Milagre em Milão. Entre a realidade e a fantasia

Cesare Zavattini foi um dos grandes roteiristas e teóricos do neorrealismo italiano. Importante filmes do movimento contaram com a colaboração de Zavattini na autoria e escrita: Roma, cidade aberta (1946), Vítimas da tormenta (1946), Ladrões de bicicleta (1948), Belíssima (1951), Umberto D (1952), O teto (1956).

Sua colaboração mais prolífica foi com o diretor Vittorio De Sica, com quem dividiu ideias, créditos e polêmicas (que nunca prejudicaram a amizade entre estes dois mestres do cinema). Zavattini declarou em determinados momentos que ficou ressentido pelo fato de, nas entrevistas, Vittorio De Sica, levar o crédito total de obras-primas do cinema. “95% do roteiro de Ladrões de bicicleta fui em quem escreveu. Você ajudou, mas o trabalho foi meu. Quero que reconheça isso.” – disse Zarattini ao amigo.

Os créditos do filme apontam seis roteiristas no trabalho e o nome de Zavattini aparece por último. Ladrões de bicicleta foi baseado no romance de Barolini e adaptado por Cesare Zavattini. “O roteiro é meu. Os outros não fizeram praticamente nada. Meu nome aparece por último.” 

A determinação dos nomes dos roteiristas nos créditos sempre levantou polêmicas, basta citar a mais famosa: Orson Welles assinando Cidadão Kane (1941) junto com Joseph Mankiewicz (e conquistando o Oscar de Melhor Roteiro). Mankiewicz também acusou Wells de receber os créditos e o Oscar por um roteiro que não escreveu. 

O fato é que, mesmo depois da obra escrita, outros roteiristas são convidados pelos produtores e diretores para reescrever cenas, diálogos; mesmo que a participação seja pequena, acabam aparecendo nos créditos. Outra prática comum no cinema é o diretor reescrever partes do roteiro, antes e durante as filmagens, assim, muitos se sentem no direito de assinar como roteiristas.  

Chegamos a Milagre em Milão (Miracolo a Milano, Itália, 1951), de Vittorio De Sica. Segundo o crítico e historiador Dávid Forgács, Zavattini teve a ideia desse filme nos anos 30. “É uma história mais típica de Zavattini intelectualmente. A ideia de Zavattini era fazer um filme chamado Totó il buono. Ele até escreveu uma versão dessa história que foi publicada numa revista de cinema em 1940. O astro do filme seria Totó, um comediante napolitano e ator muito famoso na época. Mas o filme não foi feito, então Zavattini publicou o livro Totò il bueno em 1943. É basicamente a história de Milagre em Milão.”

O historiador relata que Vittorio De Sica pediu a Cesare Zavattini para escrever o roteiro de seu próprio livro logo após concluírem Ladrões de bicicleta como uma forma de compensar o roteirista pelos seus ressentimentos. A narrativa segue a jornada de Totó que, quando bebê, foi encontrado em uma plantação de repolhos (referência ao clássico curta de Alice Guy-Blaché de 1896: uma mulher recolhe bebês de uma plantação de repolhos). 

Quando sua mãe adotiva morre, Totó, com cerca de cinco anos, vai para um orfanato, onde fica até completar 18 anos. Pobre, sem profissão, Totó perambula pelas ruas e sua maleta é roubada por um mendigo. A perseguição, tentando recuperar a maleta, leva o protagonista a um terreno baldio nos arredores da cidade, habitado por desempregados e sem-tetos. 

Nessa primeira parte, o neorrealismo italiano mostra suas marcas: cenas filmadas em locações, atores não-profissionais, a realidade cruel dos desempregados italianos, abandonados pelo governo, condenados a viver em guetos e favelas. O jovem e ingênuo Totó, de uma bondade contagiante, se torna líder dos moradores e a favela cresce. No entanto, o terreno é adquirido por uma imobiliária que tenta despejar os moradores para construir um grande empreendimento no local. 

