Carta da Sibéria

Carta da Sibéria (Letter from Siberia, França, 1958), de Chris Marker. 

Em 1907, Liev Trotski é preso como dissidente político e condenado ao exílio na Sibéria. Durante a viagem, o futuro revolucionário russo escreve um diário de viagem. Antes de chegar ao destino final, ele arquiteta e executa uma fuga cinematográfica pelas paisagens desertas e gélidas da região. Seu diário, publicado como Fuga da Sibéria narra a aventureira jornada e descreve, de forma reflexiva, a vida cotidiana dos habitantes destes confins do mundo. Incluindo, as renas: 

“As renas são criaturas incríveis: não sentem fome nem cansaço. Não comeram nada por um dia até a nossa partida, e logo fará mais um dia que seguem sem se alimentar. Segundo a explicação de Nikifor, elas acabaram de ‘pegar o ritmo’. Correm regularmente umas oito ou dez verstas por hora, sem se cansar. A cada dez ou quinze verstas, faz-se uma parada de dois, três minutos para que as renas se recuperem; depois, elas continuam. Essa etapa chama-se ‘corrida de renas’, e, como aqui ninguém conta as verstas, a distância é medida em termos de corridas. Cinco corridas equivalem a umas sessenta, setenta verstas.”

Cerca de cinquenta anos depois, o jovem documentarista Chris Marker empreende uma viagem pela Sibéria. Sua câmera registra paisagens campestres e urbanas, habitantes, construções. Narração em off acompanha as imagens:  

“Escrevo esta carta de uma terra distante, chamada Sibéria. Para a maioria esse nome só evoca uma ilha congelada e desolada. Para o general czarista Andreyevich, era o maior terreno baldio do mundo. Felizmente, há mais coisas entre o céu e a terra do que qualquer general, siberiano ou não, jamais sonhou. Enquanto escrevo, deslizo o olhar pela margem de um bosque de bétulas, e recordo que em russo, o nome delas é uma palavra de amor: beriozka.”

Letter from Sibéria rompe as fronteiras do documentário, se transformando em uma potente reflexão sobre esse gênero que, impossivelmente, prevê a imparcialidade. Chris Marker trabalha com uma montagem irreverente, entremeando cenas reais com imagens em animação, grafismos, sustentadas pela narração crítica, irônica, subversiva. “Ao deixar a última casa para trás, você volta à floresta da Idade da Pedra: a taiga. Escrevo esta carta da borda do mundo. Segundo um provérbio siberiano, a floresta foi criada pelo demônio. E ele fez um bom trabalho. A floresta é do tamanho dos Estados Unidos. Mas talvez o diabo também tenha feito os Estados Unidos.”

Assim como Trotski, o documentarista registra suas impressões sobre a rena, esse animal quase sagrado para os siberianos, durante séculos, a única forma de locomoção pelos confins gelados e, quando não mais aptos para esse exercício desumano, fornece peles para os habitantes suportarem cerca de quarenta graus abaixo de zero. “Mostraria os dervixes rodopiantes do degelo primaveril e os exércitos derrotados pelo inverno recuando sob insultos, enquanto pagãos inventam a ressurreição. Mostraria renas descendo de encontro à maré crescente de calor. E mais ao norte, os últimos dias de inverno, quando as renas se mostram atléticas, esqueci de mencionar antes.” As imagens mostram as renas em galope desenfreado pela neve, com homens no dorso, outros sentados no trenó, tentando controlar a fúria dos animais que rompem a neve. 

O momento mais rebelde e subversivo do filme é documentado em Yakutsk, cidade planejada e que se desenvolvia à época com construções em cada canto. As imagens a seguir são repetidas por três vezes. Um ônibus passa por uma rua. Em direção contrária, passa um velho carro azul. Operários arrastam uma grande peça de madeira, acertando a superfície de uma rua para pavimentação. Um morador passa olhando para a câmera. O texto da narração muda a cada repetição das imagens: 

“Não se pode descrever a União Soviética como nada além de um paraíso operário ou como o inferno na terra. Por exemplo, Yakutsk, a capital, é uma cidade moderna, em que ônibus confortáveis feitos para a população dividem a rua com poderosos Zims, o orgulho da indústria automobilística. No espírito alegre da emulação socialista, felizes trabalhadores soviéticos, como este pitoresco habitante do ártico, se dedicam a tornar a cidade um lugar melhor para viver.” 

“Ou então, Yakutsk é uma cidade sombria com uma reputação ruim. A população se amontoa em ônibus cor de sangue, enquanto os privilegiados exibem sua luxúria em seus Zims, carros caros e, no mínimo, desconfortáveis. Curvados como escravizados, os miseráveis trabalhadores soviéticos, como esse asiático sinistro, se dedicam ao trabalho primitivo de arar com uma viga de arrasto.” 

“Ou só em Yakutsk, onde casas modernas aos poucos substituem velhos bairros sombrios, um ônibus menos lotado do que em Londres ou Nova York no rush, passa por um Zim, um carro excelente, reservado a serviços públicos por sua escassez. Com coragem e tenacidade, em condições extremas, trabalhadores, como este Yakutsk com distúrbio ocular, se dedicam a melhorar a aparência da cidade, que precisa muito.

