
Gaviões e passarinhos (Uccellacci e uccellini, Itália, 1966), de Pier Paolo Pasolini.
Dois andarilhos percorrem a cidade e suas imediações, cenários marcados pela pobreza dos casebres, construções inacabadas, estradas desertas. Totó Innocenti (Totó) e seu filho Nino (Ninetto Innocenti) interagem com as pessoas, muitas vezes de forma irônica e sarcástica, se divertindo com situações criadas pela pobreza. Em determinado momento do caminho ouvem a voz de um corvo, que passa a segui-los. O corvo, cujas digressões demonstram sua ideologia marxista, pede que pai e filho ouçam uma fábula.
O polêmico diretor Pasolini contestava abertamente, em seus textos e filmes, o processo de ascensão capitalista da Itália a partir dos anos 60. A sociedade de consumo, impulsionada pelo discurso publicitário, era um dos principais motivadores da decadência ideológica esquerdista, principalmente entre a juventude que aderiu à prática do consumo de produtos desnecessários. “Pasolini passou a observar na Itália o nascimento de uma única língua, uma espécie de ‘italiano oficial’, consequência de um processo de padronização destruidora da população através dos meios de comunicação em massa e da consolidação da cultura do capital.” Vinicius Lins Magno.
A parábola Gaviões e passarinhos se enquadra na busca de Pasolini pelo “cinema de poesia”, avesso ao cinema de prosa. Totó e Nino empreendem uma jornada curta, de um dia, por esse mundo em degradação. São pobres como todos os outros, mas cobram o aluguel de uma família miserável, cuja mãe diz aos filhos o tempo todo que é noite para que eles durmam e não reclamem da fome.
A fábula dos dois santos narrada pelo corvo, os mesmos Totó e Nino, que, a pedido de São Francisco, evangelizem os gaviões e os passarinhos, é uma metáfora poderosa sobre a cruel luta de classes que acontece sob o olhar indiferente das instituições dominantes, como a igreja. Depois de evangelizados, declarando aceitar a palavra de Deus, um gavião não resiste a seus instintos e mata e devora um passarinho. No final do filme, o próprio corvo marxista também é morto e devorado pelos dois miseráveis pequenos burgueses.
É irônico que Totó, vestido ao estilo Charles Chaplin, intérprete em alguns momentos o andar de Carlitos, outra referência ao cinema de poesia, representado por aquele que, através de olhares, gestos e expressões trouxe sensibilidade à miséria social na qual vivia. Carlitos foi um dos maiores representantes da luta de classes no cinema, seu personagem estava em conflito permanente com a elite burguesa, adepta da industrialização e do consumo extravagante de itens de luxo. Os inimigos do vagabundo eram sempre a polícia, o poder, que mantinha o status quo do capitalismo selvagem.
“Gaviões e passarinhos trata-se de uma fábula sobre o fim da luta de classes e das grandes esperanças comunistas ao sabor das transformações na mentalidade e nos costumes de um subproletariado agora crítico e perverso, que tem como um dos protagonistas um corvo intelectual marxista, espécie de alterego do diretor, que termina devorado. Com ele, Pasolini se aproxima de um cinema mais aristocrático, pois acreditava que os filmes mais populares poderiam ser facilmente manipulados, mercantilizados e desfrutados pela civilização de massa.” – Vinicius Lins Magno.
Referência: 100 anos de Pier Paolo Pasolini. Fernando Brito (org.). São Paulo: Versátil, 2022.







