A incrível Suzana

A incrível Suzana (The major and the minor, EUA, 1942), de Billy Wilder.

No primeiro ato da narrativa, Susan Applegate (Ginger Rogers) está na estação de trem já disfarçada de uma criança de doze anos. Ela está sem dinheiro para pagar o bilhete cobrado para adultos no trem – com o disfarce ela pode pagar meia entrada e voltar para casa, abandonando a vida sem perspectivas que leva em Nova York. Susan espreita uma mãe e dois filhos em frente a uma banca de revistas. O menino pega uma revista de cinema e lê o título na capa: “Porque odeio as mulheres, de Charles Boyer.”

Segundo o crítico e historiador de cinema Neil Sinyard a inserção dessa frase aparentemente sem sentido na história nasce de um conflito entre Billy Wilder e o ator Charles Boyer. Billy Wilder, junto com Charles Brackett, estava escrevendo o roteiro de A porta de ouro (1941), dirigido por Mitchell Leisen e protagonizado por Charles Boyer. No filme, Boyer interpreta um gigolô romeno que fica preso no México. Em uma entrevista com o oficial de imigração, seu visto de entrada nos EUA é negado. Ele volta para seu quarto no hotel e precisa interpretar uma das cenas favoritas escritas por Billy Wilder para o filme: há uma barata no quarto e Boyer começa a conversar com ela, repetindo com ironia as perguntas feitas pelo oficial de imigração. 

O filme estava sendo rodado, mas os roteiristas ainda não haviam terminado o roteiro. Wilder se encontrou com Charles Boyer no set e perguntou, “Você já gravou a cena da barata?”, Boyer disse: “Nós tiramos essa cena. Um ator não fala com baratas”. 

“Wilder ficou furioso. Ele voltou ao escritório, contou a Brackett o que havia acontecido e perguntou: ‘Quanto tempo falta para terminar esse roteiro?’ ‘Uns vinte minutos’, respondeu Brackett. E Wilder disse: ‘Certo. Se ele não vai falar com baratas, não vamos deixá-lo falar com mais ninguém.’ E se você já viu o filme, por 90 minutos ele não para de falar e, de repente, ele para de falar nos últimos vinte minutos. Há um momento em que tenta falar algo e outro personagem o manda sentar e calar a boca. Acho que Wilder ainda não havia perdoado Boyer em A incrível Suzana.” – Neil Sinyard

Após a cena da revista, Susan embarca no trem disfarçada de criança e é descoberta pelos responsáveis por conferir os bilhetes. Ela corre pelos vagões e se refugia em uma cabine, onde é surpreendida pelo Major Philip Kirby (Ray Milland), homem já perto dos 40 anos de idade. 

A comédia de Billy Wilder, sua estreia como diretor em Hollywood, progride em uma série de pequenos conflitos que colocam em risco o disfarce de Susan e a aproxima cada vez mais do major. Susan é levada pelo major para a academia militar, onde provoca um rebuliço entre os cadetes mirins. 

A incrível Suzana é um dos filmes mais ousados de Billy Wilder, chega a ser difícil acreditar que foi realizado em plena vigência do Código Hays em Hollywood. O major Phillip Kirby claramente fica interessado em Susan, para ele, uma criança de doze anos. Outro ponto polêmico é que Susan também se relaciona furtivamente com os meninos da academia, provocando o desejo deles. Em uma cena, um dos garotos tenta beijá-la, em outras, dançam com ela no baile de forma sugestivamente erótica. É o contrário, uma mulher de cerca de 30 anos, provocando, mesmo que sem intenção, garotos. 

Tudo fica por conta da sugestão, das intenções não concretizadas. É importante destacar outra ousadia de Billy Wilder: é um dos importantes filmes cujo protagonismo é inteiramente de uma mulher, Ginger Rogers, numa época em que os atores interpretavam todos os papéis fortes nos filmes. Ray Milland é quase um coadjuvante, fazendo um militar abobado e dominado pela sua noiva Pamela Hill (Rita Johnson). O arco da narrativa é direcionado por Susan que provoca e tem que resolver os conflitos. É uma personagem forte e decidida que se diverte com as situações criadas exatamente porque sabe que está no controle de um mundo comandado pelos homens – a academia militar. 

