A deusa

A deusa (Devi, Índia, 1960), de Satyajit Ray.

Doyamoyee (Sharmila Tagore), de apenas 16 anos, é casada com o estudante universitário Umaprasad. Eles moram na casa do pai de Uma, Kalikinkar Roy (Chhlabi Biswas), junto com outros integrantes da família. Doya é uma bondosa cuidadora, dedicando seu tempo em brincadeiras com o sobrinho de Uma e cuidando do sogro já idoso. O sogro não se cansa de reafirmar que, após a viuvez, Doya é uma “benção” em sua vida.

O diretor Satyajit Ray abre o filme com o letreiro informando que “ouviu essa história de alguém.” A seguir, uma sucessão de imagens da deusa Durga se sobrepõem, formando uma espécie de mosaico da divindade. 

O tema do filme é o fanatismo religioso, deflagrado por um acaso onírico. Uma precisa se ausentar por um tempo para concluir seus estudos. Doya continua com seus afazeres em casa, o sogro se tornando cada vez mais dependente de seus cuidados. Uma noite, Kalikinkar sonha com a Deusa Durga e a imagem se funde com o rosto de Doya. Na manhã seguinte, ele anuncia a todos que a jovem é a reencarnação da deusa. 

O filme retrata temas bastante atuais em questões relacionadas ao fanatismo religioso. Doya passa a ser adorada pelos moradores, pessoas distantes a visitam em busca de cura, que se recusam a buscar tratamento médico pois acreditam no poder da deusa. 

Assim como em outras obras de Satyajit Ray, o conflito de gerações também marca a narrativa. O jovem Uma se recusa a aceitar a situação e tenta tirar Doya da casa. Seu irmão mais velho, o pai e demais membros da comunidade continuam a incentivar o culto, até que um incidente trágico muda tudo.  Em meio a tudo isso, a adolescente Doya passa por um conflito perigoso: a dúvida sobre sua predestinação.

A esposa solitária

A esposa solitária (Charulata, Índia, 1964), de Satyajit Ray.

Charulata (Madhabi Mukherjee) está tecendo um lenço para seu marido. Ela caminha pela casa. Volta ao quarto, se recosta na cama, folheia um livro. Anda pela casa novamente, percorrendo os ambientes luxuosos. Vai até a estante, pega outro livro, continua seu caminhar, agora cantarolando. Abre as persianas da janela, volta ao seu quarto e pega os binóculos duplos. Com o aparelho, observa as pessoas na rua. Tem um olhar curioso, um sorriso no rosto. Abre outra persiana e continua com seu olhar perscrutador para a rua. Se volta para a sala, observa os móveis, senta-se ao piano, faz que vai entoar algumas notas. Nesse momento, Bhupathi (Shailen Mukherjee), seu  marido, entra em cena.

Esta abertura silenciosa, narrativa visual bem ao estilo de Satyajit Ray, aponta o tema do filme. Charu é casada com um próspero e idealista jornalista, que dedica todo seu tempo ao trabalho. Ela passa os dias tentando vencer o tédio, se sentindo cada vez mais solitária na imensa casa onde reside. Tudo muda quanto Amal (Soumitra Chatterjee), jovem primo de Bhupathi, chega para passar uns dias na casa. 

O triângulo amoroso toma conta da narrativa. Amal é um jovem estudante de literatura, com pretensões de se tornar escritor. Ele dedica seu tempo em conversas e leituras com Charu, incentivando para que a jovem também escreva. A aproximação entre os dois é insinuada em gestos, trocas de olhares, versos em pedaços de papéis – a sutileza visual do grande diretor indiano. 

A longa sequência do jardim é de desejar que todo o cinema seja assim, silencioso: Charu brinca no balanço e não consegue desviar os olhos de Amal que escreve deitado na grama. O olhar de Charu oscila, junto com o balançar, entre a admiração, a descoberta, o fascínio, o amor. 

A sala de música

A sala de música (Índia, 1958), de Satyajit Ray. 