A segunda parte do filme, quando Totó lidera a revolução dos moradores, apresenta ao espectador o universo surrealista: Totó ganha, do espírito de sua mãe, uma pomba mágica que tem o poder de realizar os desejos das pessoas. Dois anjos tentam a todo custo recuperar a pomba, pois o ingênuo Totó concede vários desejos aos pobres moradores, que vêem seus sonhos conquistados num piscar de olhos – atenção para a estátua da bailarina que começa a dançar após um dos moradores, apaixonado pela imagem, pedir que ela ganhe vida. 

Milagre em Milão levantou questões dentro do movimento neorrealista, pois o filme foi considerado uma fantasia. “Quando o filme foi lançado, foi criticado tanto pela direita quanto pela esquerda. A esquerda disse que o filme não era incisivo o bastante. Queriam que De Sica e Zavattini escrevessem mais filmes como Ladrões de bicicleta. Na direita, críticos conservadores não gostaram de ver a burguesia sendo retratada como capitalistas e também ficaram ofendidos com como Milão é mostrada: um local de pobres e esfarrapados. Queriam mostrar que a Itália estava sendo reconstruída.” – Dávid Forgács

O poeta Carlos Drummond de Andrade viu o filme no cinema na década de 50 e escreveu: “Milagre em Milão é dessas raras obras de arte no gênero, concebidas de dez em dez anos, que têm o condão de fascinar gente de todas as classes, gostos e formações. (…) No primeiro momento, ele nos dá vontade de sair pela cidade afora, compelindo os ricos a amar os pobres, e dando aos pobres a alegria de se sentirem iguais aos ricos; operação tanto mais divertida quanto variam ao infinito as concepções de riqueza, e determinado pobre, por exemplo se regalará com possuir uma boa mala, outra um vestido de baile, e assim por diante; há tantos ricos quantas frustrações pessoais, apenas a pobreza e uma só, nivelada e niveladora.”

A alegórica cena final é um dos grandes momentos do cinema que se permite transitar entre a realidade nua e crua e a fantasia surrealista, plena de simbolismos e esperança. Os moradores da favela estão sendo levados para a prisão em vários carros. Totó recupera a pomba e, em frente a famosa Catedral de Milão, os tetos dos carros se abrem e os presos correm pela praça, onde faxineiros limpam a sujeira. Totó pega uma vassoura, senta-se nela junto com sua amada e voa, como a bruxa de O Mágico de Oz (1939). Todos os desabrigados fazem o mesmo; pegam as vassouras dos faxineiros e, em uma imensa fila, seguem Totó pelos céus de Milão, rumo ao horizonte, entoando a canção tema: “Tudo o que precisamos é de um barraco para viver e dormir. Tudo o que precisamos é de um pedaço de chão para viver e morrer. Tudo o que pedimos é um par de sapatos, umas meias e um pouco de pão. É tudo o que precisamos para crer no amanhã. Existe um reino onde bom dia quer dizer realmente bom dia. É tudo o que precisamos para crer no amanhã.” Neorrealismo puro e poético. 

Elenco:  Francesco Golisano (Totó), Emma Gramatica (mãe de Totó), Paolo Stoppa (Rappi) , Guglielmo Barnabò (Mobbi), Brunella Bobo (Edvige), Alba Arnova (a estátua). 

Referências: 

Extras do DVD Neorrealismo italiano. Seis clássicos do movimento. Versátil Home Vídeo:

O cinema de perto: prosa e poesia. Carlos Drummond de Andrade. Organização Pedro Augusto Grana Drummond. Rio de Janeiro: Record, 2024.

Ladrões de bicicleta

Ladrões de bicicleta (Ladri di biciclette, Itália, 1948), de Vittorio De Sica, é dos meus filmes favoritos. Impossível não se emocionar com diversas cenas, mesmo após inúmeras revisões. Principalmente com a sequência final. O filme termina e você percebe que não pode ficar impassível, pois o olhar de Bruno em direção ao pai faz cada espectador reafirmar ou rever princípios e valores.