O final na estação de trem, à noite (como os cineastas de Hollywood souberam fazer belos finais em estações de trem) é o momento da revelação, que acontece de forma sutil. As máscaras finalmente caem depois de um diálogo e olhares sugestivos.  

Referência: Extras do DVD A arte de Billy Wilder, Versátil Home Vídeo.

Não matarás

Não matarás (Broken Lullaby, EUA, 1932), é um filme atípico de Ernst Lubitsch, famoso por suas comédias. O melodrama, com forte teor humanista, acompanha a jornada de Paul Renard, músico que lutou na primeira guerra mundial. Em uma trincheira, Paul mata um soldado alemão, Walger Holderlin, e lê a carta da vítima que seria enviada para sua noiva, Elsa. 

Atormentado pelo assassinato, Paul parte para a Alemanha disposto a pedir perdão aos pais de Walger. É 1919 e os resquícios da guerra ainda pairam assustadoramente no ar, o ódio mútuo entre alemães e franceses impede relacionamentos. Isto fica claro logo no primeiro encontro entre Paul e o Dr. Holderlin, pai de Walger. 

O filme, feito em 1932, é um forte manifesto de Lubitsch contra a ascensão do fascismo na Europa e os indícios de um novo conflito. Atenção para o desabafo humanista do Dr. Holderlin, em atuação magistral de Lionel Barrymore, em um bar repleto de “homens velhos” que destilam ódio, motivado pelas perdas de filhos na guerra: “Éramos velhos demais para lutar, mas não velhos demais para odiar e mandar nossos filhos para a guerra” 

Elenco: Lionel Barrymore (Dr. H. Holderlin), Nancy Carroll (Elsa), Phillips Holmes (Paul Renard), Louise Carter (Madame Holderlin), Tom Douglas (Walger Holderlin).

O diabo disse não

O diabo disse não (Heaven can wait, EUA, 1943), de Ernst Lubitsch.

O rico e aristocrático Henry Van Cleve (Don Ameche) morre aos 70 anos. Em seu caminho para a eternidade ele é recebido por Sua Excelência O Diabo, Henry tem certeza que deve pagar por seus pecados de forma cruel.

O diabo disse não é uma deliciosa comédia de Ernst Lubitsch, o mestre do gênero no cinema clássico hollywoodiano. Lubitsch conseguia tratar com leveza e bom humor as situações mais dramáticas, como nesta história marcada por abandono dos pais, adultério, frustrações nos relacionamentos amorosos e morte. 

O próprio Henry conta sua história ao diabo, tentando mostrar que não merece ir para o reino dos céus. Foi um jovem relapso na escola, só se interessando pelas meninas, passou a juventude em noitadas, aproveitando o dinheiro dos país sem se preocupar com trabalho. A vida de Henry muda quando conhece Martha (Gene Tierney), noiva de seu primo. Os dois se apaixonam e, nessa mesma noite, durante a festa de noivado, fogem, provocando um escândalo na família. 

Durante cerca de 30 anos, o relacionamento do casal é marcado pelas idas e vindas, frustrações e incertezas diante do relacionamento que se esperava para a vida inteira. A abordagem revela muito da ideologia de Hollywood, cujos filmes, amparados pelo Código Hays, aceitavam e perdoavam atitudes machistas e dominadoras dos homens, enquanto às mulheres cabia perdoar e voltar para os braços dos maridos. Atenção para a cena no início do filme quando o diabo abre o alçapão, jogando uma senhora no inferno porque ela não tem mais pernas bonitas.

O pecado de Cluny Brown

O pecado de Cluny Brown (Cluny Brown, EUA, 1946) é o último filme dirigido por Ernst Lubitsch. O diretor marcou o cinema clássico americano com suas comédias e se consagrou por uma marca conhecida por “toque Lubitsch” que influenciou outros grandes nomes do cinema, principalmente Billy Wilder.

