Sangue selvagem

Sangue selvagem ((Wise blood, EUA, 1979), de John Huston. 

Hazel Motes (Brad Dourif) chega a sua cidade natal após ser dispensado do exército devido a ferimentos sofridos na Guerra do Vietnã. Ninguém sabe exatamente que ferimentos são esses, pois ele “tem vergonha de dizer onde foi atingido.” Hazel Motes, após diversos conflitos com os moradores da cidade, parte em peregrinação, adotando uma vida sem crenças, até que chega a uma cidade sulista e decide criar a Igreja Sem Cristo, pregando nas ruas, sem aceitar qualquer tipo de ajuda financeira. 

Os irmãos roteiristas e produtores Benedict e Michael Fitzgerald adaptaram o primeiro romance de Flannery O’Connor, Wise Blood, publicado em 1953. A jornada espiritual de Hazel Motes é marcada por imolações, auto sacrifício e atitudes violentas contra os desafetos religiosos – atenção para a sequência de extrema violência na estrada. 

Sangue selvagem é um raro filme de John Huston, um dos grandes do sistema de estúdio de Hollywood, feito de maneira independente, de baixo orçamento e contando com uma equipe pequena e colaborativa em todos os aspectos. Grande parte foi filmada nas ruas de Macon, na Geórgia, contando com atores não-profissionais, que muitas vezes nem sabiam que estavam sendo filmados – como na divertida cena do gorila. O xerife, que tem participação relevante na narrativa, é o próprio xerife da cidade, assim como a prostituta que acolhe Hazel. “Ela era uma prostituta, era prostituta na cidade.” , comenta o roteirista e produtor Benedict Fitzgerald, que analisa a escolha de John Huston para dirigir o filme.

“Queríamos fazer isso e éramos ambiciosos, queríamos fazer algo que sabíamos que era importante. Ver se encontrávamos alguém importante que se interessasse pela história e reconheceria seu valor. E tivemos sorte de termos pensado em John Huston. Estávamos considerando outros, mas eles ficariam tão impressionados pela natureza alegórica da história, ou pelo que consideravam grotescos ou pela alegoria em si, que não seria uma história contada do jeito que boas histórias são contadas, muito direta. John nunca fez nada além disso. Ele gostava de contar a história como ela era. Do jeito que é. E o fato dele achar que era uma comédia, que o exagero religioso ou o coração religioso era um ponto forte, foi um mal-entendido, nós nunca tentamos forçar o diretor. Ele foi em frente e fez. E lembro que no último dia ele colocou as mãos nos meus ombros e disse: acho que fui enganado.”

Elenco: Brad Dourif (Hazel Motes), John Huston (Grandfather), Dan Shor (Enoch Emory), Harry Dean Stanton (Asa Hawks), Amy Wright (Sabbath Lily), Mary Nell Santacroce (Landlady).

Que se faça luz

Que se faça luz (Let there be light, EUA, 1980), de John Huston.

Durante a Segunda Guerra Mundial, cinco grandes diretores de Hollywood embarcaram para a Europa: John Huston, William Wyler, John Ford, George Stevens e Frank Capra.  O objetivo era participar do esforço de guerra, documentando os combates no continente europeu.  A série Five came back narra a odisseia dos diretores e traz depoimentos de importantes cineastas contemporâneos sobre o processo e as obras documentais criadas sobre a guerra.

O documentário Que se faça luz, filmado em 1946, se destaca devido à temática e às polêmicas suscitadas. John Huston visitou hospitais psiquiátricos e coletou depoimentos de veteranos da guerra que enfrentavam transtornos psicológicos devido às experiências em frentes de combates. A partir dos anos 70, a doença foi denominada de transtorno do estresse pós-traumático. 

John Huston contou com a colaboração de médicos e pacientes, que permitiram que algumas sessões fossem gravadas, incluindo práticas de hipnose. O que se vê nas telas é um retrato doloroso e cruel dos traumas causados pela guerra, não permitindo, às vezes, a reintegração dos soldados à sociedade e à vida familiar.

O governo americano considerou o documentário impróprio para veiculação, alegando que mostrava a condição dos soldados de forma desmoralizante. O filme foi censurado durante mais de 40 anos, ganhando uma restauração em 1980, quando finalmente veio a público como uma contundente denúncia da guerra e seus efeitos permanentes.