O filme é o representante mais famoso do neo-realismo, movimento cinematográfico que começou na Itália durante a Segunda Guerra Mundial, influenciando decisivamente o cinema mundial, a ponto de ser considerado a base do cinema moderno.

“O cinema rodado pelas ruas, os atores apanhados na rua, a realidade fixada sem manipulações e sem preconceitos (‘A realidade está lá. Por que manipulá-la?’, era o estribilho rosselliano mais citado pelos jovens críticos franceses): estas são algumas das fórmulas dentro das quais se tentou sintetizar a experiência do cinema neo-realista italiano.” – Antonio Costa.

Um dos mais impressionantes méritos de Ladrões de bicicleta é a atuação dos protagonistas. Lamberto Maggiorani (Antonio) trabalhava como operário e Enzo Staiola (Bruno) foi escolhido pelo diretor durante as filmagens. O menino observava a gravação de cenas nas ruas de Roma. A fascinante atuação é atribuída, em grande parte, ao talento de De Sica em dirigir atores, observando e incentivando os profissionais a explorarem seus principais atributos. No caso de Maggiorani e Staiola, isto significou interpretarem eles mesmos.

“Antonio não é um operário desempregado qualquer, mas ‘o operário desempregado’, quase como um paradigma vivo. Não se trata de um símbolo ou metáfora, mas de um signo, o que também se poderia dizer dos outros personagens. Porém, como tais figuras não pretendem apenas ‘representar’, mas também ‘ser’, é lógico que tenham sentimentos e não somente razões.” – Juan D. Castillo.

Neste sentido, não é difícil entender porque Ladrões de bicicleta é repetidamente citado como o filme mais encantador e adorado do cinema. A melodramática busca de Antonio e Bruno pela bicicleta nas ruas de Roma equivale ao caminho que todo cidadão comum percorre em uma grande metrópole: trabalhadores e desempregados, donzelas e prostitutas, padres e ladrões, todos se confundem nas vielas, nos cruzamentos. A câmera de De Sica reflete o cânone deste movimento subversivo no cinema.

“O roteirista Cesare Zavattini foi um dos principais nomes do movimento e um de seus mais importantes teóricos. Ele convocou os cineastas para saírem às ruas, subirem em ônibus e bondes e ‘roubarem’ as histórias do cotidiano, relatando em seu diário de guerra Diario di cinema e di vita: ‘Montemos a câmera na rua, num quarto, observemos com paciência insaciável, treinemo-nos para contemplar nossos semelhantes em seus gestos mais simples.’” –  Philip Kemp.

Bruno recolhendo do chão o chapéu do pai e o limpando, na sequência final de Ladrões de Bicicleta, é destes gestos simples do cotidiano. Revela para o coração mais empedernido toda a complexa beleza, muitas vezes triste, é verdade, que permeia as atitudes de um pai sob o olhar do filho.

REFERÊNCIAS:

Os clássicos do cinema. Juan D. Castillo (editor). Edições Altaya, 1997

Compreender o cinema. Antônio Costa. São Paulo: Globo, 1989

Tudo sobre cinema. Philip Kemp. Rio de Janeiro: Sextante, 2011.

Umberto D

O filme começa com uma passeata de aposentados italianos, em direção à sede do Governo, reivindicando aumento das pensões. São dispersados pela polícia, correm e se abrigam em prédios ao redor, demonstrando o cansaço natural da idade. 

É hora de seguirmos a vida anônima de um destes aposentados que vivem à margem da sociedade: Umberto D (Carlo Battisti), junto com seu inseparável cãozinho Flike. Quando vai embora da manifestação, tenta vender a outro aposentado seu velho relógio. Depois almoça no balcão de um abrigo para necessitados. Escondendo-se, coloca seu prato no chão para que Flike possa também comer. Finalmente chega na casa onde aluga um pequeno quarto. Ao abrir a porta, descobre que um casal está na sua cama. 

