Pai e filha

Há uma sequência em Pai e filha (Banshun, Japão, 1949), de Yasujiro Ozu, que simboliza muito do prestigiado cineasta japonês e do cinema clássico como um todo. Noriko (Setsuko Hara) está assistindo a uma peça de teatro Nô, ao lado do seu pai viúvo, Shukichi (Chishu Ryu). Ele olha para a plateia do outro lado e, sorrindo, acena a cabeça. Noriko também olha e repete o gesto do pai. Vemos a Sra. Miwa (Kuniko MIyake), uma mulher também viúva que retribui os cumprimentos. A câmera agora está centrada em Noriko e Shukichi. Ela volta a olhar para a senhora, depois para seu pai. Agora seu olhar é melancólico, pois ela entendeu que seu pai tem uma pretendente. Ela abaixa a cabeça e os olhos. Essa pura e bela narrativa visual, com a câmera bem ao estilo de Ozu, levemente baixa, dura cerca de sete minutos, sem diálogos, ouvimos somente o cântico dos atores no palco. 

Pai e filha trata de um tema recorrente nos filmes de Ozu: a dissolução da família no Japão que adentra a modernidade. Noriko está decidida a cuidar do pai durante toda a vida, recusa inclusive as propostas de casamento arranjadas por sua tia. O pai não aceita essa decisão e insiste para que ela se case. A cena do teatro, quando Noriko sente as trocas de olhares do pai e da Sra. Miwa, é um sinal que o pai pretende se casar novamente e não precisa mais dos cuidados da filha. 

“A consternação de Noriko na cena citada, resume seu dilema. Não quer casar porque não quer se distanciar do pai, porque é feliz com ele. Talvez passe por aí uma série de outras questões, desde o desinteresse por casamentos arranjados até o comodismo em como vive, especialmente depois da instabilidade que foi a guerra; pouco importa. Noriko vê no casamento o fim de seu relacionamento com o pai, a dissolução completa de sua família. Ozu filmou diferentes formas de dissolução, do casamento à sua instabilidade, da mudança de residência à morte de algum parente. Em Pai e Filha, o casamento de Noriko equivale à morte. Não é à toa que Ozu se interessa tanto por esse tema, porque talvez seu cinema possa, afinal, ser resumido a isso, ao ato de filmar as ausências, não somente pelas escolhas formais, mas também como maneira de representar o que há de mais inevitável na vida. Se a morte é a ausência, o casamento de Noriko também o é. Não a vemos se casar, não a vemos depois disso. Vemos apenas seu quarto sem sua presença, vemos o que ficou para trás. Vemos Shukichi só. Ausência, vale dizer, não é o mesmo que vazio, como pode parecer. Ausência é não presença, são equivalentes. Por isso, Noriko reluta tanto, ela antevê o fim e não quer se desapegar. Sentimos sua ausência assim como sua presença.” – Gabriel Carneiro.

Referência: Mestres japoneses. Dez filmes essenciais do cinema clássico nipônico. Fernando Brito (org.). Versátil Home Vídeo: São Paulo, 2022.

Ervas flutuantes

Ervas flutuantes (Ukigusa, Japão, 1959), de Yasujiro Ozu. O segundo filme colorido de Ozu, com direção de fotografia de Kazuo Miyagawa, é um primor estético, uma profusão de cores que traduz a temática da narrativa: um grupo teatral, denominado Ervas flutuantes, chega a uma pequena ilha para apresentações. Os figurinos, a maquiagem, a cenografia teatral, ilustram esse mundo colorido de artistas mambembes que fazem de sua arte celebrações à vida. 

O conflito acontece quando Komajuro Arashi (Ganjiro Nakamura), mestre do grupo, passa a visitar com frequência sua ex-amante, com quem tem um filho. A crise familiar, tema recorrente da obra de Ozu, provoca conflitos também no grupo teatral que, convivendo com teatros vazios e a monotonia dos dias, caminha para o esfacelamento. 

