Dahomey

Dahomey (França/Senegal, 2024), de Mati Diop, abre com plano fechado em miniaturas de Torres Eiffel piscando as luzes, dispostas em um tecido em alguma calçada de Paris – trabalho de rua de muitos africanos, oriundos talvez de ex-colônias da França no continente. Entra lettering sobre imagem do Rio Sena à noite: “9 de novembro de 2021. 26 tesouros reais do Reino de Daomé devem deixar Paris, retornando à sua terra de origem, a atual República do Benim. Estes artefatos estavam entre os milhares saqueados pelas tropas coloniais francesas durante a invasão de 1892. Para eles, 130 anos de cativeiro estão chegando ao fim.”

O documentário acompanha a trajetória desses artefatos: o empacotamento no museu, o desembarque das peças na República do Benim, o esforço de colocá-las em um lugar que não representasse exatamente um museu, mas sim um local onde os habitantes pudessem transitar entre seus antigos símbolos roubados. Grande parte do documentário abre espaço para um debate entre pesquisadores, estudantes, membros de tribos, sobre o significado do retorno dos artefatos e, sobretudo, sobre a imposição cultural francesa – incluindo a substituição da língua nativa pelo francês – durante o período de colonização/escravidão. 

Volto ao início do filme, quando uma voz em off, sobre tela negra, reflete sobre o longo período de cativeiro, de exílio. Em outros momentos, essa voz volta à narrativa: é o lamento de um dos desterrados que viveu mais de um século na escuridão. 

“Desde que me conheço por gente, nunca houve uma noite tão profunda e opaca. Aqui, essa é a única realidade possível. O início e o fim. Viajei por tanto tempo, na minha mente, mas esse lugar estranho era tão escuro que me perdi em meus sonhos, unindo-me a essas paredes. Isolado da terra onde nasci, como se estivesse morto. Há milhares de nós nesta noite. Todos temos as nossas cicatrizes. Desenraizados. Arrancados. Espólios do enorme saque. Hoje, é a mim que escolheram, como sua melhor e mais legítima vítima. Eles me chamaram de 26. Não 24. Não 25. Não 30. Só 26.”

Na idade da inocência

Na idade da inocência (L’Argent de poche, França, 1976), de François Truffaut.

O cineasta François Truffaut dizia que fazia filmes sobre dois temas: o amor e as crianças. Truffaut tinha vários projetos de filmes sobre crianças, “Filmes com crianças nunca se esgotam, tenho inúmeros projetos com crianças, mas não quero fazê-los em sequência, porque não quero me especializar nisso. Então faço filmes de crianças de vez em quando, mas não em sequência.” Como o diretor faleceu jovem, aos 52 anos de idade, muitos desses projetos não foram realizados. 

Sobre  o filme deste post (sobre crianças) Truffaut disse: “Na idade da inocência, no começo era uma coletânea de crônicas. Escrevi duas ou três histórias, uma de 7 páginas, outra de 12, mas abandonei o formato e cheguei a um roteiro. Vi que podia fazer como em A noite americana, tudo podia se entrelaçar e formar um filme. Por isso preferi um filme a um livro.”

Essas histórias são contadas no filme quase que episodicamente. A narrativa acompanha um grupo de crianças que estudam na mesma escola. Além dos conflitos inerentes ao ambiente escolar, Truffaut segue os personagens também em seu cotidiano em casa, no bairro, alguns praticando pequenos delitos, outros fazendo biscates para ganhar um trocado (o título original pode ser traduzido como dinheiro de bolso).

O drama central, espécie de espinha dorsal da narrativa, é a amizade de dois garotos, Patrick e Julien. Patrick ajuda o pai deficiente em suas tarefas cotidianas, enquanto Julien mora em um barracão paupérrimo. Os dois veem o mundo com a inocência inerente à idade, mas com atitudes maduras na busca pela sobrevivência no dia-a-dia. Na idade da inocência é um filme delicado, sensível e doloroso, pois o cotidiano de um dos personagens é cruel – estamos falando, sim, de violência doméstica. 

Elenco: Georges Desmouceaux, Philippe Goldman, Nicole Felix, François Truffaut. 

Depois do amanhecer

Depois do amanhecer (Après l’aurore, França, 2023), de Yohann Kouam. Com Mexianu Medenou, Chloé Lecerf, Rayan Bourouina. 

A narrativa acompanha um dia na vida de três personagens que moram em um conjunto habitacional na periferia da cidade. Yves, um artista, acaba de chegar de Berlim, onde morou por alguns anos. Ele tenta se reconectar com a família e antigos amigos do bairro onde cresceu. Hamza, um adolescente surdo, faz parte de um grupo de marginais e se defronta com desafios que podem levá-lo à criminalidade. Déborah, uma treinadora de basquete, vive solitária até que conhece uma jovem com quem começa um relacionamento. 