Esse início, marcado por cenas do cotidiano, revela o drama de Umberto D. Sem dinheiro o suficiente para manter sequer suas necessidades básicas, sem uma casa que possa ser chamada de sua, sem família, pressionado pela dona da pensão que aluga seu quarto à tarde para adúlteros e o ameaça de expulsão caso não coloque em dia o aluguel. Resta a Umberto D. seu adorado cão.

“Umberto D. foi filmado nas ruas de Roma e os papéis principais são interpretados por atores não-profissionais, o que dá ao filme maior urgência e autenticidade. Uma das maiores críticas ao neo-realismo é que o tratamento melodramático dispensado à história menor dilui a mensagem social mais ampla e a reivindicação de realismo do próprio filme. Com sua história trágica, contada sem pudor, sobre o desespero de um senhor de idade e o seu amor pelo seu bicho de estimação, e com sua visão incisiva das injustiças sociais, Umberto D oferece a oportunidade perfeita para o espectador refletir sobre essa questão, que diz respeito a um dos movimentos mais influentes da história do cinema.” 

Essa potência narrativa está expressa em cenas inesquecíveis em um filme que recusa os princípios básicos da narrativa. “Umberto D. cumpre o desejo do diretor Vittorio De Sica e do roteirista Cesare Zavattini: levar o neorrealismo a um nível até então nunca visto, ponto que a situação perde espaço para o homem, em que o obstáculo dá lugar ao instante. O tempo não é mais moldado por acontecimentos interdependentes, mas por episódios de aparência aleatória, reais em excesso, que desembocam sempre no homem, nos seus conflitos e contradições.” – Rafael Amaral. 

Para alguns críticos e até mesmo cineastas do calibre de Luis Bunuel e Alfred Hitchcock esses tempos mortos devem ser evitados na narrativa cinematográfica. “Tempos mortos” para os neorrealistas é a vida e a vida é o próprio cinema. Em uma das cenas mais famosos do filme, a empregada Maria (adolescente grávida que namora dois soldados, portanto, não sabe quem é o pai da criança) acorda de manhã, vai para a cozinha, põe fogo no jornal para queimar formigas na parede, coloca café na máquina, senta-se no banco e começa a mover lentamente a manivela da maquininha. Uma lágrima escorre pelo seu rosto. Maria estende o pé e tenta fechar a porta. Cenas assim, ganham dimensões simbólicas nas palavras de André Bazin: “Trata-se ali de tornar espetacular ou dramático o próprio tempo da vida, a duração natural de um ser a quem nada de particular acontece.”

É a vida dessas pessoas marginais, que ninguém nota, que não importam a ninguém. É a vida de Umberto D. que pode ser muito bem a vida de meu pai e inúmeros outros cidadãos que foram enganados pela política previdenciária no Brasil e passaram, depois de décadas de trabalho, de contribuição ao estado, a depender da ajuda dos filhos. Poderia ser a vida do pai de Vittorio De Sica, a quem ele dedica o filme. Diferente de outros, Umberto D não tem ninguém a quem recorrer, caminha sozinho e anônimo pela vida que só ganha sentido em sua relação de amor com Flike. Flike que, ao contrário de uma sociedade inteira, vê, ama e se entrega à Umberto Domenico Ferrari. 

Umberto D (Itália, 1952), de Vittorio De Sica. Com Carlo Battisti, Maria-Pia Casilio, Lina Gennari.

Referências: 

1001 filmes para ver antes de morrer. Steven Jay Schneider (editor geral). Rio de Janeiro: Sextante, 2008

Catálogo do bluray Ladrões de Bicicleta/Umberto D. Versátil Digital Filmes.