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Sobre Robertson B. Mayrink

Publicitário, jornalista, especialista em língua portuguesa, mestre em cinema pela EBA/UFMG. Professor de cinema e de criação publicitária. Coordenador do curso de Cinema e Audiovisual da PUC Minas. Coordenador do curso de Publicidade e Propaganda da PUC Minas. Coordenador da especialização em Roteiro para Cinema e TV do IEC PUC Minas.

Milagre em Milão. Entre a realidade e a fantasia

Cesare Zavattini foi um dos grandes roteiristas e teóricos do neorrealismo italiano. Importante filmes do movimento contaram com a colaboração de Zavattini na autoria e escrita: Roma, cidade aberta (1946), Vítimas da tormenta (1946), Ladrões de bicicleta (1948), Belíssima (1951), Umberto D (1952), O teto (1956).

Sua colaboração mais prolífica foi com o diretor Vittorio De Sica, com quem dividiu ideias, créditos e polêmicas (que nunca prejudicaram a amizade entre estes dois mestres do cinema). Zavattini declarou em determinados momentos que ficou ressentido pelo fato de, nas entrevistas, Vittorio De Sica, levar o crédito total de obras-primas do cinema. “95% do roteiro de Ladrões de bicicleta fui em quem escreveu. Você ajudou, mas o trabalho foi meu. Quero que reconheça isso.” – disse Zarattini ao amigo.

Os créditos do filme apontam seis roteiristas no trabalho e o nome de Zavattini aparece por último. Ladrões de bicicleta foi baseado no romance de Barolini e adaptado por Cesare Zavattini. “O roteiro é meu. Os outros não fizeram praticamente nada. Meu nome aparece por último.” 

A determinação dos nomes dos roteiristas nos créditos sempre levantou polêmicas, basta citar a mais famosa: Orson Welles assinando Cidadão Kane (1941) junto com Joseph Mankiewicz (e conquistando o Oscar de Melhor Roteiro). Mankiewicz também acusou Wells de receber os créditos e o Oscar por um roteiro que não escreveu. 

O fato é que, mesmo depois da obra escrita, outros roteiristas são convidados pelos produtores e diretores para reescrever cenas, diálogos; mesmo que a participação seja pequena, acabam aparecendo nos créditos. Outra prática comum no cinema é o diretor reescrever partes do roteiro, antes e durante as filmagens, assim, muitos se sentem no direito de assinar como roteiristas.  

Chegamos a Milagre em Milão (Miracolo a Milano, Itália, 1951), de Vittorio De Sica. Segundo o crítico e historiador Dávid Forgács, Zavattini teve a ideia desse filme nos anos 30. “É uma história mais típica de Zavattini intelectualmente. A ideia de Zavattini era fazer um filme chamado Totó il buono. Ele até escreveu uma versão dessa história que foi publicada numa revista de cinema em 1940. O astro do filme seria Totó, um comediante napolitano e ator muito famoso na época. Mas o filme não foi feito, então Zavattini publicou o livro Totò il bueno em 1943. É basicamente a história de Milagre em Milão.”

O historiador relata que Vittorio De Sica pediu a Cesare Zavattini para escrever o roteiro de seu próprio livro logo após concluírem Ladrões de bicicleta como uma forma de compensar o roteirista pelos seus ressentimentos. A narrativa segue a jornada de Totó que, quando bebê, foi encontrado em uma plantação de repolhos (referência ao clássico curta de Alice Guy-Blaché de 1896: uma mulher recolhe bebês de uma plantação de repolhos). 

Quando sua mãe adotiva morre, Totó, com cerca de cinco anos, vai para um orfanato, onde fica até completar 18 anos. Pobre, sem profissão, Totó perambula pelas ruas e sua maleta é roubada por um mendigo. A perseguição, tentando recuperar a maleta, leva o protagonista a um terreno baldio nos arredores da cidade, habitado por desempregados e sem-tetos. 

Nessa primeira parte, o neorrealismo italiano mostra suas marcas: cenas filmadas em locações, atores não-profissionais, a realidade cruel dos desempregados italianos, abandonados pelo governo, condenados a viver em guetos e favelas. O jovem e ingênuo Totó, de uma bondade contagiante, se torna líder dos moradores e a favela cresce. No entanto, o terreno é adquirido por uma imobiliária que tenta despejar os moradores para construir um grande empreendimento no local. 