“Embora os filmes de Ozu geralmente contenham um número surpreendentemente grande de planos e façam, muitas vezes, experiências com a construção do espaço cinematográfico, a impressão predominante que temos de Ervas flutuantes é que ele se trata de uma série de naturezas mortas interligadas e que seu ritmo está em harmonia com a repetição tranquilizante da vida cotidiana. O plano de abertura do filme – contrastando e comparando o volume, o formato e a cor de uma garrafas com os de um farol – sugere uma ausência de movimento, o ruído de um motor de barco ao fundo reforçando a ‘completude’ e a ‘plenitude’ da imagem à mostra. Nesses momentos, o filme alcança uma espécie de quietude, uma serenidade estrutural resignada, que acompanha até mesmo as obras mais trágicas de Ozu, como Era uma vez em Tóquio.”

Referência: 1001 filmes para ver antes de morrer. Steven Jay Schneider. Rio de Janeiro: Sextante, 2008.

Fim de verão

O título original do filme pode ser traduzido como “O outono da família Kohayagawa”, representando com mais clareza a temática do filme: a família comandada pelo patriarca Kohayagawa se defronta com os conflitos inerentes à velhice, ao fim da vida. A família administra uma pequena fábrica de saquê. Duas das filhas, uma viúva e outra solteira, estão diante da pressão inerente da sociedade para se casarem, mas preferem fazer suas próprias escolhas, casar não é uma opção para a viúva. O pai, adoentado, foge quase diariamente para se encontrar com sua amante, a contra gosto dos filhos. 

Em seu penúltimo filme, Ozu se debruça mais uma vez sobre questões familiares, centrando seu olhar nas mulheres da família, debatendo o papel delas na nova sociedade japonesa. Devem ser independentes para decidir sozinhas o caminho a seguir. 

A política dos autores, ou teoria do autor, se aplica de forma contundente no cinema de Ozu: os planos estáticos com a câmera ligeiramente baixa, a falta de movimentação da câmera, as elipses demarcadas por “fotografias” do cotidiano, a quase ausência de interpretação dos atores, renegando o sentimentalismo ou o melodrama e, principalmente, a repetição temática. Assistir a um filme de Ozu é como assistir a variações do mesmo tema, no entanto, em cada filme o encanto e o fascínio surgem da direção de fotografia e do enquadramentos que levam o espectador a indefiníveis sensações de beleza poética diante da imagem. 

Fim de verão (Kohayagawa-ke no aki, Japão, 1961), de Yasujiro Ozu. Com Ganjirô Nakamura (kohayagawa Manbei), Setsuko Hara (Akiko), Yôko Tsukasa (Noriko), Michiyo Aratama (Fumiko), Keijo Kobayashi (Hisao).

Começo de primavera

O jovem Shoji trabalha no escritório de uma grande empresa. Durante o horário de almoço, combina com os colegas uma caminhada pelo litoral em um domingo de verão. Durante a caminhada, ele e sua colega de trabalho Keiko, se afastam dos demais e começam uma relação mais íntima, convergindo para o romance, concretizado em uma ousada, para a época, sequência em uma pousada, quando os jovens estão conversando vestidos com roupões de banho. 

Mais uma vez, as lentes de Ozu se voltam para a desestruturação familiar no Japão do pós-guerra. Shoji é casado, sua esposa se afasta à medida que percebe a traição. A vida cotidiana desses jovens assalariados, marcada pela monotonia tanto no trabalho como nas relações entre os casais, é retratada com a costumeira linguagem fria, sem melodrama, quase documental do mestre japonês. 

Keiko é julgada e condenada por palavras pelo grupo de amigos, revelando a misoginia milenar da sociedade japonesa. Shoji, ao contrário, deve se acertar com sua mulher e deixar tudo para trás. É um triângulo amoroso complacente e resignado que deve aceitar o destino, melancólico, assim como o próprio Japão pós-guerra.  

Começo de primavera (Soshun, Japão, 1956), de Yasujiro Ozu. Com Chikage Awashima (Masako Sugiyama), Ryô Ikebe (Shôji Sugiyama), Keiko Kishi (Chiyo Kaneko). 