Huzor Roy (Chhabi Biswas) passa os dias sentado no terraço de seu palacete, servido por seus dois últimos criados. Uma manhã, ele ouve música na casa ao lado e fica sabendo que é o ritual de iniciação do filho dos vizinhos. Flashback remete Roy à iniciação de seu filho, quando o palácio ainda vivia na opulência advinda do feudalismo – na época, Roy era um rico proprietário de terras.

Satyajit Ray realizou A sala de música no intervalo entre o segundo e terceiro filme da famosa trilogia de Apu. O cineasta, motivado por sua paixão pela música clássica (Ray compôs grande parte da trilha sonora de seus filmes), adaptou o conto de Tarasankar Bandyopadhyay, com a intenção de realizar uma espécie de ópera fílmica, usando músicas clássicas indianas. “Fiquei pensando se música e dança poderiam ser temas aceitos no cinema indiano. Esses senhores feudais normalmente eram mecenas das melhores músicas clássicas indianas. Então a música e a dança eram partes essenciais da história. Achei que seria um filme interessante de se fazer. Neste filme temos um homem rico vivendo em um palácio enorme e sua vida está chegando ao fim. Foi por isso que me atraí por esta história, e foi por isso que fiz o filme.” 

O tema do filme é a decadência do feudalismo diante da modernidade industrial. Uma cena antológica, primor de narrativa visual, demarca essa passagem: Roy chega à varanda de seu palacete e vislumbra a terra árida, que outrora estava coberta de plantações. Um elefante é visto distante, mas visível em sua opulência. Um caminhão entra em quadro pela direita, trafegando pela estrada entre o palacete e o animal. A poeira levantada pelo veículo cobre inteiramente o elefante. 

“A atmosfera de decadência e a melancolia do filme são quase inebriantes. Sentimos o fim do mundo de Roy visceralmente e, ainda assim, como o protagonista, desejamos que ele não morra – por mais impossível que isto seja. A observação atenta e a evocação meticulosa de uma época e lugar – características dos filmes neo-realistas de Ray – funcionam bem aqui, porém para fins mais expressionistas. Vemos que os dois criados restantes estão perdendo a batalha para os elementos da natureza à medida que plantas e insetos tomam conta do castelo. As planícies sem vegetação que Roy observa espelham sua morte lenta. Satyajit Ray explora novas idéias e técnicas neste filme – e é fascinante assistir à expansão do seu estilo. A sala de música é um banquete para os sentidos e uma obra-prima essencial do cinema mundial.”

Elenco: Chhabi Biswas (Huzur Biswarbhar), Gangapada Basu (Mahim Ganguly), Padma Devi (Mahamaya). 

Referência: 1001 filmes para ver antes de morrer. Steven Jay Schneider. Rio de Janeiro: Sextante, 2008.

O herói

O herói (Nayak, Índia, 1966), de Satyajit Ray. 

Arindam Mukherjee (Uttam Kumar), famoso ator de filmes comerciais, embarca em um trem em Calcutá, com destino a Nova Delhi, onde vai receber um prêmio. Naquela manhã, o ator é manchete dos jornais após ser flagrado bêbado, brigando em um bar. 

Durante a viagem de 24 horas, Arindam interage com outros passageiros. Um jornalista que despreza a indústria cinematográfica. Uma adolescente adoentada e silenciosa, sua companheira de cabine, que se limita a olhares ternos para seu ídolo. A mãe da adolescente que fala sem parar sobre sua idolatria, sob o olhar recriminador da filha. Aditi Sengupta (Sharmila Tagore), editora de uma revista feminina, que também sente certo desprezo pelo mundo do cinema.

O herói motiva a reflexão sobre a indústria cinematográfica que cria astros, talvez efêmeros, “basta dois filmes fracassos de bilheteria, para você estar fora do sistema”, diz Adiram em um diálogo. O filme se passa inteiramente dentro do trem, com flashbacks e inserções de sonhos do protagonista – ele caminha por uma montanha de dinheiro até ser sugado diante dos olhos de seu antigo mentor, um diretor de teatro, que se recusa a salvá-lo. 