Caminhando com o amor e a morte

Caminhando com o amor e a morte (A walk with love and death, EUA, 1969), de John Huston. 

Anjelica Huston debutou no cinema sob a direção de seu pai. A narrativa de Caminhando com o amor…  se passa na França, século XIV, durante a revolta dos camponeses. O caminho de Claudia (Anjelica Huston), uma adolescente cuja família é da nobreza francesa, se cruza com o do andarilho Heron (Assaf Dayan), um estudante do interior que sonha em conhecer o mar. A revolta entre camponeses e nobres explode, a família de Claudia é assassinada e os dois jovens, apaixonados,  empreendem uma fuga por regiões marcadas pela violência. 

O lirismo dos apaixonados dá o tom da narrativa: eles cruzam bosques, se abrigam em um mosteiro, em um castelo prestes a ser invadido e, em todos os lugares, se entregam ao amor carnal. O melodramático final se anuncia em cada encruzilhada, em cada decisão de Claudia e Heron. 

Elenco: Com Anjelica Huston (Claudia), Heron of Fois (Assaf Dayan) Anthony Higgins (Robert of Loris), John Hallam (Sir Merles), John Huston (Robert the Elder).

O diabo riu por último

O diabo riu por último (Beat the devil, EUA, 1953), de John Huston. Com Humphrey Bogart (Billy Dannreuther), Jennifer Jones (Gwendolen Chelm), Gina Lollobrigida (Maria Dannreuther), Robert Monley (Peterson), Peter Lorre (Julius O’Hara), Edward Underdown (Harry Chelm), Ivor Barnard (Major Jack Ross). 

A incursão do eclético John Huston pela comédia resultou em um filme irônico e ousado.  O cenário é uma cidade paradisíaca da Itália à beira-mar. Um grupo de turistas espera o navio zarpar, cujo capitão está doente, entre eles os casais formados por Billy e Maria Dannreuther e Harry e Gwendolen Chelm. Quatro trapaceiros têm negócios obscuros a tratar com Billy e também se encontram na cidade. Tudo se complica quando um assassinato, praticado em outra cidade, envolve os protagonistas da narrativa. 

Esqueça o tom simplista da narrativa policial. O mérito do filme é o tom ousado da comédia, incluindo uma divertida e consentida troca de casais. A sequência do acidente de carro na estrada à beira-mar é deliciosa, assim como os imprevistos que esse acidente provoca. Bogar e Gina Lollobrigida dominam o elenco, ele, com a ironia e o sarcasmo estampados em cada cena; ela com uma pretensa ingenuidade que eleva o tom de erotismo da narrativa. O major fascista Jack Ross está hilário em suas explosões de violência. 

Elenco: Humphrey Bogart (Billy Dannreuther), Jennifer Jones (Gwendolen Chelm), Gina Lollobrigida (Maria Dannreuther), Robert Monley (Peterson), Peter Lorre (Julius O’Hara), Edward Underdown (Harry Chelm), Ivor Barnard (Major Jack Ross).

Cidade das ilusões

Cidade das ilusões (Fat city, EUA, 1972), de John Huston. Com Stacy Keach (Tully), Jeff Bridges (Ernie), Susan Tyrell (Oma), Candy Clark (Faye), Nicholas Colasanto (Ruben). 

John Huston foi um dos diretores mais “aventureiros” da clássica Hollywood. Entre outras atividades, ele foi marinheiro e boxeador e as filmagens de alguns de seus filmes são repletas de histórias sobre esse jeito de viver perigosamente, principalmente, Uma aventura na África (1951)

Cidade das ilusões, realizado no melhor momento da Nova Hollywood, é um filme intimista, deprimente, corrosivo no tratamento do fracasso individual. O boxeador Tully abandonou os ringues no auge da carreira, entregando-se ao vício do álcool. Mora em um quarto simples e sobrevive em subempregos nas colheitas. Durante um treinamento na academia, Tully conhece Ernie, um jovem talentoso que, com o treinamento certo, pode ser um grande boxeador. Sob a tutela do treinador Ruben, Ernie dá os primeiros passos no ringue, enquanto Tully tenta se colocar em forma e voltar a competir, mas a ilusão e o fracasso rondam a caminhada dele novamente. 