O filme é marcado por uma fotografia que destaca a noite e, simbolicamente, deixa a luz do início da manhã tomar conta desta periferia e seus personagens que transitam sem rumo, sem propósito definido, a não ser viver a cada dia depois do amanhecer.

Les patins

Les patins (Canadá, 2023), de Halima Ouardiri. Com Sophie Cadieux (a mãe), Ines Feghouli (Mina), Mani Solymanlou (o pai).

A adolescente Mina sonha em ser patinadora artística. No dia em que se passa a narrativa, o pai de Mina a observa durante a aula de patinação. Na volta para casa, ele esquece de propósito os patins dentro do ônibus, deflagrando o conflito: ele acusa a jovem de ter perdido os patins, revelando seu caráter vingativo contra a ex-esposa, incentivadora da filha no esporte.

A diretora Halima Ouardiri, nascida em Genebra (filha de mãe suiça e pai marroquino) explora com sensibilidade o drama familiar. A troca de olhares entre o ex-casal, no final do filme – o do pai irônico, da mãe, rancoroso (enquanto MIna está quieta, envergonhada) – diz mais do que todas as palavras possíveis. 

Sibyl

Sibyl (França, 2019), de Justine Triet.

Sybyl é uma terapeuta que planeja abandonar a carreira para seguir seu sonho de ser escritora. Ela dispensa grande parte dos seus pacientes, mas aceita cuidar de Margot, jovem atriz que está grávida de Anton – os dois são protagonistas em um filme que está sendo rodado em Stromboli, com direção de Mika. O conflito de Margot é sua dúvida em relação ao planejado aborto, pois a gravidez atrapalharia sua iniciante carreira de atriz. 

A narrativa é marcadamente intimista, colocando os personagens em conflito com suas escolhas. Sibyll, frequentadora de um grupo de ex-alcoólatras, se envolve cada vez mais com Margot e com suas próprias experiências, acabando por usar tudo como referência para seu novo livro. 

O ponto forte da narrativa acontece em Stromboli, quando realidade e ficção se entrelaçam no exercício da metalinguagem. Durante as filmagens do longa-metragem, terapeuta/escritora, ator, atriz e diretora se envolvem em um complexo jogo amoroso com consequências imprevisíveis. 

Elenco: Virginie Efira (Sibyl), Adele Exarchopoulos (Margot), Gaspard Ulliel (Anton), Sandra Huller (Mika). 

Escândalos noturnos

Escândalos noturnos (Tapage nocturne, França, 1979), de Catherine Breillat.

Solange (Dominique Laffin) é considerada uma das jovens cineastas francesas mais talentosas. Enquanto termina seu novo filme, ela se relaciona compulsivamente com diversos homens, inclusive seu marido, que a incentiva em seus casos e gosta de ouvir os detalhes das transas. As mais recentes paixões de Solange incluem um ator bissexual e Bruno (Bertrand Bonvoisin) , também diretor de cinema, por quem fica obcecada.  O segundo filme de Catherine Breillat é uma ousada incursão pela sexualidade feminina, colocando Solange em uma posição libertária mas que sofre com a necessidade de buscar sempre paixões e interrogar os seus desejos.

O silêncio do mar

O silêncio do mar (Le silence de la mer, França, 1949), de Jean-Pierre Melville.

Durante a ocupação da França por tropas nazistas, o tenente alemão Werner von Ebrennac (Howard Vernon) é alojado num pequeno vilarejo, na casa de um senhor francês (Jean-Marie Robain) que vive com sua sobrinha (Nicole Stéphane). O filme é considerado precursor da nouvelle vague e marca a estreia de Melville na direção. 

O romance O silêncio do mar foi escrito clandestinamente por Jean Bruller que participava da resistência francesa durante a ocupação nazista. Foi publicado em 1942, assinado com o pseudônimo Vercors. Jean-Pierre Melville leu a publicação clandestina em 1943, quando estava em Londres, e decidiu que a adaptação do livro seria seu primeiro longa-metragem. 

Melville tentou adquirir os direitos autorais, mas Vercors recusou, dizendo que “não foi escrito para se tornar um filme. Foi um ato de resistência, parte de nossa luta.”  Melville fez uma proposta arriscada, disse ao autor que não queria os direitos naquele momento, mas faria o filme mesmo assim, com dinheiro próprio. Quando o filme estivesse pronto, Melville o mostraria a Vercors e a um comitê de 24 soldados da resistência que o próprio Vercors poderia escolher. “Se apenas um dos 24 não aprovar o filme queimarei o negativo na sua frente.”