Os encontros entre Adiram e Aditi – ela funciona como uma espécie de consciência do ator, rendem os diálogos mais provocativos da narrativa. Aditi o confronta, tentando esconder o deslumbramento que sente pelo ator atrás de seus pesados óculos de grau. Adiram também esconde, usando óculos escuros quase o tempo todo, seu olhar conflituoso e amargurado. No entanto, o mestre indiano Satyajit Ray não esconde seu olhar crítico e severo sobre o cinema e suas celebridades. 

O estrangeiro

O canto do cisne do aclamado diretor Satyajit Ray é um tratado filosófico e humanista sobre as relações familiares. O filme é adaptado de um conto escrito pelo próprio diretor. 

Anita Bose é casada com Sudhindra, um próspero industrial indiano. O casal tem um filho adolescente, Satyaki. A trama abre com Anita lendo para seu marido e filho a carta que acabou de receber de seu tio Mitra, desaparecido há mais de vinte anos. O tio pede que a sobrinha o receba para uma visita de uma semana. No entanto, pairam dúvidas sobre a identidade deste tio desconhecido. 

A narrativa é centrada neste núcleo de quatro personagens, tendo como cenário a casa da família Bose. Mitra se revela, pouco a pouco, um homem fascinante, de vasta cultura adquirida em suas viagens pelo mundo. O jovem Satyaki é o primeiro a acreditar que tem um tio-avô, não escondendo sua admiração pelo contador de histórias. Cabe a Mitra vencer, passo a passo, a resistência de sua sobrinha e, principalmente, do patriarca da família. 

O grande trunfo da narrativa são os diálogos intimistas e filosóficos que se transformam, muitas vezes, em longos debates sobre religião e misticismo, sobre tribos indígenas, sobre a injusta sociedade de castas indianas. Mitra é um personagem cético em relação à humanidade. Ele busca sentido para a vida estudando as tribos primitivas de várias partes do mundo. O final é terno e encantador, aponta o desprendimento necessário para se entregar aos pequenos sentimentos entre família.   

O estrangeiro (Agantuk, Índia, 1991), de Satyajit Ray. Com Utpal Dutt (Manomohan Mitra), Dipankar Dey (Sudhindra Bose), Mamata Shankar (Anita Bose), Bikram Bhattacharya (Satyaki Bose).

Noite incerta

O Prólogo anuncia: “Em um armário na sala S18 de um dormitório da Escola de Cinema foi encontrada uma caixa com itens variados, recortes de jornais, flores e cartões de memória. No meio havia cartas escritas por uma estudante de cinema identificada apenas pela inicial L.”

A narrativa parte da leitura dessas cartas, endereçadas ao namorado da jovem. O conteúdo é o amor, a saudade, a desilusão diante do abandono, tristes lamentos sobre a divisão de castas na Índia que, possivelmente, foi a causa da separação dos enamorados. Trechos revelam a agitação estudantil na Universidade de Cinema, motivada pela destituição de um importante diretor. 

A diretora Payal Kapadia compõe um misto de documentário e ficção, imagens poéticas de ambientes urbanos e rurais, de manifestações estudantis, de pessoas das mais diversas idades e classes em meio a esse cotidiano por vezes lírico, outras vezes angustiante, talvez cruel, da sociedade indiana.  

Noite incerta (A night of knowing nothing, Índia, 2021), de Payal Kapadia.

Mirch Masala

Na Índia colonial, o exército percorre os povoados cobrando impostos da população. O conflito se instaura em uma pequena aldeia quando o General exige que a bela Sonbai (seu marido está ausente, trabalhando em uma estrada de ferro) se entregue a ele. Além de recusar, ela esbofeteia o General e, em fuga, se refugia, junto com outras mulheres, em uma fábrica de pimenta.