A segunda parte do filme, quando Totó lidera a revolução dos moradores, apresenta ao espectador o universo surrealista: Totó ganha, do espírito de sua mãe, uma pomba mágica que tem o poder de realizar os desejos das pessoas. Dois anjos tentam a todo custo recuperar a pomba, pois o ingênuo Totó concede vários desejos aos pobres moradores, que vêem seus sonhos conquistados num piscar de olhos – atenção para a estátua da bailarina que começa a dançar após um dos moradores, apaixonado pela imagem, pedir que ela ganhe vida. 

Milagre em Milão levantou questões dentro do movimento neorrealista, pois o filme foi considerado uma fantasia. “Quando o filme foi lançado, foi criticado tanto pela direita quanto pela esquerda. A esquerda disse que o filme não era incisivo o bastante. Queriam que De Sica e Zavattini escrevessem mais filmes como Ladrões de bicicleta. Na direita, críticos conservadores não gostaram de ver a burguesia sendo retratada como capitalistas e também ficaram ofendidos com como Milão é mostrada: um local de pobres e esfarrapados. Queriam mostrar que a Itália estava sendo reconstruída.” – Dávid Forgács

O poeta Carlos Drummond de Andrade viu o filme no cinema na década de 50 e escreveu: “Milagre em Milão é dessas raras obras de arte no gênero, concebidas de dez em dez anos, que têm o condão de fascinar gente de todas as classes, gostos e formações. (…) No primeiro momento, ele nos dá vontade de sair pela cidade afora, compelindo os ricos a amar os pobres, e dando aos pobres a alegria de se sentirem iguais aos ricos; operação tanto mais divertida quanto variam ao infinito as concepções de riqueza, e determinado pobre, por exemplo se regalará com possuir uma boa mala, outra um vestido de baile, e assim por diante; há tantos ricos quantas frustrações pessoais, apenas a pobreza e uma só, nivelada e niveladora.”

A alegórica cena final é um dos grandes momentos do cinema que se permite transitar entre a realidade nua e crua e a fantasia surrealista, plena de simbolismos e esperança. Os moradores da favela estão sendo levados para a prisão em vários carros. Totó recupera a pomba e, em frente a famosa Catedral de Milão, os tetos dos carros se abrem e os presos correm pela praça, onde faxineiros limpam a sujeira. Totó pega uma vassoura, senta-se nela junto com sua amada e voa, como a bruxa de O Mágico de Oz (1939). Todos os desabrigados fazem o mesmo; pegam as vassouras dos faxineiros e, em uma imensa fila, seguem Totó pelos céus de Milão, rumo ao horizonte, entoando a canção tema: “Tudo o que precisamos é de um barraco para viver e dormir. Tudo o que precisamos é de um pedaço de chão para viver e morrer. Tudo o que pedimos é um par de sapatos, umas meias e um pouco de pão. É tudo o que precisamos para crer no amanhã. Existe um reino onde bom dia quer dizer realmente bom dia. É tudo o que precisamos para crer no amanhã.” Neorrealismo puro e poético. 

Elenco:  Francesco Golisano (Totó), Emma Gramatica (mãe de Totó), Paolo Stoppa (Rappi) , Guglielmo Barnabò (Mobbi), Brunella Bobo (Edvige), Alba Arnova (a estátua). 

Referências: 

Extras do DVD Neorrealismo italiano. Seis clássicos do movimento. Versátil Home Vídeo:

O cinema de perto: prosa e poesia. Carlos Drummond de Andrade. Organização Pedro Augusto Grana Drummond. Rio de Janeiro: Record, 2024.

O homem do braço de ouro

O homem do braço de ouro (The man with golden arm, EUA, 1955), de Otto Preminger. 

Frankie Machine (Frank Sinatra) sai da prisão e retorna ao bairro onde ganhava a vida como crupiê e se viciou no consumo de heroína. Durante a reabilitação, ele aprendeu a tocar bateria e pretende se tornar músico profissional, mas o traficante e seus antigos comparsas no jogo o espreitam minuto a minuto, provocando a inevitável volta ao submundo das drogas e das jogatinas. 

O diretor Otto Preminger enfrentou o Código Hays na abordagem de um tema “proibido” pelos censores: o vício em drogas. As cenas explícitas de Frank injetando heroína na veia e a sequência em que está preso em um pequeno quarto, sofrendo com a crise de abstinência, apresentam a cruel realidade desta doença.

