Carrossel do amor

Carrossel do amor (Körhinta, Hungria, 1958), de Zoltán Fábri.  

Início do filme. Uma multidão transita por uma rua, rodeada por barracas. Panorâmica revela o parque de diversões, crianças e jovens se divertem em um brinquedo, os assentos pendurados por correntes, girando em alta velocidade. A câmera gira em sentido contrário ao carrossel. Volta para a ruela, um palhaço e uma trupe de músicos entretêm a multidão. Corta para Mari Pataki, jovem recém saída da adolescência. Ela tem o olhar deslumbrado, expressão feliz no rosto, seu pai, István Pataki de ar austero e carrancudo está logo atrás dela. As risadas de Mari ao ver as estripulias do palhaço é de encher os olhos do espectador. 

Esse momento de felicidade ingênua acontece no outono de 1953, durante a estada do Circo Esztrád neste vilarejo agrícola no interior da Hungria. Na festa, Mari e Máté se reencontram. Os dois se apaixonaram durante o trabalho coletivo nos campos agrícolas. Mari e Matè se divertem nos brinquedos e seus olhares e gestos demonstram a felicidade do casal apaixonado. A ruptura entre sonho e realidade acontece quando o pai de Mari vê os dois, a chama e determina: “Não quero vê-la novamente com aquele sujeito e sua gangue. Estou farto deles, você também deveria estar.”

A narrativa, com forte teor melodramático, aborda a realidade húngara durante a intervenção soviética e a implantação do comunismo. István é proprietário de terras que foram divididas pelo regime, Ele  acerta o casamento de sua filha com Sandor Farkas, também proprietário de terras, assim os dois recuperam parte de suas propriedades. A gangue da qual Máté faz parte, segundo o patriarca, é a Cooperativa formada por pequenos agricultores e pecuaristas. István e Sandor representam a resistência, insistem no trabalho individual do proprietário em sua terra. Máté defende o novo sistema, a coletividade e a divisão de rendimentos.  

Carrossel do amor foi recebido com louvor crítico no Festival de Cannes. François Truffaut,  jovem crítico da revista Cahiers Du Cinéma, protestou de forma veemente pelo filme não ter sido premiado: “A heroína do maravilhoso filme de Zoltán Fábri deveria ganhar o prêmio de melhor atriz. Esta é a grande vencedora. Está é minha Palma de Ouro.”

A longa sequência de abertura no parque de diversões é um marco da técnica cinematográfica. Zoltán Fábri filma os brinquedos giratórios de ângulos diversos, em movimentos acelerados, recortados por planos glamourosos no rosto de Mari, fazendo o espectador entrar nas sensações da jovem enquanto se diverte. Assim como Abel Gance em Napoleão (1927), Fabri surpreende com a câmera em movimento pendular, acompanhando Mari e Maté em um barco suspenso por cabos de aço que se movimenta também de forma pendular, em uma velocidade estonteante.  

No final do filme, no carrossel de cadeiras suspensas (estrutura circular), o diretor húngaro usa sua técnica inovadora em uma cena que comprova que os dispositivos do cinema, por mais avançados que sejam, servem a um único fim, enlevar os olhos e a alma do espectador nestes breves momentos definidores do CINEMA: o beijo do casal de enamorados.  

Elenco: Mari Torocsik (Mari Pataki), Imre Soós (Biró Máté), Ádám Szirtes (Farkas Sandor), Béla Barsi (István Pataki).

Diário para meu pai e minha mãe

Diário para meu pai e minha mãe (Napló apámnak, anyámnak, Hungria, 1990), de Márta Mészáros. 

A última parte da trilogia autobiográfica de Márta Mészáros centra a narrativa na fracassada Revolução Húngara de 1956, quando civis tentaram derrubar o governo apoiado por Stálin. Julie está em Moscou e tenta a tudo custo voltar para Budapeste, Magda está foragida e Janos participa ativamente das atividades revolucionárias. Quando consegue voltar para seu país, Julie, já uma diretora de cinema, documenta as conturbadas ruas de Budapeste e inicia um romance com outro diretor de cinema. 

O estilo da película contínua na mescla de ficção e documentário, com amplo espaço para a repressão oficial do governo. Outro ponto forte é a luta pela liberdade artística, o cinema verdade dos documentários de Julie e seu namorado se contrapondo às manipulações da mídia governista. O final do filme, após a prisão e julgamento de Janos, é de uma verdade dolorosa, revelando a crueldade dos porões das ditaduras. Ficção também é documentário. 

Elenco: Com Zsuzsa Czinkóczi (Juli), Jan Nowicki (Janos), Mari Torocsik (Vera), Ildiko Bánsági (Ildi), Anna Polony (Magda). 