A narrativa de Ketan Mehta revela a face cruel de uma sociedade que se diz protetora dos valores da família. Os homens da aldeia se submetem às exigências do General e, quando confrontados moralmente (é seu dever proteger suas mulheres) abaixam a cabeça em sinal de subserviência e humilhação. A resistência se mostra no ato heróico do guardião da fábrica e na virada final, quando as mulheres se unem em um retumbante gesto de autodefesa e protesto. Um filme relevante, principalmente neste momento, quando os valores conservadores da sociedade patriarcal voltam novamente suas garras contra as mulheres. 

Mirch Masala (Índia, 1986), de Ketan Mehta. Com Smita Patil (Sonbai), Naseeruddin Shah (Subeber), Om Puri (Abu Miya). 

A casa e o mundo

Bimala segue os preceitos determinados pela rígida sociedade indiana. É casada com o rico Nikhil e vive reclusa na mansão, na ala destinada às mulheres. Seu marido tem ideias progressistas a respeito da emancipação das mulheres e a incentiva a deixar a reclusão e conhecer seu amigo Sandip, um líder nacionalista que luta conta a colonização britânica na Índia. 

Bimala e Sandip desenvolvem, a princípio, uma relação comum a respeito das ideias nacionalistas. No entanto, essa relação caminha passo a passo para a atração física que ganha contornos irresistíveis e imprevisíveis, diante da conturbada situação política do país. 

A narrativa do aclamado diretor Satyajit Ray tem como contexto a Índia do início do século XX, quando os movimentos nacionalistas ganharam força. Ao mesmo tempo, a trama aponta questões que repercutem ainda hoje, como a divisão de castas indianas, a situação da mulher, oprimida pela cruel dominação masculina. O final trágico deixa pouco espaço para a esperança. 

A casa e o mundo (Ghare-Baire, Índia, 1984), de Satyajit Ray. Com Soumitra Chatterjee (Sandip), Victor Banerjee (Nikhl)), Swatilekha Sengupta (Bimala), Gopa Aich (A irmã). 

Os jogadores de xadrez

Dois nobres indianos passam todo o tempo jogando xadrez. Enquanto uma crise assola o país, a Índia foi anexada ao Império Britânico e os golpistas exigem a abdicação do rei, a única preocupação deles é com o interminável jogo. 

Os jogadores de xadrez foi realizado em uma época na qual a censura imperava na Índia. A alegoria de nobres absolutamente desinteressados e passivos diante dos conflitos sociais e políticos foi a forma do aclamado diretor Satyajit Ray tecer sua crítica mordaz. A narrativa se passa em 1856, mas pode ser visto, ainda hoje, como um retrato satírico da colonização que assolou países do mundo inteiro, sob o olhar complacente da política e das elites locais. 

Os jogadores de xadrez (Shatranj ke khilari, Índia, 1977), de Satyajit Ray. Com Sanjeev Kumar (Mirza), Saeed Jaffrey (Mir Roshan), Shabana Azmi (Khurshid), Farida (Nafisa). 

O vagabundo

Raghunath é um prestigiado juiz, casado com Leela. Certa noite, sua esposa é sequestrada pelo bandido Jagga que tem contas a acertar com o juiz. Raghunath o condenou à prisão sem provas, alegando que “filho de bandido será sempre bandido.” Quando descobre que Leela está grávida, o bandido a liberta após cinco dias de cativeiro. Ao saber da gravidez de sua esposa, a dúvida sobre a paternidade se instaura de forma destruidora na mente do juiz. 

A trama expõe questões inerentes ao cruel sistema paternalista não só da Índia, mas da humanidade. O juiz nega a paternidade e seu filho se transforma no Vagabundo do título, cumprindo o destino determinado pelo próprio pai (a vingança de Jagga). Esteticamente, o filme traz a marca do cinema de qualidade desenvolvido em Bollywood, com cenários perfeitos, o melodrama e o musical pontuando a narrativa – gêneros preciosos ao cinema indiano, sequências glamourosas e extravagantes (os sonhos de Raj). 

O vagabundo (Awaara, Índia, 1951), de Raj Kapoor. Com Raj Kapoor (Raj), Nargis (Rita), Prithviraj Kapoor (Juiz Raghunath), K. N. Singh (Jagga), Leela Chitnis (Leela)