representado pela câmera fotográfica de Bruno. Em uma bela sequência, Bruno fotografa sua amada Veronica de forma aleatória no apartamento. Ele professa entre um intervalo das fotos: “Quando fotografamos um rosto, fotografamos a alma que está por trás. A fotografia é a verdade, e o cinema é a verdade 24 vezes por segundo.”

O pequeno soldado (Le petit soldat, França, 1960), de Jean-Luc Godard. Com Michel Subor (Bruno Forestier), Anna Karina (Veronica Dreyer).

Referência: Godard inteiro ou o mundo em pedaços. Eugênio Puppo e Mateus Araújo. Catálogo da mostra editado pelo Cine Humberto Mauro – Fundação Clóvis Salgado: Belo Horizonte, 2014

Salve-se quem puder (a vida) 

Com sugestões autobiográficas, Salve-se quem puder apresenta Paul Godard, diretor de cinema às voltas com a realização de um filme e o relacionamento com sua namorada, Denise, que resolve se mudar para o campo. Entre os dois, surge a prostituta Isabelle, que teve Paul como antigo cliente. A narrativa é dividida em três partes, cada uma centrada em um personagem: O imaginárioO medo e O comércio.

O tom anárquico, criticamente sem escrúpulos sobre a sociedade, está presente em imagens perturbadoras. Em uma sequência, Isabelle atende a um empresário em seu escritório que a faz participar de orgia comandada por ele como quem dirige seus trabalhadores na linha de montagem. O cinema também não escapa ao olhar mordaz de Godard, a reflexão se interpõe durante a narrativa, abordando a indústria e os próprios caminhos do cineasta. 

“Salve-se quem puder é um filme sobre escolhas, mas também sobre a dificuldade de ser livre por meio delas (‘Ninguém no mundo é independente. Apenas os bancos são independentes. Mas os bancos são assassinos’). É, ao mesmo tempo, um filme sobre o isolamento e sobre a necessidade do outro, num mundo tomado pela lógica absurda do capitalismo. À sua maneira contemplativa e quase naturalista, a fotografia de W. Lubtchansky e R. Berta constrói o retrato melancólico desse novo mundo. O espectador pode sentir assim a emoção contraditória desse pessimismo, dessa falta de perspectiva em torno das coisas, que reina à espera de que algo novo comece, ou de que um resto de beleza apareça.” – João Dumans

Salve-se quem puder (a vida) (Sauve qui peut (La vie), França, 1979), de Jean-Luc Godard. Com Jacques Dutronc (Paul Godard), Isabelle Huppert (Isabelle), Nathalie Baye (Denise Rimbaud).

Referência: Godard inteiro ou o mundo em pedaços. Eugênio Puppo e Mateus Araújo (organização). Catálogo da mostra sobre Godard – Cine Humberto Mauro: Belo Horizonte, realizada em 2015/2016. 

Paixão

Não existe trama definida em Paixão, de Godard. O filme é sucessão de cenas replicando imagens famosas de diversos pintores, incluindo Goya, Rembrandt, Delacroix, Ingres e El Greco. O cineasta polonês Jerzy está na Suiça tentando rodar seu filme no melhor estúdio do país. Ele está hospedado no hotel de Hanna, mas se envolve com outra bela mulher: Isabelle, jovem operária que acabara de ser demitida da fábrica onde trabalha pelo marido de Hanna. 

Poderia ser apenas mais uma história de triângulo amoroso, mas as lentes de Godard transformam a película em experimento estético, transitando entre o cinema e as artes plásticas. Em meio às belas imagens, verdadeiros quadros fixos, o crítico Godard tece comentários sobre o fazer cinematográfico, cada vez mais dominado pelo dinheiro; o desmonte da luta dos trabalhadores simbolizada na Polônia dos anos 80; a luta de classes que coloca operários ao bel prazer de seus patrões. É o cinema de Godard: imageticamente político. 

Paixão (Passion, França, 1982), de Jean-Luc Godard. Com Isabelle Huppert, Hanna Schygulla, Jerzy Radziwiłowicz, Michel Piccoli. 

O demônio das onze horas

O começo do filme retrata o tédio de Ferdinand, às voltas com o casamento, em uma festa burguesa na qual os convidados bebem e se comportam meio como fetiches publicitários. Na festa, ele encontra Samuel Fuller, cineasta americano filmando em Paris, que define o que seria o cinema: “Cinema é como uma guerra. O filme é uma guerra. Amor. Ódio. Ação, Violência. E morte. Em uma palavra: emoções.” A definição dita os rumos da narrativa a partir daí, exatamente como nas películas cujos personagens transitam entre ações e sentimentos belos e trágicos. 

Pierrot le fou trata da passagem do amor burguês (Ferdinand e seu casamento) para o amor  fou, um amor marginal, que vai revelando as entranhas e os limites da sociedade contemporânea. E sempre sob o desafio de uma compreensão antropológica, histórica e ontológica do homem.” – Enéas de Souza. 

Depois que sai da festa, Ferdinand conhece a bela Marianne. Os dois fogem em uma jornada de amor e crimes, incluindo tráfico de armas, roubo de carros e assassinatos. Bonnie e Clyde fotografados na bela Paris, nos litorais da costa azul, nas singelas cidades interioranas. A câmera de Godard abre o diafragma a todo momento para a beleza de seus personagens e os locais por onde transitam, caminhando irreversivelmente para a tragédia. 