Diário para meus amores

Diário para meus amores (Napló szerelmeimnek, Hungria, 1987) é a segunda parte da trilogia autobiográfica de Márta Mészáros. Julie rompe com sua tia Magda, com quem vive em constantes conflitos, e vai morar em Moscou, onde ingressa na Universidade para estudar cinema. É o início dos anos 50, a guerra fria recrudesce e a União Soviética passa a controlar com mão de ferro o leste europeu. Na Hungria, Janos é considerado traidor do partido e preso, mesmo sendo amigo pessoal da poderosa Marta. 

O destaque da segunda parte é a ascensão dos ideais contra revolucionárias com os trabalhadores organizando movimentos e greves. A alter-ego de Márta Mészáros, Julie, começa a fazer documentários e se vê confrontada por professores e membros do partido devido a suas edições perigosas. 

Diário para meus amores mantém o estilo ficção/documentário, a montagem fascinante coloca personagens do filme como se estivessem participando de passeatas, comícios e greves. As lembrança de Julie, quando viveu com seus pais em Moscou, são belos momentos estéticos, com a fotografia em preto e branco, principalmente da pedreira onde o pai escultor trabalhava. As imagens trazem beleza a momentos dolorosos de despedida. 

Elenco: Zsuzsa Czinkóczi (Julie), Anna Polony (Magda), Jan Nowicki (Janos), Irina Kuberskaya (Anna Pavlova), Adél Kováts (Natasha), Gyula Bartus (Deszso). 

Diário para meus filhos

Diário para meus filhos (Napló gyermekeimnek, Hungria, 1984), de Márta Mészáros, é o primeiro filme da trilogia semi biográfica da diretora húngara, composta por Diário para meus amores (1987) e Diário para meu pai e minha mãe (1990). A atriz Zsuzsa Czinkóczi, interpreta Julie nas três obras. 

Em Diário para meus filhos, Julie é uma jovem adolescente que retorna a Budapeste após um tempo morando em Moscou. Sua mãe morreu vítima de uma doença e seu pai, um escultor, desapareceu nos porões do cruel regime stalinista.

Em Budapeste, Julie entra em conflito com Magda (Anna Polony), sua mãe adotiva, uma poderosa representante do partido comunista, mas encontra abrigo em Janos (Jan Nowicki), um antigo revolucionário descrente com os rumos do partido. Arredia à escola, a jovem passa suas tardes em salas de cinema.  

É a história de Márta Mészáros, cujas lembranças compõem o retrato do pós-guerra na Hungria, marcado pela ascensão do partido comunista que, passo a passo, rompe com os ideais dos revolucionários e se consolida como um cruel e despótico governo totalmente sobre o controle stalinista. A diretora mescla a narrativa com cenas documentais de comícios, passeatas, manifestações, oscilando entre a fotografia em cores e preto e branco. Diário para meus filhos conquistou o Grande Prêmio Especial do Júri no Festival de Cannes. 

Duas mulheres

Duas mulheres (Ők ketten, Hungria, 1977), de Márta Mészáros, acompanha a improvável amizade que se forma entre duas mulheres de diferentes gerações. Mari (Marina Vlady) é casada, tem dois filhos já adultos, e administra um albergue para mulheres. Juli (Lili Monori) tem uma filha ainda criança e sofre violência doméstica de seu marido alcoólatra. Ela se refugia no albergue, quebrando as regras, que não permite a entrada de crianças, mas se torna protegida de Mari.

A amizade entre Mari e Juli passa por momentos ternos e agressivos, evoluindo para descobertas mútuas e solidariedade. Enquanto Juli tenta se desligar de sua relação abusiva, Mari se descobre em um casamento infeliz e sem perspectivas e passa a flertar com a infidelidade e o alcoolismo.  

Márta Mészáros tece mais uma narrativa que revela a luta constante das mulheres húngaras em busca da libertação das amarras sociais. A filha de Julie é interpretada por Zsuzsa Czinkóczi que, nos anos 80, será a protagonista da aclamada trilogia autobiográfica de Márta Mészáros, composta por: Diário para meus filhos (1984), Diário para meus amores (1987) e Diário para meu pai e minha mãe (1990). 

Adoção

Adoção (Örökbefogadás, Hungria, 1975), de Márta Mészáros.

Kate (Katalin Berek) é uma operária que, aos 42 anos, sente desejo de ter um filho com seu amante casado, pai de dois filhos. Diante da recusa do amante, ela passa a considerar a ideia de adoção, principalmente depois que conhece Anna (Gyongyver Vigh), uma adolescente que vive em um orfanato. 

Adoção é o primeiro filme dirigido por uma mulher a conquistar o Urso de Ouro no Festival de Cinema de Berlim. Márta Mészáros, cuja grande marca temática em sua obra é o feminismo, aborda com leveza o tema da maternidade. A relação entre Kate e Anna é fascinante, composta por ternura, às vezes uma certa agressividade verbal e recusa, mas sempre com esse olhar intimista das mulheres sobre si mesmas. 

A ousadia do cinema da diretora húngara se mostra durante a trama. Anna leva seu namorado, também adolescente, para a casa de Kate, onde se trancam no quarto explorando a sensualidade e o erotismo. São dois adolescentes em belas cenas eróticas que, com certeza, não teriam espaço no cinema atual. 

