O medo do medo

O medo do medo (Angst vor der angst, Alemanha, 1975), de Rainer Werner Fassbinder, foi realizado para ser exibido na televisão alemã. Fassbinder usou como base as memórias da escritora Asta Scheib, que publicou um livro com relatos pessoais sobre a sua luta contra a depressão. Asta foi convidada por Fassbinder para participar dos sets de filmagem e percebeu que o diretor usou apenas a ideia do livro. Segundo Asta, Fassbinder usou muito de sua própria experiência com a doença para narrar o martírio da protagonista Margot.

Margot está grávida de seu segundo filho e começa a sentir sintomas de medo e insegurança. Quando a criança nasce, tudo se intensifica e ela começa a agir de forma estranha, cada vez mais dominada por sentimentos que não compreende. Fassbinder usa a técnica de ondular levemente os ambientes do apartamento em que ela mora para denotar o gradativo estado depressivo. Margot se torna dependente de remédios e, depois, do álcool. 

O medo do medo é um estudo sensível e perturbador dessa doença que atinge milhões de pessoas e age de forma invisível e, quando se manifesta, é rotulada de forma degradante até mesmo pelos familiares. A sequência do adultério de Margot, motivada pela dependência de remédios, é triste, pois aponta a crueldade de pessoas ao redor que se aproveitam ao invés de ajudar. 

Elenco: Margit Carstensen (Margot), Ulrich Faulhaber (Kurt), Brigitte Mira (mãe de Kurt), Ir Herman (Lores), Armin Meier (Karl), Adrian Hoven (Dr. Merck). 

Precauções diante de uma prostituta santa

Precauções diante de uma prostituta santa (Warnung vor einer heiligen nutte, Alemanha, 1970), de Rainer Werner Fassbinder, faz parte da antologia de filmes que refletem sobre o próprio cinema. A lista de classicos inclui Crepúsculo dos deuses (1950, Billy Wilder), Assim estava escrito (1952, Vincente Minnelli), No silêncio da noite (1950, Nicholas Ray), Cantando na chuva (!953, Gene Kelly e Stanley Donen) O desprezo (1963, Jean-Luc Godard), Oito e meio (1963, Federico Fellini), A noite americana (1973, François Truffaut). 

Na obra de Fassbinder, uma equipe de profissionais do cinema está reunida em um palacete na Espanha durante os preparativos de um filme intitulado Pátria e Muerte. Atores e atrizes, produtores, diretor de fotografia, continuístas, técnicos e o diretor que se recusa a fazer o filme. O tédio e a insegurança da espera, dos preparativos, são permeados por tensões sexuais e amorosas, conflitos profissionais, desilusão diante da arte,  frustração com o próprio trabalho, não-reconhecimento do talento, desespero diante da falta de dinheiro para o prosseguimento da produção, enfim, um set de cinema? Ou um set de cinema de Fassbinder?

Fassbinder interpreta Sascha, o produtor executivo que deve contornar  os problemas e tentar dosar o insano, irascível e agressivo Jeff Castel, diretor do filme. Jeff trabalha aos gritos aleatórios com a equipe chegando, inclusive, a agressões físicas. Nos intervalos, ele se relaciona sexualmente com homens e mulheres da equipe. 

Essa prostituta santa, o cinema, espalha o terror e o desejo, exaspera os sentimentos de toda a equipe, incentiva o confronto, quase destroi emocionalmente um ou outro. Mas ninguém consegue deixar o set, ninguém resiste ao processo quase apocalíptico de fazer cinema. 

Elenco: Lou Castel (Jeff Regisseur), Eddie Constantine (Eddie), Marquard Bohm (Rickey), Hanna Schygulla (Hanna), Rainer Werner Fassbinder (Sascha), Margarethe von Trotta (Babs), Ulli Lommel (Korbinian). 

Por que deu a louca no Sr. R.?

Por que deu a louca no Sr. R.? (Warum läuft Herr R. Amok, Alemanha, 1970), de Rainer Werner Fassbinder e Michael Fengler. 

O Sr. R (Kurt Raab) vive uma vida de aparência com sua esposa, a Sr. R (Lilith Ungerer). São de classe média, têm um filho, passam os dias apáticos em seu relacionamento: bebendo, fumando, recebendo amigos em casa, fazem tudo juntos, mas sem a menor intimidade ou sinal de sentimentos, são como dois estranhos que resolveram viver juntos. No trabalho, Ele é um solitário metódico, retraído, temeroso de atos mais atrevidos. Ele é um observador distante da vida. 