Cluny Brown (Jennifer Jones) é uma jovem de classe baixa, irreverente, ingênua e atrevida que, após protagonizar uma hilária intervenção em uma aristocrática festa londrina, é enviada por seu tio para trabalhar em uma suntuosa casa de campo no interior da Inglaterra. Como empregada, ela reencontra o refugiado escritor theco Adam Belinski (Charles Boyer) – a narrativa se passa às vésperas da Segunda Guerra Mundial. Os dois passam por um relacionamento marcado pela irreverência de ambos e por situações de confronto com a conservadora e preconceituosa sociedade inglesa. 

Um dos grandes momentos do filme é quando Cluny Brown é apresentado ao casal Carmel, donos da residência. Confundida com uma ilustre visitante, Cluny é tratada com regalias durante o chá até que se anuncia como a nova empregada. A reação do casal, evidenciada pela sutileza visual do “toque Lubitsch”, demarca o grande tema dessa comédia recheada de críticas sociais. 

Caminhando com o amor e a morte

Caminhando com o amor e a morte (A walk with love and death, EUA, 1969), de John Huston. 

Anjelica Huston debutou no cinema sob a direção de seu pai. A narrativa de Caminhando com o amor…  se passa na França, século XIV, durante a revolta dos camponeses. O caminho de Claudia (Anjelica Huston), uma adolescente cuja família é da nobreza francesa, se cruza com o do andarilho Heron (Assaf Dayan), um estudante do interior que sonha em conhecer o mar. A revolta entre camponeses e nobres explode, a família de Claudia é assassinada e os dois jovens, apaixonados,  empreendem uma fuga por regiões marcadas pela violência. 

O lirismo dos apaixonados dá o tom da narrativa: eles cruzam bosques, se abrigam em um mosteiro, em um castelo prestes a ser invadido e, em todos os lugares, se entregam ao amor carnal. O melodramático final se anuncia em cada encruzilhada, em cada decisão de Claudia e Heron. 

Elenco: Com Anjelica Huston (Claudia), Heron of Fois (Assaf Dayan) Anthony Higgins (Robert of Loris), John Hallam (Sir Merles), John Huston (Robert the Elder).

O diabo riu por último

O diabo riu por último (Beat the devil, EUA, 1953), de John Huston. Com Humphrey Bogart (Billy Dannreuther), Jennifer Jones (Gwendolen Chelm), Gina Lollobrigida (Maria Dannreuther), Robert Monley (Peterson), Peter Lorre (Julius O’Hara), Edward Underdown (Harry Chelm), Ivor Barnard (Major Jack Ross). 

A incursão do eclético John Huston pela comédia resultou em um filme irônico e ousado.  O cenário é uma cidade paradisíaca da Itália à beira-mar. Um grupo de turistas espera o navio zarpar, cujo capitão está doente, entre eles os casais formados por Billy e Maria Dannreuther e Harry e Gwendolen Chelm. Quatro trapaceiros têm negócios obscuros a tratar com Billy e também se encontram na cidade. Tudo se complica quando um assassinato, praticado em outra cidade, envolve os protagonistas da narrativa. 

Esqueça o tom simplista da narrativa policial. O mérito do filme é o tom ousado da comédia, incluindo uma divertida e consentida troca de casais. A sequência do acidente de carro na estrada à beira-mar é deliciosa, assim como os imprevistos que esse acidente provoca. Bogar e Gina Lollobrigida dominam o elenco, ele, com a ironia e o sarcasmo estampados em cada cena; ela com uma pretensa ingenuidade que eleva o tom de erotismo da narrativa. O major fascista Jack Ross está hilário em suas explosões de violência. 

Elenco: Humphrey Bogart (Billy Dannreuther), Jennifer Jones (Gwendolen Chelm), Gina Lollobrigida (Maria Dannreuther), Robert Monley (Peterson), Peter Lorre (Julius O’Hara), Edward Underdown (Harry Chelm), Ivor Barnard (Major Jack Ross).

A noite de 23 de maio

A noite de 23 de maio (Mystery street, EUA, 1950), de John Sturges.  