O filme, totalmente rodado em estúdio, traz as características do cinema noir, incluindo uma inusitada femme fatale: Zosch (Eleanor Parker), esposa de Franckie, que finge estar presa a uma cadeira de rodas após um acidente de carro, e praticamente força o marido a desistir da carreira de músico e voltar para a profissão de crupiê. Molly (Kim Novak) é a única esperança neste mundo habitado pela marginalidade. 

O homem do braço de ouro é famoso na história do cinema por três aspectos: os inovadores créditos de Saul Bass, durante a abertura; a música de Elmer Bernstein – indicada ao Oscar; uma das melhores atuações de Frank Sinatra – também indicado ao Oscar. 

Elenco: Frank Sinatra (Frankie Machine), Kim Novak (Molly), Eleanor Parker (Zosch Machine), Arnold Stang (Sparrow), Darren McGavin (Louie), Robert Straus (Schwiekfa). 

O mistério do número 17

O mistério do número 17 (Number 17, Inglaterra, 1932), de Alfred Hitchcock.

Em apenas uma noite, uma profusão de personagens entra em uma casa abandonada onde um corpo é encontrado. A relação entre os personagens é um diamante, possivelmente escondido em um dos cômodos. De quem é o corpo? Quem é o assassino? Quem é a enigmática e bela surda-muda? O protagonista é um cidadão comum, um jornalista, um policial?

Hitchcock se referiu a esse filme como um “desastre”. A trama, baseada em uma peça de teatro de J. Jefferson Farjoun, é confusa, com soluções de roteiro simplistas – o subsolo da casa é uma estação de trem para onde os personagens, um deles de posse do diamante, se dirigem para embarcar no trem noturno. 

A segunda parte do filme, quando todos saem da casa, apresenta uma espetacular cena de perseguição de carro ao trem. “É um filme bem curto, um pouquinho mais de uma hora. A primeira parte, que se passa na casa, vem provavelmente da peça. Guardo melhor lembrança da segunda parte, a longa perseguição entre as maquetes de carros e trens, era muito bonita. Nos seus filmes as maquetes são sempre muito bonitas.” – François Truffaut. 

Elenco: Leon M. Lion (Ben), Anne Grey (Nora), John Stuart (Barton), Donald Calthrop (Brant), Barry Jones (Henry Doyle), Ann Casson (Rose Ackroyd), Henry Caine (Mr. Ackroyd), Garry Marsh (Sheldrake). 

Referência: Hitchcock Truffaut. Entrevistas. Edição definitiva. François Truffaut e Helen Scott. São Paulo: Companhia das Letras, 2004

O dia que te conheci

O dia que te conheci (Brasil, 2023).

A narrativa do sensível filme de André Novais Oliveira, da produtora Filmes de Plástico, se passa em pouco mais de 24 horas. Zeca (Renato Novaes) tem dificuldades para acordar devido aos medicamentos contra depressão que faz uso. Chega atrasado mais uma vez no trabalho, ele é bibliotecário de uma escola em Betim. Luísa (Grace Passô) é incumbida de informar ao funcionário que ele está demitido. No fim do dia, Luísa oferece carona a Zeca, pois tem um compromisso em Belo Horizonte. 

A produtora Filmes de Plástico tem notoriedade no cinema independente brasileiro devido às temáticas de seus filmes e ao estilo de filmagens. As locações de O dia que te conheci são as ruas periféricas das cidades. A escola, os bares, os ambientes comerciais, a moradia de Zeca, representam a vida comum das pessoas que lutam no dia a dia pela sobrevivência.

Entre a demissão e uma noite de sexo, o terno encontro entre Zeca e Luisa se desenvolve de forma simples, com direito aos chamados “tempos mortos” (expressão cunhada pelos cineastas clássicos americanos para cortar cenas que não movem a narrativa em termos de conflitos): a longa conversa entre o casal no carro, a caminhada em quase silêncio pelas ruas ao anoitecer, o enquadramento final da padaria em uma esquina do bairro. Lindos, esses “tempos mortos”.

Adorável vagabundo

Adorável vagabundo (Meet John Doe, EUA, 1941), de Frank Capra.

A jornalista Ann Mitchell recebe, logo pela manhã, a notícia de sua demissão do jornal em que trabalha. O diário foi adquirido por um novo proprietário, o milionário D. B. Norton (Edward Arnold), e passará por reestruturações administrativas e editoriais. 

Antes de deixar a redação, Ann escreve e publica na edição do dia uma carta em nome de John Doe (João Ninguém). A carta anuncia o suicídio do autor, em protesto contra a situação do país, assolado por corrupção, desemprego e injustiças sociais (a grande depressão): na véspera do natal, John Doe diz que vai pular do último andar do edíficio onde funciona o jornal. 