Dessa forma, Melville agiu da mesma forma que Vercors: filmou clandestinamente, adotando também conceitos da resistência, sem trabalhar com membros do sindicato (como era obrigatório na França naquele momento), nem com produtores e distribuidores. Essa rebeldia o coloca como pioneira da nouvelle-vague, segundo historiadores. “No final da década de 1950, quando Truffaut, Godard e Chabrol tentaram fazer filmes simples e diretos, eles tinham um antecessor e um filme como modelo, O silêncio do mar, para mostrar-lhes como poderia ser feito.” – Volker Schlondorff, assistente de Melville.

Durante as filmagens a equipe  contou com apenas seis pessoas. A narrativa se passa quase inteiramente em uma casa no interior da França, com algumas cenas em Paris (o diretor utilizou imagens de arquivo para as externas) 

O tenente passa o dia fora, em serviço, volta para casa à noite e tenta inutilmente se aproximar, mas o senhor e a sobrinha mantêm distância. Apenas o tenente fala, o senhor ouve lendo, fumando seu cachimbo e a sobrinha tece em completo silêncio.  Em uma cena, o senhor da casa, narrador do filme diz: “Num acordo tácito, eu e minha sobrinha decidimos não mudar nada em nossas vidas, nem um pequeno detalhe, como se o oficial não existisse. Como se fosse um fantasma. Por muito tempo, cerca de um mês, a mesma cena se repetia dia após dia. O oficial batia na porta e entrava. Dizia algumas palavras sobre o tempo, a temperatura ou outros temas igualmente banais cuja conexão era o fato de não precisarem de resposta.” 

Aos poucos, o tenente expressa seu fascínio pela cultura francesa, pelos moradores, pelos costumes, mas continua, diariamente, a praticar os atos para o qual foi designado naquele país, ou seja, a guerra. É um filme sobre o isolamento em meio ao conflito, sobre a frieza e o temor que permeiam as relações entre os inimigos. Sobretudo, é um filme sobre o humanismo rodeado pelo horror. Depois de cumprir suas funções, o tenente encontra à noite, naquele lar, uma paz e tranquilidade que nunca sentiu, desenvolvendo afeto e até mesmo amor pela jovem sobrinha. Esse amor aparenta ser recíproco, mas a jovem continua com seu voto de silêncio, não respondendo nem mesmo quando é pedida em casamento, que se realizaria após a guerra. 

Jean-Pierre Melville gravou o filme em 27 dias, espaçados durante vários meses. O diretor juntava recursos suficientes para um dia de gravação e ao final do dia todos voltavam para Paris espremidos em uma van. Não havia material de iluminação, assim o diretor de fotografia, Henri Decae, desenvolveu um estilo próprio de utilizar a luz natural. As filmagens se estenderam por um ano e meio, contando com sobras de películas de outros filmes.

Após a edição do filme, feita praticamente à mão em um quarto de hotel, Melville reuniu o júri, como prometido a Vercors. Participaram da sessão fechada o escritor, 24 soldados da resistência e, rompendo o acordo, vários convidados, incluindo celebridades de Paris e membros da imprensa. 

“Vercors ficou furioso. Foi uma forma de chantagem sutil e bem típica de Melville para perguntar ao júri: ‘vocês me fariam destruir um filme no qual passei 18 meses trabalhando e que fiz estritamente por paixão?’ É uma aposta muito boa, quase certa, de que ninguém teria coragem de obrigá-lo a queimar o negativo. Foi assim que O silêncio do mar recebeu a autorização de Vercors, depois de feito.” – Denitza Bantcheva 

O filme, feito nestas condições de resistência e baixo orçamento, foi um sucesso de bilheteria. O estilo de Jean-Pierre Melville se desenvolveu a partir de conceitos e técnicas aplicados em O silêncio do mar, como os planos longos, ângulos baixos (influenciados por Cidadão Kane, de Orson Welles) e narrativas cujo silêncio é determinante. 

Referência: Documentário incluído no DVD Nouvelle Vague 2. Versátil. 

Crônica de um verão

Crônica de um verão (Chronique d’un été, França, 1961), de Edgar Morin e Jean Roch, é considerado o documentário que lançou o cinema vèrité (cinema verdade). Durante o verão de 1960, os dois circularam pelas ruas de Pais com intenção de pesquisar e documentar com a câmera a vida cotidiana dos jovens. As entrevistas partiram de uma pergunta simples: “você é feliz?”.