Tudo muda quando, em uma festa da empresa, bêbado, ele faz um discurso ofensivo a vários de seus colegas. A loucura do título que passo a passo caminha para um trágico ato final em família. 

Fassbinder dirigiu a película em parceria com Michael Fengler. Os planos longos aplicados a uma narrativa por vezes monótona evidencia a placidez do casal, simbolizando a rotina sem atrativos da classe média alemã, um dos temas favoritos de Fassbinder. Entre a casa e o trabalho, a vida do Sr. R. caminha sem motivações, talvez uma promoção que nunca acontece. O surpreendente gesto final, inesperado e violento, poderia ser visto como um gesto de liberdade, de tentativa de finalmente se fazer notar por todos ao seu redor, mas nada mais é do que a perigosa explosão do subconsciente de pessoas que vivem em um mundo apático. l

O comerciante das quatro estações

Quando volta do serviço prestado à Legião Estrangeira, no Marrocos, em 1947, Hans Epp começa a trabalhar como feirante, junto com a esposa, Irmgard Epp. Para aumentar os rendimentos, ele percorre as ruas de bairros com um carrinho de frutas, anunciando para as janelas suas ameixas e peras. 

Com este personagem singular, Fassbinder compõe a metáfora das quatro estações. Hans vê seus dias passarem de forma repetitiva, quase um espectador passivo de sua própria vida sem sentido. Ele é o protótipo do homem fracassado, cuja profissão é humilhante para sua família burguesa. Em casa, ele agride a esposa e despreza a filha única.  

O comerciante das quatro estações surgiu após Fassbinder ficar fascinado pelo cinema de Douglas Sirk. As referências ao melodrama são claras durante a trama, com o protagonista entregando-se ao sofrimento sem possibilidades de redenção, caminhando de forma irreversível para um abrupto ato final, quando bebe atá a morte sob os olhares dos amigos. Fassbinder não poupa o espectador, filmando o ato de forma seca, quase como se fosse natural o auto sacrifício do personagem. Preste atenção no final pós morte, no comportamento indiferente, frio e desprezível da família de Hans, da esposa e de seu amante. 

O comerciante das quatro estações (Handler der vier jahreszeiten, Alemanha, 1971), de Rainer Werner Fassbinder. Com Hans Hirschmüller, (Hans Epp) Irm Hermann (Irmgard Epp), Hanna Schygulla (Anna Epp). 

Alemanha no outono

Em 1977, a Alemanha foi abalada por uma série de acontecimentos políticos de caráter violento, extremista: o sequestro e assassinato de Hann-Martin Schleyer, presidente da Confederação de Empregadores da Alemanha Ocidentel; o sequestro do avião da Lufthansa; o suicídio na prisão de três membros da RAF – Fração do Exército Vermelho. 

Em Alemanha no outono, onze aclamados cineastas, integrantes do Novo Cinema Alemão, se debruçaram sobre o clima terrorista que se instaurou no país, debatendo as questões da extrema direita e da extrema esquerda. O filme foi realizado em estilo episódico, curtas-metragens ligados pelo tema comum que ficou conhecido como Outono alemão. Destaque para o primeiro episódio, escrito, dirigido e interpretado por Rainer Werner Fassbinder, no qual ele se expõe de forma visceral, desnudando-se diante da câmera física e ideologicamente.

“Quando nos reunimos, no início, um dos motivos que nos levaram a concluir pela necessidade de fazer o filme era enfrentar o medo. Era necessário que as pessoas que não tinham nenhum meio de produção e estavam, talvez, ainda mais amedrontadas do que nós, não se deixassem intimidar pelo sentimento que reinava então na Alemanha, de que a crítica era inoportuna em qualquer de suas manifestações e deveria ser calada.” – Fassbinder (Plano Critico)

Alemanha no outono (Deutschland im herbst, Alemanha, 1978), de Rainer Werner Fassbinder, Alf Brustellin, Alexander Kluge, Maximiliane Mainka, Beate Mainka-Jellinghaus, Peter Schubert, Bernhard Sinkel, Hans Peter Cloos, Edgar Reitz, Katja Rupé, Volker Schlöndorff.