“No final, Tully não se encontra muito ‘livre’ para viver a vida de realizações masculinas, conformado com seu isolamento e fracasso, Huston sugere que não há nenhum caminho fácil para a ‘cidade das ilusões’ e de riqueza que é o sonho americano. Com as suas sequências de boxe autênticas, locações desoladas na Califórnia e uma atuação perfeita e sutil de um conjunto talentoso Cidade da ilusões oferece um retrato realista, porém poético, da obsessão demasiado humana de realizar sonhos irrealizáveis de auto-transformação e transcendência.”

1001 filmes para ver antes de morrer. Steven Jay Schneider. Rio de Janeiro: Sextante, 2008.

O segredo das joias

Com O segredo das jóias (1950\) John Huston praticamente definiu o subgênero de filmes de assalto, influenciando diversos clássicos na sequência: Rififi (1955), O grande golpe (1956), Os eternos desconhecidos (1958), Onze homens e um segredo (1960).  

A trama, roteiro e direção de John Huston, adaptada de romance de W. R. Burnett, tem como princípio a preparação de um grande assalto a uma joalheria, planejado pelo notório “Doc”, que acaba de sair da cadeia. Ele reúne seus comparsas, cada um com uma especialidade: Ciavelli, Gus, Emmerich (financiador do plano) e Dix, protagonista da história, um ladrão de segunda categoria amargurado que transita pela noite em busca de dinheiro para pagar suas dívidas. 

O roubo na joalheria é um primor narrativo e estético, planejado em cada detalhe, mas sujeito aos incidentes, que acontece quando um guarda noturno desconfia e entra pela porta de escape. A partir daí, cada um dos personagens vive um drama e são vencidos, afinal, por suas próprias ambições e fraquezas humanas. 

“O filme se divide no planejamento e na captação dos recursos humanos e financeiros para o golpe, no golpe em si e, finalmente, na derrocada de seus componentes, vítimas de seus próprios vícios e fraquezas. ‘De uma forma ou de outra, todos nós trabalhamos em função de nossos vícios’, diz Doc, a certa altura, ele mesmo condenado por sua fixação por ninfetas. Da mesma forma, além da ganância, a fraqueza da personagem de Calhern é sua ‘sobrinha’ (uma iniciante e já insinuante Marilyn Monroe), enquanto o ‘caipira’ Hayden sonha com seu Rosebud, um potro indomado reminiscente de sua infância no interior do Kentucky.” – Carlos Quintão. 

A escapada de Hayden, ao lado de sua namorada Doll, dirigindo ferido em alta velocidade pela estrada, é um desses grandes momentos de desejo e frustração do cinema. A caminhada final de Hayden em direção à casa que foi de seu pai, em direção aos cavalos é dolorosa, sem esperanças, carregada dos sonhos que o cinema clássico americano tornou impossível em alguns belos finais de filmes. 

O segredo das joias (The asphalt jungle, EUA, 1950), de John Huston. Com Sterling Hayden (Dix Handley), Sam Jaffe (Doc Erwin Riedenschneider), James Whitmore (Gus Minissi), Jean Hagen (Doll Conovan), Marilyn Monroe (Angela Phinlay).

Referência: Livreto encartado no bluray da Versátil Home-Vídeo, curadoria de Fernando Brito.

Moulin Rouge

Paris, 1890. O Cabaré Moulin Rouge agita as noites da cidade luz, repleto de homens e mulheres fascinados pelos espetáculos de danças eróticas, principalmente o can-can. O pintor Henri Toulouse-Lautrec é habitual frequentador, assiste a tudo sentado, enquanto esboça desenhos das dançarinas e dançarinos, bem como de frequentadores. 

Certa noite, quando sai do Cabaré, Toulouse ajuda a prostituto Marie-Charlet a se livrar da polícia e a abriga em sua casa. Ele se apaixona pela jovem, os dois desenvolvem um relacionamento marcado por conflitos e desilusões. 

A filmografia do célebre pintor tem por base a deformidade que o atingiu nas pernas, depois de uma queda na infância. A trama de John Huston acompanha seus primeiros experimentos como pintor da vida boêmia de Paris, retratando basicamente pessoas que frequentavam a noite. Abre espaço também para a revolução que propagou na divulgação publicitária, através dos famosos cartazes promocionais que pintou para o Moulin Rouge. Usando a técnica da litogravura, os cartazes eram espalhados por Paris.