Na primeira parte, duas jovens perguntam aleatoriamente aos transeuntes, alguns se recusam a responder, outros fazem gestos intuitivos como afastar o microfone, mas um ou outro se confronta com a dificuldade de versar sobre o assunto. Na segunda parte, foram escolhidas pessoas por grupos sociais e profissionais: estudantes, operários, casais, amigos em uma mesa. O sociólogo Edgar Morin e o etnólogo Jean Rouch participavam das entrevistas, às vezes sugerindo um debate.

No final, o documentário foi exibido para os participantes e aberto para comentários e críticas. Em entrevista ao Fronteiras do Pensamento, Edgar Morin comenta: “Então, a cidade, no fundo, é o concentrado de toda a civilização. É aí que se encontram todas as ambivalência e todos os problemas. E, no fundo, o tema, quando fizemos a pergunta ‘Você é feliz’ – era uma pergunta um pouco estimulante, um pouco ingênua -, vê-se muito bem que essa pergunta desconcerta a maioria das pessoas. Ou seja, elas não estão acostumadas a poder falar da felicidade, daquilo que há de mais importante na vida.”

Não é um filme caseiro

O documentário Não é um filme caseiro (No home movie, França, 2015), de Chantal Akerman, foca em Natalia Akerman, mãe da diretora, sobrevivente de Auschwitz. As duas conversam em casa ou por chamadas de vídeo quando Chantal está fora. 

É o último filme da diretora belga, não por acaso tem como tema sua relação com a mãe, que já fora central em Notícias de casa (1976). Mãe e filha rememoram a vida em comum, conversam sobre gênero, sexo, identidade cultural, exploram questões recorrentes na vida das duas como solidão e tédio. Natalia Akerman faleceu pouco depois da realização do filme e Chantal Akerma cometeu suicídio em 2015, aos 65 anos. meses depois do lançamento do filme. 

A loucura de Almayer

A loucura de Almayer (Almayer ‘s folly, França/Bélgica, 2011), de Chantal Akerman, é uma adaptação do conto de Joseph Conrad. O filme começa com um assassinato. O chinês Chen entra em um bar, onde o jovem cantor Dain está se apresentando com um grupo de dançarinas. Ele sobe no palco e esfaqueia o cantor no coração. Todos correm, menos Nina que continua dançando como se nada tivesse acontecido. 

A narrativa retrocede. O holandês Kaspar Almayer é um comerciante ambicioso que sonha em encontrar uma mina de ouro na Malásia. Vive à beira do rio com sua esposa e sua filha Nina. É a década de 50, a Malásia ainda é colônia da Inglaterra. O Capitão Lingard, explorador e amigo de Almayer, além de padrinho de Nina, chega de barco pelo rio. Contrário à vida de Nina naquele lugar, ele leva a criança à força para um internato, onde terá uma educação europeia. É o início da loucura de Almayer, que não suporta viver longe da filha e fica cada vez mais obcecado com o enriquecimento.

No entanto, o ponto de vista do filme é de Nina, que se rebela cada vez mais com o internato. Na adolescência, ela abandona a escola e começa um romance com o criminoso Dain, que vive foragido em barcos pelo rio. 

“Ao verter a trama para o século XX e voltar-se os olhos para a educação e rebeldia da filha Nina em vez da loucura megalomaníaca do mercador Almayer (o que, talvez, daria num filme de Herzog), a diretora não se detém unicamente no tema civilizatório, mas desnuda um outro tópico que faz pleno sentido dentro de sua obra: a liberdade feminina, sua função crucial no processo histórico e sua potência de rebeldia. Quando sai do colégio europeu que odeia, Nina acende um cigarro como um sinal de confronto; mais adiante, ela foge dos domínios do pai com Naïn não porque ama o príncipe malaio ou porque tem um orgulho ufanista de sua raiz indígena, mas porque odeia tudo que Almayer tentou fazer por ela. No belo plano final, Almayer caminha em direção à câmera que, sábia, já conhece o desenrolar de tudo. Ao parar, ele chora por um longo tempo. Este gesto não é apenas a derrocada do processo de civilização e de catequese, mas, principalmente, de um processo que aprisiona o outro em sonhos de tesouros secretos. E é também este o projeto que criou os conflitos entre chineses e malaios armados nos momentos iniciais.” – Pedro Henrique Ferreira (Cinética).

Elenco: Almayer (Stanislas Merhar), Capitão Lingard (Marc Barbé), Aurora Marion (Nina), Zac Andianas (Dain), Sakhna Oum (Zahiira).