O desespero de Veronika Voss

Fassbinder conquistou o Urso de Ouro em Berlim com seu penúltimo filme, três meses antes de sua morte. Veronika Voss é uma estrela de sucesso na Alemanha dos anos 50. Ela se torna dependente de drogas e sua carreira entra em decadência. Ela conhece Robert Krohn, num bosque, em uma noite de chuva. A partir daí, Verônica tenta retomar seu lugar no cinema, assim como na própria vida, mas ela se entrega cada vez mais ao vício.

O desespero de Veronika Voss compõe a trilogia de Fassbinder sobre a Alemanha do pós-guerra (os outros são Lola e O casamento de Maria Braun). É um melodrama, gênero que o diretor tanto amou, que aborda as cicatrizes quase incuráveis dessa nação que praticamente se auto destruiu ao assumir o nazismo. Veronika Voss e a Dra. Marianne Katz simbolizam esse país doente, enquanto Robert tenta buscar uma saída para essa degradação generalizada.  

O desespero de Veronika Voss (Die sehnsucht der Veronika Voss, Alemanha, 1982), de Rainer Werner Fassbinder. Com Rosel Zech (Veronika Voss), Hilmar Thate (Robert Krohn), Annemarie Duringer (Mariane Katz).

Num ano de 13 luas

O filme tem uma das sequências mais difíceis de assistir do cinema. Elvira guia Zora por um frigorífico, lembrando de sua antiga profissão, quando ainda era Erwin. O diálogo em off é acompanhado por uma sucessão de bois sendo executados, as cabeças cortadas, sangue jorrando pelo chão, os funcionários descamando as vítimas. Aterrador. 

A narrativa acompanha cerca de trinta dias na vida de Elvira, em 1978, começando quando ela é agredida por um grupo de homens em um parque e, logo depois, sendo abandonada por seu namorado. A reconstituição da vida da protagonista é feita através de longas narrações, entrecortadas por seus encontros com pessoas que marcaram sua vida: sua ex-esposa e filha, sua amiga Zora, Anton Saitz, um antigo amigo que foi decisivo na transformação de Elvira. 

As imagens de Fassbinder beiram o surrealismo, retratando os personagens de forma caricata, com comportamentos entre alegóricos e deprimentes. Num ano de 13 luas foi inspirado no ex-amante de Fassbinder que se suicidou antes da produção do filme. Fique com a narrativa do diretor que abre a película, pontuando o nome e o tema desta obra ousada e polêmica. 

“A cada sete anos chega um Ano da Lua. Aqueles que deixam suas emoções influenciar suas vidas sofrem depressões ainda mais intensas nesses anos. Em menor medida, o mesmo pode ser dito dos anos com 13 luas novas. Quando um Ano da Lua também tem 13 luas, podem acontecer tragédias pessoais inevitáveis. No século XX, essa perigosa constelação ocorre num total de seis vezes. Uma delas em 1978. Antes disso, ocorreu em 1908, 1929, 1943 e 1957. 1992 também será um ano em que as vidas de muitas pessoas estarão ameaçadas.”

Num ano de 13 luas (In einem jahr mit 13 monden, Alemanha, 1978), de Rainer Werner Fassbinder. Com Volker Spengler (Elvira), Ingrid Caven (Zora), Gottfried John (Anton Saitz), Elisabeth Trissenaar (Irene). 

Lola

1957. A jovem e bela Lola é cantora e prostituta em um bordel. Seu amante e protetor é Schuckert, importante construtor da região da Baviera que consegue contratos corrompendo os principais políticos, incluindo o prefeito, frequentador assíduo do cabaré. Esse lucrativo esquema ameaça ser rompido com a chega do honesto Von Bohm para assumir o cargo de Secretário de Obras da cidade. 

Fassbinder, como uma homenagem, faz a releitura do clássico O anjo azul (1930). Após ser ofendida em uma noite por Schuckert, Lola começa um jogo de sedução com Von Bohm, escondendo sua condição. O honesto cidadão se apaixona pela cantora e as reviravoltas da trama incluem a subversão de seus princípios morais e éticos.

O tema do filme é a Alemanha do pós-guerra que busca se reerguer economicamente, tem que reconstruir suas cidades. O bordel é o símbolo político deste tempo, lugar onde todos se vendem, incluindo políticos, empresários, idealistas como o socialista Esslin e os íntegros como Von Bohm. 

Lola (Alemanha, 1981), de Rainer Werner Fassbinder. Com Barbara Sukowa (Lola), Armin Mueller-Stahl (Von Bohm), Mario Adorf (Schuckert), Mathias Fuchs (Esslin).