“É infrutífero procurar no filme uma trama. Godard não se interessa pela representação, seguir o mimetismo que o cinema oficial emprega. Sua ambição maior é captar emoções, fazer sentir as vibrações das cores, a musicalidade das falas, o balanço das folhas das árvores, a intensidade de um gesto. Libertar o cinema do espírito da prosa para alcançar o da poesia.” – Cássio Starling Carlos. 

O demônio das onze horas (Pierrot le fou, França, 1965), de Jean-Luc Godard. Com Jean-Paul Belmondo (Ferdinand Griffon), Anna Karina (Marianne Renoir), Graziella Galvani (mulher de Ferdinand). 

Referências: 

Godard inteiro ou o mundo em pedaços. Catálogo da mostra sobre Godard. Eugenio Puppo e Mateus Araújo (organização). 

Jean-Luc Godard. O demônio das onze horas. Coleção Folha Grandes Diretores no Cinema. Cássio Starling Carlos, Mateus Araújo Silva e Pedro Maciel Guimarães. São Paulo: Folha de S. Paulo, 2018

Tudo vai bem

Jean-Luc Godard e Jean-Pierre Gorin, dupla de diretores que fazia parte, na época, do Grupo Dziga Vertov, despeja ao longo da narrativa reflexões que podem ser lidas também como críticas sobre questões políticas, artísticas, sociais e de costumes que marcaram a década de 60: a nouvelle-vague, maio de 68, a publicidade, os rumos do cinema de arte e industrial. 

O filme começa com narradores apontando caminhos para se fazer um filme: vozes anônimas narram que é necessário contar com astros internacionais, é preciso dinheiro e uma história que sempre começa com um casal, este casal precisa estar em um contexto. 

O casal é vivido por Jane Fonda e Yves montand, a jornalista e o diretor de cinema. O contexto é a greve de operários em uma fábrica de salsichas – eles sequestram o diretor e o casal que, inadvertidamente, estava ali para uma reportagem. Atores de renome internacional contracenam com não-atores em cenário teatral. No fim da greve, Godard/Gorin abrem espaço para reflexões da jornalista e do diretor de cinema que se rendeu à publicidade. Destaque para o plano sequência de Yves Montand divagando para a câmera sobre a nouvelle-vague, maio de 68, a carreira frustrada de diretor de cinema, a entrega à publicidade, profissão que odeia mas proporciona condições de vida.

Outra proposta interessante é a subversão da estética neo-realista. O filme pretende documentar questões políticas e sociais, como a greve dos trabalhadores, mas o faz de forma artificial, teatral, usando atores de renome e amadores em cenários claramente falsos. As reflexões, longos monólogos para a câmera do diretor da fábrica, da jornalista e do diretor de comerciais reforçam a sensação de rebeldia diante de fases importantes do cinema, como a própria nouvelle-vague, e frustração com as tentativas de retratar fatos políticos através das lentes de cinema.

“Sendo ao mesmo tempo um balanço dos quatro anos que se seguiram ao maio de 1968 e uma reflexão um tanto melancólica sobre os impasses e as contradições gerados pelos filmes que Godard e Gorin realizaram durante esse período (…), Tout va bien coloca em questão, uma vez mais, a (in)capacidade de o cinema dar a ver – de forma justa – determinadas situações históricas.” – Luís Alberto Rocha Melo 

Tudo bem (Tout va bien, França, 1972), de Jean-Luc Godard e Jean-Pierre Gorin. Com Jane Fonda (a jornalista), Yves Montand (o diretor publicitário), Vittorio Caprioli (o patrão)

Referência: Godard inteiro ou o mundo em pedaços. Eugênio Puppo e Mateus Araújo (organização)

Uma mulher casada

O filme abre com cenas recortadas do belo corpo de Charlotte no fundo cinza da parede do quarto, sobre os lençóis brancos da cama. Entram imagens do corpo de Robert que se juntam às de Charlotte. Imagens corriqueiras de amantes na tarde, sustentadas por frases fragmentadas, clichês inexpressivos como “eu te amo”. Charlotte é casada com o aviador Pierre e, nas ausências do marido, se entrega ao ator de teatro Robert. Quando o marido está em casa, se entrega da mesma forma ao relacionamento, quase como repetição das cenas. 

Em Uma mulher casada, Godard faz estudo da sexualidade feminina, marcada pela monotonia das relações de esposa, de amante. São imagem reforçadas nos estereótipos da publicidade, do objeto sexual que passa de mãos em mãos. Nas cenas externas, Charlotte caminha por Paris sob a superficialidade das ruas: entra em lojas de departamentos, troca de táxi sem destino aparente, corre pelas calçadas passando por imagens publicitárias. 

“Se a maneira como seu corpo foi filmado nas cenas íntimas já fazia dela um objeto – algo que se pode pegar com a mão -, o procedimento de apanhá-la constantemente em circulação reforça a associação entre mulher e mercadoria. (…) O procedimento, adotado sem sutilezas, sublinha a postura crítica do diretor e não camufla a inspiração marxista: nos escritos de Marx, lemos como mulher e mercadoria são parte do sistema de desejo e consumo que sustenta o capitalismo.” – Carla Maia

Uma mulher casada (Une femme mariée, França, 1964), de Jean-Luc Godard. Com Marcha Méril (Charlotte Giraud), Philippe Leroy (Pierre), Bernard Noel (Robert). 

Referência: Godard inteiro ou o mundo em pedaços. Eugênio Puppo e Mateus Araújo (organização)