Flor do equinócio

Wataru Hirayama é um bem sucedido homem de negócios. Na abertura do filme, em uma cerimônia de casamento, faz um discurso libertário ao elogiar a decisão da noiva em se casar com o jovem que ama, renegando a tradição japonesa do casamento arranjado. Da mesma forma, incentiva sua sobrinha a fazer suas próprias escolhas, não aceitando as imposições da mãe que tenta a todo custo “arrumar” um marido para ela.

No entanto, Hirayama se confronta consigo mesmo quando descobre que sua filha Setsuko está prestes a se casar com um jovem que ela própria escolheu. Hirayama não permite o casamento, revelando sua personalidade contraditória, algo como duas faces.

É o filme mais feminista de Ozu. O patriarca é confrontado pelas três mulheres de sua casa: Setsuko exige que o pai a deixe fazer suas próprias escolhas, é apoiada pela irmã caçula e pela mãe, que com pacata resiliência tenta vencer a recusa do marido. Em uma narrativa paralela, a filha de um amigo de Hirayama foge de casa para morar com seu namorado, pianista de uma boate. 

Flor do equinócio é mais uma bela leitura do tema sagrado do mestre Ozu: as relações familiares, determinadas pelas tradições milenares do país, em conflito com a nova sociedade do pós-guerra. Deixar o passado e saudar o novo está simbolizado na sensível cena de um grupo de patriarcas bebendo à mesa enquanto ouve com melancolia uma antiga canção entoada por um deles. 

Flor do equinócio (Higanbana, Japão, 1958), de Yasujiro Ozu. Com Shin Saburi (Wataru Hirayama), Kinuyo Tanaka (Kyoko Hirayama), Ineko Arima (Setsuko Hirayama), Yoshiko Kuga (Fumiko Mikami).

Era uma vez em Tóquio

Casal de idosos viaja a Tóquio para visitar os filhos. No entanto, a vida agitada da metrópole é pretexto para que os filhos não dediquem atenção aos pais. Somente Noriko, a nora, se dispõe a acompanhar os sogros. Esta história simples revela uma obra-prima do cinema.

O cinema peculiar de Ozu trabalha com o minimalismo da linguagem. Os planos são estáticos. A câmera está sempre baixa e distante dos personagens, evitando destacar as emoções.  Imagens dos personagens se alternam com detalhes da paisagem e do ambiente urbano, num jogo narrativo calmo, induzindo à contemplação da vida que transcorre.

“Ozu utiliza pillow shots como as pillow words da poesia japonesa, separando suas cenas com imagens breves, evocativas da vida cotidiana. Ele aprecia trens, nuvens, fumaça, roupas penduradas na corda, ruas desertas,  pequenos detalhes da arquitetura, estandartes inflados pelo vento (ele próprio pintou a maioria dos estandartes de seus filmes).” – Roger Ebert

A simplicidade do cinema de Ozu ataca as relações familiares, marcadas pela ausência, pelas desculpas, pela displicência no trato com os idosos. Os filhos do casal Hirayama passam o tempo buscando pretextos a ponto de enviar os pais para um spa no litoral. Resignados, os velhos voltam para a cidade natal.

“Será que alguém vai ver um filme para observar o estilo? Vai, sim. Um estilo refinado e elegante como o de Ozu coloca as pessoas no primeiro plano; focaliza as minúcias da vida diária. Seu estilo é o mais humanista de todos, ao remover toda a maquinaria de efeitos e montagens, preferindo nos tocar pelos sentimentos humanos e não pela mecânica da técnica narrativa.” – Roger Ebert

Na parte final do filme, quando a família se reúne para o velório da mãe, acontece uma das grandes cenas do cinema. Kyoto, a filha caçula, está sentada no chão da casa. Ela não transparece a tristeza e pergunta impassível a Noriko: “A vida não é uma decepção?”. Noriko olha para a câmera, sua resposta é simples e direta: “Sim, ela é.”

Era uma vez em Tóquio (Tokyo monogatari, Japão, 1953), de Yasujiro Ozu. Com Chishu Ryu (Shukishi Hirayama), Setsuko Hara (Noriko Hirayama), Chieko Higashiyama (Tomi Hirayama), Kyoto Kagawa (Kyoko).

Referência: Grandes filmes. Roger Ebert. Rio de Janeiro: Ediouro, 2006