O detetive Peter Morales (Ricardo Montalbán) está encarregado de investigar o assassinato de uma jovem, Vivian Heldon (Jan Sterling). A princípio, a vida da vítima, assim como a forma que morreu são desconhecidas. O detetive, então,  recorre ao Departamento de Medicina da Universidade de Boston. O Dr. McAdoo passa a ajudá-lo examinando o cadáver e promovendo reconstituições a partir de suas descobertas. 

O filme é praticamente o precursor dos famosos seriados de TV, como CSI e Law & Order, que utilizam a ciência forense nas tramas policiais. A investigação do detetive e do médico orientam o caso na direção de um suspeito incomum: um pacato pai de família, casado, com dois filhos, que estava sendo chantageado pela vítima. As viradas de roteiro elevam o tom do thriller, principalmente após a entrada em cena da Senhora Smerrrling (Elsa Lancaster), dona da pensão onde Vivan morou.

Justiça injusta

Justiça injusta (The sound of fury/Try and get me, EUA, 1950), de Cy Endfield.

Howard Tyler (Frank Lovejoy), um homem de meia idade, está desempregado e sofre com esta condição, principalmente ao chegar em casa e ser “cobrado” pela mulher, pois precisam de dinheiro para o sustento do filho. Uma noite, ele conhece Gil Stanton (Richard Carson), misterioso personagem que o ajuda e, logo depois, faz uma proposta: os dois podem se ajudar, fazendo pequenos assaltos em lojas e casas. 

A virada da trama provoca uma transformação surpreendente do protagonista. Os dois comparsas sequestram um jovem rico com a intenção de pedir resgate ao pai, mas Gil Stanton assassina de forma brutal o herdeiro. Começa então uma caçada policial que termina com a prisão dos dois. 

O filme é baseado em um evento real, retratado também em Fúria (1936), de Fritz Lang. O clímax da narrativa, julgamento e condenação à morte dos assassinos, é assustador sob dois aspectos: o terror da morte estampado em Gil Stanton e o arrependimento de Howard, pacato cidadão de família que se vê enredado em um círculo criminoso, que aceita a condenação como forma de punição e sacrifício necessários para a redenção. 

A taverna do caminho

A taverna do caminho (Road house, EUA, 1948), de Jean Negulesco. Com Ida Lupino (Lily Stevens), Richard Widmark (Jefferson T.), Cornel Wilde (Pete Morgan), Celeste Holm (Susie Smith). 

Jefferson T. é o proprietário de uma casa de shows em uma pequena cidade americana. Ele contrata Susie, cantora por quem está apaixonado e com quem pretende se casar. Pete Morgan, o gerente do local e amigo de infância de Jefferson, tenta tirar a cantora da cidade, mas os dois se apaixonam e a trama caminha para um trágico triângulo amoroso. 

Ida Lupino é o grande destaque do filme, suas interpretações musicais são encantadoras, revelando um novo talento para a star system e uma das únicas mulheres diretoras do machista sistema de estúdios. O final do filme, quando os quatro personagens principais são levados pelo ciumento Jefferson para uma casa no bosque, é um thriller de tirar o fôlego, com atuação surpreendente de Robert Widmark. 

Tensão

Tensão (Tension, EUA, 1949), de John Berry.

Warren Quimby é um pacato funcionário de farmácia. Admirado pelos seus colegas de trabalho, trata com gentileza todos os clientes e, após o final do expediente, ruma tranquilamente para sua casa, onde espera encontrar Claire (Audrey Totter), sua esposa. Desde o início o espectador sabe que é um casamento praticamente de fachada por parte de Claire que trata o marido com indiferença e agressividade, enquanto se diverte à noite com outros homens. 

O casamento termina quando Claire resolve assumir seu amante. Acontece então uma radical mudança de personagem: Warren se disfarça fisicamente e planeja assassinar seu oponente. 

A femme fatale vivida por Audrey Totter é o grande destaque da trama. Após o assassinato, ele tenta virar o jogo e voltar para o marido, mas agora é ela quem enfrenta uma oponente: Mary (Cyd Charisse), jovem que se apaixona por Warren e é correspondida. No entanto, a polícia agora está no encalço do farmacêutico, sob acusação de um assassinato que ele planejou mas não cometeu. Ótimo noir de John Berry, responsável por um clássico do gênero: Por amor também se mata (1951).