Libertação

Libertação (Szabad lélegzet, Hungria, 1973), de Márta Mészáros.

A narrativa acompanha o relacionamento amoroso de Jutka ( Erzsébet Kútvolgyi), jovem operária, com Andras (Gábor Nagy) , um universitário que faz parte da classe média emergente na Hungria. O conflito de classes é o tema do filme: Jutka finge ser também uma universitária para ser aceita pelos pais e no círculo social de seu namorado. 

O tema é tratado com sensibilidade, a jornada de Jutka é a busca da aceitação de sua condição operária até se sentir segura para o confronto com os pais de Andras. As cenas sutis de sexo são de uma delicadeza fascinante, a câmera enquadra e, às vezes, passeia pelos corpos dos amantes, a fotografia em preto e branco, a granulação da película, refletindo a beleza dos jovens apaixonados. 

Não chorem, lindas

Não chorem, lindas (Egy őszinte szerelem története, Hungria, 1970), de Márta Mészáros.

Juli (Jaroslava Schallarová) é uma jovem operária de uma fábrica de tecidos em Budapeste. Ela está de casamento marcado com um colega de trabalho, jovem que flerta e beija outras mulheres junto com um grupo de amigos. A cidade está sediando um festival de música, misto de rock’n’roll e música folk húngara. A trilha sonora da apresentação das bandas pontua a jornada de Julie em busca de um último momento de liberdade, pois a juventude húngara também está imersa neste importante momento da contracultura na Europa. 

É o terceiro longa-metragem da diretora Márta Mészáros, a obra segue sua marca de trabalhar com personagens que retratam a classe operária da Hungria, principalmente as mulheres que buscam seu espaço na sociedade, renegando a estrutura patriarcal. Julie se envolve com um dos integrantes de uma banda e se entrega ao relacionamento com rebeldia. A trilha sonora é o grande trunfo do filme. 

As herdeiras

As herdeiras (Orokseg, Hungria, 1980), de Márta Mészáros.

Budapeste, 1936. Szilvia (Lili Monori) é uma mulher rica que se vê pressionada pelo pai, empresário, a ter um filho. É a condição para ela herdar a fortuna da família. No entanto, Szilvia é estéril e oferece dinheiro a Irene (Isabelle Huppert), jovem judia, a conceber um filho com seu marido. 

O triângulo amoroso que se forma a partir deste acordo deflagra os conflitos da narrativa que beira a tragédia quando explode a Segunda Guerra Mundial e começam as perseguições aos judeus. Isabelle Huppert, em um de seus primeiros papeis no cinema, domina a trama. Sua personagem luta pelo seu amor e por seus filhos, mas não se esconde dos nazistas, encarando com altivez o seu destino. O cinema feminista de Márta Mészáros lança um olhar cruel sobre a divisão de classes e a conivência da burguesia europeia com os crimes cometidos pelos nazistas e seus aliados.

Elenco: Isabelle Huppert (Irène), Lili Monori (Szilvia), Jan Nowicki (Ákos), Zita Perczel (Teréz), Sándor Szabó (Komáromi). 

A garota

A garota (Eltávozott nap, Hungria, 1968), de Márta Mészáros.

O novo cinema dos anos 60 representou um importante marco para as mulheres. Excluídas durante décadas do processo de direção cinematográfica, as jovens deste período desafiaram o domínio masculino, compondo obras viscerais, com forte teor feminista. Os exemplos são muitos: Agnés Varda, Chantal Akerman, Lina Wertmuller, Agnieszka Holland, Vera Chytilová, entre outras.

A garota (Eltávozott nap, Hungria, 1968), longa-metragem de estreia de Márta Mészáros, é o primeiro filme dirigido por uma mulher na Hungria. A jovem Erzi (Kati Kovács) foi criada em um orfanato em Budapeste. Ela decide visitar sua mãe biológica (Teri Horváth) que vive em uma pequena cidade do interior. A mãe a recebe com relutância, mas diz que é necessário esconder a filiação de seu marido e dos habitantes do município. 

A narrativa apresenta um confronto entre um possível mundo moderno que se anuncia e o conservadorismo arraigado, ancorado em tradições que condenam e punem mulheres por atitudes consideradas imorais. É um tema recorrente na filmografia da diretora húngaro. Em Nove meses, por exemplo, Márta Mészáros confronta esse conservadorismo patriarcal: a jovem protagonista não esconde da sociedade, apesar de ser também condenada, que é mãe solteira de um menino, cuja maternidade resultou de um namoro com seu amante, um professor universitário casado. 

O final sensível de A garota deixa em aberto esses desafios que se apresentam para as jovens: Erzsi caminha sozinha por um gramado ladeado onde um grupo de adolescentes brincam.  Após mexerem com a garota, eles param para vê-la desaparecer sozinha e altiva no bosque em frente.