De saúde frágil desde a infância, acometido por uma doença rara, ele cresceu apenas das pernas para cima (tinha cerca de 1,50), a narrativa passa pela tristeza que acometia o artista, incapaz de se relacionar amorosamente com as mulheres. A busca incessante pela arte, a entrega à boemia e ao álcool de forma quase suicida, marcam a trama. Uma bela e sensível homenagem ao artista. 

Moulin Rouge (Inglaterra, 1952), de John Huston. Com José Ferrer (Toulouse-Lautrec/Conde de Toulouse-Lautrec), Zsa Zsa Gabor (Jane Avril), Suzanne Flon (Myriamme Hyam), Colette Marchand (Marie Charlet), Christopher Lee (Georges Seurat), Georges Lannes (Sargento Patou).

Uma aventura na África

Katharine Hepburn foi acometida de grave disenteria durante as filmagens. Ela disse que grande parte da equipe técnica e elenco sofreram deste mal devido a ingestão de água contaminada. “A exceção de John Huston e Humphrey Bogart, que só bebiam uísque” – completa a atriz. É uma das histórias sobre Uma aventura na África (1951). Outra: John Huston exigiu que o filme fosse realizado em locações na África devido a sua obsessão em caçar elefante. Assim que o batedor africano avisava o diretor de uma manada de elefantes estava nas proximidades, Huston abandonava tudo, pegava seu rifle e corria ao encontro do animal. É o tema do filme Coração de caçador (1990), de Clint Eastwood.

No entanto, a grande história é mesmo a do filme. Charlie Allnut é um beberrão inveterado, dono do African Queen, barco que carrega provisões pelo Rio Congo. Rose Sayer, irmão de um missionário inglês, tem o caráter tímido e o fervor religioso que a faz instintivamente se afastar de Charlie. Ela vive com o irmão em uma aldeia, quando estoura a primeira guerra mundial. O irmão morre e a única salvação para Rose é aceitar a “carona” de Charlie rio abaixo.

road movie pelo rio é repleto de aventuras e perigos, entre eles uma fortificação alemã nas margens e corredeiras intransponíveis. “Eu nunca sonhei que uma experiência física poderia ser estimulante assim.” – diz Rose após transpor uma das corredeiras. É a metáfora para a repulsa de Rose por Charlie passar da atração ao desejo até o casal formar um dos pares mais incomuns e menos românticos da história do cinema.

“Ela é meiga, porém indócil. Ele é rude, sem ser selvagem. O par se forma de modo involuntário e se reúne a partir da relação de sobrevivência que eles são forçados a construir frente a um terceiro personagem essencial da história, a natureza.” – Cássio Starling Carlos.

Com muito humor e ação, Uma aventura na África é “uma das aventuras mais impressionantes, divertidas e cativantes de Hollywood.” Resultado da parceria perfeita dos amigos de uísque John Huston e Humphrey Bogart. E como estamos no terreno das substâncias, a química entre Katharine Hepburn e Bogart é o grande trunfo do filme. A relação entre eles está longe do glamour romântico e do sex appeal comum entre casais na Hollywood destes anos. Ninguém sente falta disso, é a certeza que fica ao final da aventura do African Queen.

Uma aventura na África (The African Queen, EUA, 1951), de John Huston. Com Humphrey Bogart (Charlie Allnut), Katharine Hepburn (Rose Sayer), Robert Morley (Rev. Samuel Sayer).

Referências:

Coleção Folha Grandes Astros do Cinema. Humphrey Bogart. Uma aventura na África.Vol. 4. São Paulo: Folha de S. Paulo, 2014.

1001 filmes para ver antes de morrer. Steven Jay Schneider (editor). Rio de Janeiro: Sextante, 2008.

O falcão maltês

“Sr. Spade. Eu tenho uma terrível confissão a fazer. A história que contei ontem era apenas uma história.” – Brigid O’Shaughnessy

“Não acreditamos na sua história, senhorita. Acreditamos nos duzentos dólares. – Sam Spade.”

O diálogo reflete não apenas as motivações de Sam Spade, mas o caráter que domina as personagens deste cinema denominado pelos franceses de “film noir”. Em torno do misterioso falcão maltês se reúne uma galeria de tipos que consagrou o gênero. Wilmer Cook, o assassino de segunda categoria, silencioso e mortal. Cairo, o educado cavalheiro que cheira a gardênia. Kasper Gutman, o gordo espalhafatoso, de risadas forçadas e olhar ameaçador.  Brigid O’Shaughnessy, cujos terninhos bem comportados escondem a mulher dúbia e dissimulada e, porque não dizer logo, fatal. Iva, a viúva que se atira nos braços do amante assim que sabe da morte do marido. E, claro, Sam Spade, o detetive de frases cortantes e rápidas como uma metralhadora, cujas motivações incluem simplesmente duas notas de cem dólares ou as pernas de uma bela mulher.