O melodrama de Frank Capra aborda um tema importante na carreira do diretor: as condições de vida precárias do cidadão comum, atingido pela situação econômica e política dos EUA. O diretor tece ainda uma crítica contundente à mídia que se aproveita dessas mazelas para “vender” notícias.

A carta causa uma comoção nacional e Ann convence o novo proprietário do jornal a achar entre os milhões de desempregados alguém que personifique John Doe. John Willoughby (Gary Cooper), ex-jogador de beisebol, desempregado e faminto, é o escolhido. Ann é recontradada e fica responsável por escrever reportagens e cartas do falso John Doe – cujo único objetivo é ganhar dinheiro para tratar de sua contusão e voltar para o esporte.

Assim como em A montanha dos sete abutres (1951), de Billy Wilder, “os abutres”, expressão usada pelo Coronel (Walter Brennan), se juntam ao redor de John Doe, todos em busca de vantagens. A reviravolta acontece quando D. B. Norton resolve se beneficiar politicamente da farsa. 

O final, no alto do edifício, é um primor de enquadramento, demonstrando a capacidade de narrativa visual dos mestres do cinema clássico americano: John Doe/Willoughby, prestes a saltar para a morte, observa, de um lado, Norton e seus asseclas; do outro, cidadãos que seguiram fielmente suas mensagens de fé e esperança. O olhar triste e amargurado de Willoughby é a expressão dessa sociedade eternamente injusta. 

Elenco: Gary Cooper (John Doe), Barbara Stanwyck (Ann Mitchell), Edward Arnold (D. B. Norton), Walter Brennan (O coronel), James Cleason (Henry Connell).

O clube das mulheres de negócios

A diretora Anna Muylaert diz que O clube das mulheres de negócios (Brasil, 2024), começou a germinar em 2015, logo após o lançamento de Que horas ela volta?. “Era um momento de muita tensão no gênero. Uma pauta que estava inflando. As mulheres estavam falando muito sobre a questão de visibilidade, de estarem em certa situação e não receberem o crédito. Percorri vários festivais nos Estados Unidos e na Europa com Que horas ela volta? e percebi que tratava-se de uma questão mundial mesmo. Daí, pensei em fazer um filme de inversão de gênero, pensando que, por meio da diferença de corpo, talvez fosse possível perceber melhor certas atitudes (que, no correr do tempo, acabaram sendo normalizadas).”

A trama acompanha o fotógrafo Jongo e o jovem jornalista Candinho, designados para cobrir um evento que acontece no Clube de Negócios das Mulheres. O clube é administrado por Cesárea, avó de Candinho, e as sócias são mulheres influentes em diversas áreas: negócios, política, entretenimento, entre outras. 

O comportamento das mulheres dentro do clube reflete fortes esquemas de corrupção, assédio sexual, apologia ao uso de armas, orgias sexuais, adultério – os maridos são retratados como meros artífices caseiros. 

Toda essa alegoria social e política é demarcada por cenas que transitam do humor à violência e ao puro horror (quando três onças se libertam das jaulas e passam a perseguir os frequentadores). A narrativa abre espaço para cada uma das mulheres (elenco estelar) que revelam as diversas facetas de nossa sociedade patriarcal, misógina, dominada pelos homens que agem a seu bel-prazer. Atenção para a sensível cena das bicicletas no final do filme. 

Elenco: Com Rafael Vitti (Candinho), Luis Miranda (Jongo), Cristina Pereira (Cesárea), Irene Ravache (Norma), Louise Cardoso (Brasília), Grace Gianoukas (Yolanda). 

Referência: Culturadoria

Estômago II: o poderoso chef

Estômago II: o poderoso chef (Brasil, 2024), de Marcos Jorge. 

O filme abre com Don Caroglio em pé na ponta de uma grande mesa. Os convidados, todos homens, estão sentados diante de diversos pratos ainda encobertos. À medida que abre cada prato, Don Caroglio discursa sobre o poder dos alimentos e dos homens, até que pára atrás de um dos convidados e o estrangula até a morte. 

Corta para cena de Raimundo Nonato, o Alecrim, preparando alimentos na cela da prisão. Com pratos nas mãos, Alecrim caminha pelos corredores para servir aos dois mandatários do presídio: o diretor da prisão e Etcétera, líder dos presos. A harmonia dentro do presídio, administrada pelos dois, vai ser quebrada com a chegada de Don Caroglio, líder da máfia siciliana preso no Brasil. 