Chris Marker olha com ternura e carinho essa região desolada enquanto reflete, por meio de um texto poético, sobre a poderosa natureza do documentário, do poder das imagens, que permitem interpretações. Letter from Siberia antecipa o vigor estético e narrativa do cinema dos anos 60 que transitou entre o documentário e a ficção para expor de forma crítica a visão do artista.

Nível cinco

A batalha de Okinawa foi uma das mais sangrentas do final da Segunda Guerra Mundial, agravada devido ao suícidio coletivo praticado por grande parte da população japonesa da ilha. Chris Marker se debruça sobre esse triste episódio em filme que transita entre o documentário, a ficção, a tecnologia interativa e os jogos de videogame.

Laura (Catherine Belkhodja), programadora de computador, é contratada para construir um jogo de computador tendo como tema a Batalha de Okinawa. Enquanto ela desenvolve a narrativa, uma profusão de imagens, simulando realidades interativas, invadem a tela. As entrevistas que a programadora promove, entram como depoimentos, entre eles do diretor Nagisa Oshima. 

Um momento de Nível Cinco é mais aterrador do que qualquer cena real da batalha: um padre, já idoso, narra como ele e o irmão mataram a própria mãe, atendendo aos pedidos dos militares japoneses: sacrificar as crianças e os mais velhos e depois cometer suícidio.

Uma das teorias difundidas é que as bombas de Hiroshima e Nagasaki não teriam acontecido se os militares em Okinawa tivessem aceitado os termos de rendição impostos pelos americanos. O saldo final de mortos da batalha gira em torno de 350 mil pessoas (cerca de 130 mil civis). Até quando cineastas como Chris Marker vão precisar alertar a humanidade sobre a estupidez desumana das guerras?

Nìvel cinco (Level five, França, 1997), de Chris Marker.

A pista

O filme começa com uma imagem fotográfica do aeroporto de Paris, aviões estacionados na pista. Créditos anunciam “un photo-roman de Chris Marker”.Narração em off determina os rumos da narrativa: “Esta é a história de um homem marcado por uma imagem da infância. A cena que o afligiu por sua violência e cujo sentido ele só compreenderia muito mais tarde teve lugar na grande plataforma de Orly alguns anos antes do começo da Terceira Guerra Mundial.”

Estamos diante de um dos filmes de ficção científica mais surpreendentes e ousados do cinema. Toda a história é contada a partir de fotografias em preto e branco que se sucedem, espécie de experimentação foto novelística de Chris Marker. Muito tempo após a Terceira Guerra Mundial, os humanos vivem em porões e outros ambientes subterrâneos, pois o ar exterior está contaminado pela radioatividade. Um homem é convencido a viajar no tempo, primeiro ao passado, depois ao futuro, em uma tentativa de resgate das memórias da humanidade. Ele foi escolhido por ter fortes imagens mentais, memórias afetivas, que preservariam sua identidade nestas viagens no tempo. O escolhido é a criança que frequentava o aeroporto de Orly aos domingos com os pais e que seria marcado por uma imagem desta infância, a de uma bela mulher na plataforma, seguida da morte de um homem. 

A pista influenciou uma série de filmes modernos sobre viagem no tempo com a intenção de reconstruir a história, destacando-se o Exterminador do futuro (1984). O final elíptico e surpreendente também antecede diversos finais de narrativas semelhantes. Para muitos, A pista é o melhor curta-metragem da história do cinema. A beleza etérea das fotografias que se sucedem justifica essa escolha, associada a uma narração poética, reflexiva, sobre o tempo, sobre as memórias, sobre o amor: “Em Orly, aos domingos, os pais levam seus filhos para verem os aviões prestes a partir. Deste domingo, a criança cuja história contamos, reveria por muito tempo o sol fixo, o cenário armado na extremidade da plataforma, e um rosto de mulher. Nada distingue as memórias de outros momentos. Só mais tarde é que se fazem reconhecer, por cicatrizes.” 

A pista (La jetée, França, 1962), de Chris Marker. Com Étienne Becker, Jean Négroni, Hélène Chatelain, Davos Hanich, Jacques Ledoux. 

Sem sol

O documentário/ficção começa com uma frase dita por uma narradora feminina sobre a tela negra: “A primeira imagem de que ela me falou foi a de três crianças na estrada, na Islândia, em 1965.” Vemos, em seguida, a imagem das três crianças, que retorna em mais dois momentos do filme. 

A colagem do diretor, cuja arte pode ser entendida como a estética da montagem, trabalha com imagens filmadas na Europa, na Ásia e na África, amparadas por cartas da narradora/cinegrafista – ficção se intercalando às imagens documentais. 

Os registros incluem rituais religiosos, imagens de opressão, cenas da natureza como um vulcão prestes a entrar em erupção, cotidianos de ruas de grandes cidades. São as memórias do viajante/documentarista Chris Marker, expostas de forma afetiva, às vezes amparadas pelas belas frases das cartas, outras vezes expressas no mais puro silêncio. Arrebatador, talvez seja a palavra para definir Sem sol

Sem sol (Sans soleil, França, 1983), de Chris Marker.