Estes cidadãos dos becos escuros das grandes metrópoles, ambiente preferido do cinema noir, só poderiam transitar por ambientes à meia-luz, fotografados em preto e branco, com sombras projetadas simbolicamente nas paredes, no chão e no rosto do espectador. “O filme lançou John Huston como diretor, marcou o surgimento de Bogart, e ainda inventou uma forma de contar histórias de detetives, mulheres de mau comportamento, ladrões e perdedores. A iluminação, os cenários urbanos e a posição de câmera são o alicerce do que posteriormente se tornaria um gênero mágico, um tipo de filme que nos deixa paralisados na poltrona enquanto desfrutamos, extasiados e assustados, a assassinatos, romances arrebatadores e imagens belíssimas e perturbadoras.” – Gregorio Belinchón.

A trama de O falcão maltês não importa muito. No final, tudo pode ser uma farsa, um pretexto para contar histórias de detetives saídas da máquina de escrever do escritor Dashiell Hammett, cujos textos eram publicados em revistinhas pulp fictions. O diretor e roteirista John Huston assumiu que simplesmente copiou e colou os diálogos do autor no roteiro. Estava fazendo uma espécie de filme B, gravado em interiores, com figurinos e cenários econômicos, atores fora do padrão star-system e fotógrafos experimentais, influenciados pela estética expressionista. Clássicos do cinema da era de ouro de Hollywood nasceram sob esta aparente simplicidade. Como diz Sam Spade no final do filme, se referindo ao falcão maltês: “É feito do material com que se fazem os sonhos.” Está falando do cinema.

O falcão maltês (The maltese falcon, EUA, 1941), de John Huston. Com Humphrey Bogart (Sam Spade), Mary Astor (Brigid O’Shaughnessy), Peter Lorre (Joel Cairo), Sydney Greenstreet (Kasper Gutman), Elisha Cook Jr. (Wilmer Cook).

Referência: Coleção Folha Clássicos do CinemaO falcão maltês.

Os vivos e os mortos

Passo boa parte dos meus dias entre o cinema e a literatura. Em alguns momentos de beleza, livros e filmes se encontram numa mesma obra. John Huston dirigiu  Os Vivos e os Mortos (The Dead, EUA/ING/ALE, 1987) na cadeira de rodas, respirando com a ajuda de balões de oxigênio. Foi seu último filme, a despedida de uma carreira dedicada à sensibilidade e à ternura traduzidas em cinema.

Adaptação do conto Os Mortos, de James Joyce, o filme narra o encontro de uma família numa noite de festa. É inverno e a neve castiga o tempo e o coração dos personagens. Aos poucos, desejos, amores e segredos vão se revelando. Anjelica Huston (filha do diretor) e Donal McCann formam um casal de meia-idade que vai se defrontar nesta noite com um segredo do passado.

Não sei dizer o que é mais bonito, a cena do monólogo interior de Donal McCann olhando para a mulher adormecida e a neve caindo lá fora ou a última página do livro de James Joyce. É o encontro entre cinema e literatura. Mais do que isso, o encontro entre James Joyce e John Huston.

“Leves batidas na vidraça fizeram-no voltar-se para a janela. A neve tornava a cair. Olhou sonolento os flocos prateados e negros, que despencavam obliquamente contra a luz do lampião. Era tempo de preparar a viagem para o oeste. Sim, os jornais estavam certos: a neve cobria toda a Irlanda. Caía em todas as partes da sombria planície central, nas montanhas sem árvores, tombando mansa sobre o Bog of Allen e, mais para o oeste, nas ondas escuras do cemitério abandonado onde jazia Michael Furey. Amontoava-se nas cruzes tortas e nas lápides, nas hastes do pequeno portão, nos espinhos estéreis. Sua alma desmaiava lentamente, enquanto ele ouvia a neve cair suave através do universo, cair brandamente – como se lhes descesse a hora final – sobre todos os vivos e todos os mortos.”