
Dodeskaden – O caminho da vida (Dodeskaden, Japão, 1970), de Akira Kurosawa.
Depois que realizou O barba ruiva (1955), Akira Kurosawa ficou cinco anos sem filmar. Nesse período, ele passou por crises pessoais e profissionais. Em 1966, Kurosawa anunciou seu próximo projeto, um ambicioso filme cuja narrativa se passa em um trem desgovernado cortando parte dos EUA. Expresso para o inferno seria seu primeiro filme colorido, filmado no formato de 70 mm. No entanto, os produtores americanos recusaram e exigiram que o filme fosse em preto e branco. Essas e outras divergências de orçamento impediram a produção da obra.
Em 1967, Kurosawa assumiu a direção do filme Tora! Tora!, outro projeto de grande orçamento. A narrativa descreveria o ataque a Pearl Harbour sob dois pontos de vista: dos americanos e dos japoneses. O filme japonês ficaria por conta de Kurosawa. Após o processo de produção, com a construção, inclusive, de uma réplica em tamanho real de um porta-aviões, Kurosawa foi demitido pelos produtores, por “não concordarem com seus métodos de filmagem”.
Rumores e boatos se espalharam dizendo, entre outras coisas, que o diretor não tinha consideração pelos papeis secundários e pelos figurantes, mas estendia o tapete vermelho para as estrelas. A turbulência em torno do projeto teve impacto mundial, colocando Kurosawa em uma posição de desconfiança e descrédito diante da comunidade cinematográfica, principalmente dos produtores.
A pressão sob Kurosawa era intensa, para realizar um novo filme, em 1969, a exigência era que ele trabalhasse com baixo orçamento e dentro do cronograma estipulado. A pré-produção de Dodeskaden previu um cronograma de 44 dias de filmagem, mas Kurosawa terminou com 28 dias apenas. Foi o primeiro filme colorido da carreira de Akira Kurosawa.
A narrativa se passa toda em uma favela de Tóquio. O cenário é composto por casebres miseráveis e uma trilha cortando o terreno, rodeada por lixo e escombros. Nesse ambiente de miséria social e econômica, convivem um pai e filho que moram em um carro – o pai sonha em ser arquiteto; uma moça abusada pelo tio; um senhor solitário que tenta ajudar a todos os outros; dois amigos alcoólatras que acabam trocando de casa e de mulheres; um adolescente que imagina ser um condutor de bonde e corta a trilha simulando sua profissão, imitando as imagens e os sons do bonde em movimento. Dodeskaden é uma onomatopeia que o jovem grita durante o trajeto do bonde imaginário.
“Muitas coisas aconteceram com ele após Tora! Tora!. Várias pessoas o apoiaram. Não me lembro mais o que ele disse, mas era uma ideia que sempre lhe servia: ‘Você tem que ser um pouco estúpido para esquecer tudo o que aconteceu. Preciso esquecer. Preciso esquecer tudo.’ Kurosawa me dizia que essas palavras o ajudavam. Isso foi muito útil em ajudá-lo a recuperar a serenidade. Na minha opinião, o personagem principal de Dodeskaden, o doido do bonde, é um doido do cinema. Roku é Kurosawa. Comparado aos outros filmes de Kurosawa, em Dodeskaden ele não foi tão autoritário. Depois de passar por um período de dificuldade pessoal, gravar esse filme permitiu que ele recuperasse a confiança em si. O filme é o reflexo de seu estado psicológico na época. Roku é Kurosawa.” – Teruyo Nogami, continuísta
O ator Yoshitaka Zushi tinha 15 anos de idade quando interpretou Roku. Ele lembra da emoção de Kurosawa no primeiro dia de filmagem. “Apesar de todas as dificuldades, ele voltara a filmar. Lembro-me ainda da sua voz ao dizer ‘Ação’ na primeira cena a ser filmada. Era possível sentir sua alegria em fazer filmes de novo. Finalmente um pouco de alegria e prazer depois de tantos problemas. Essa lembrança ainda me emociona. Sua voz não era a mesma. Nunca o tinha ouvido com uma voz tão trêmula.”
De acordo com membros da equipe, Kurosawa se sentia como uma criança no set. Ele incentivava as pessoas a pintarem sol, estrelas, noite e lua no cenário que eram utilizados nas filmagens. O próprio Kurosawa passava, por vezes, um bom tempo pintando os cenários. As cores foram basicamente um experimento, os barracões eram demarcados pelo amarelo e vermelho vivos, assim como toalhas, tigelas e outros objetos de cena.
Outra ousadia de Kurosawa foi filmar uma briga entre quatro amigos, formada por muitos movimentos e diálogos, em um plano sequência de dez minutos. Essa cena teve que ser refeita por cerca de vinte vezes até alcançar o resultado desejado pelo diretor.
Dodeskaden não foi bem recebido nem pelo público e nem pela crítica. Com o tempo, se tornou um filme referencial, principalmente pela experimentação no uso das cores. E deve ser saudado sempre como o filme que trouxe de volta Akira Kurosawa, um dos grandes mestres do cinema que, na época com 60 anos de idade, se mostrou como sempre foi: uma criança apaixonada pelo cinema, como ele mesmo dizia: “O trem dos sonhos”.
Referência: As obras-primas. Documentário sobre Dodeskaden. DVD O cinema de Kurosawa 3. Versátil.