Estômago II narra duas tramas paralelas que se cruzam no presídio. Flashbacks contam a história do italiano Roberto, ator e cozinheiro, apaixonado por Valentina, filha de um mafioso. O espectador acompanha a transformação de Roberto no poderoso e violento Don Caroglio. No presídio, a trama segue a violenta relação entre Don Caroglio e Etcetera pela disputa do poder, com Alecrim, cozinhando para os dois lados, funcionando como uma espécie de conselheiro. 

O filme foi realizado no esquema de coprodução, contando com intérpretes brasileiros e italianos, assim como cenas gravadas nos dois países. O destaque da trama é a ascensão do pacato e apaixonado Roberto em um bandido capaz de explodir seu próprio restaurante e dizimar uma família inteira de mafiosos. Alecrim, com participação menor do que na obra original, dá o tom humorístico da película. 

Elenco: João Miguel (Raimundo Nonato), Nicola Siri (Roberto/Dom Caroglio). Violante Placido (Valentina Galante), Paulo Miklos (Etcétera), Giulio Beranek (Salvatore Galante). 

Ricos e estranhos

Ricos e estranhos (Rich and strange, Inglaterra, 1931), de Alfred Hitchcock, tem uma sequência famosa que demonstra o que o cinema se tornou nas mãos dos conservadores políticos, produtores e outros membros da sociedade com poder.

“Havia uma cena do rapaz tomando banho de piscina com a moça. Ela lhe diz: ‘Aposto que você não consegue passar nadando entre minhas pernas.’, e fica de pé dentro da piscina, com as pernas afastadas. A câmera fica debaixo d’água quando o rapaz mergulha e se prepara para passar entre as pernas afastadas; de repente, ela fecha as pernas, prendendo a cabeça do rapaz, e vemos bolhas saindo de sua boca. Finalmente ela o solta e, sem fôlego, ele volta à tona e diz: ‘Dessa vez, você quase me matou’, e ela responde: ‘Não teria sido uma morte maravilhosa?’. Acho que hoje já não se poderia mostrar isso, por causa da censura.” – Alfred Hitchcock

A primeira versão, exibida nos cinemas, continha essa cena, que se perdeu, pois ela foi cortada posteriormente e nunca mais exibida. O rapaz da piscina é Fred Hill, casado com Emily. Eles vivem precariamente em Londres, até que Henry ganha um dinheiro de seu tio rico. Decididos a aproveitar a vida, o casal embarca em um cruzeiro luxuoso. Na jornada, Henry se apaixona pela Princesa (a garota da piscina) e Emily por Gordon, capitão do navio. 

A infidelidade é aceita e consentida tanto por Fred como por Emily (é um filme de Hitchcock, sempre é bom lembrar), até que reviravoltas voltam a unir o casal que se vê sem dinheiro e passam por verdadeiras aventuras na tentativa de voltar para casa: o naufrágio de um navio, o resgate por piratas chineses (atenção para a cena de Henry e Emily, esfomeados, comendo “a melhor refeição que já provaram”).  

O filme não foi bem recebido nem pelo público e nem pela crítica, afinal, era o começo da década de 30, quando os fascistas, nazistas e demais poderosos implantaram seus rígidos códigos morais e conservadores, tentando destruir qualquer alusão nas artes às “imoralidades”. O “imoral” Hitchcock seria mais perturbador ainda se tivesse conseguido filmar outra cena que planejou. 

O jovem casal está em um bordel em Paris, onde dançarinas apresentam a música do ventre. Emily olha para o umbigo de uma das dançarinas que gira diante de seus olhos; o foco alterna entre o olhar de Emily e o umbigo até que uma fusão em espiral encerra a cena. 

Elenco: Henry Kendall (Fred Hill), Joan Barry (Emily Hill), Percy Marmont (Comandante Gordon), Betty Amann (A princesa), Elsie Randolph (Miss Emory).

Referência: Referência: Hitchcock Truffaut. Entrevistas. Edição definitiva. François Truffaut e Helen Scott. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.

A cabra

A cabra (The goat, EUA, 1921), de Buster Keaton e Malcolm St. Clair.

O plot twist do filme é o típico acaso que movimentou as comédias do cinema mudo. Buster Keaton passa em frente a janela de uma cadeia. Ela pára e olha para dentro, no momento em que um presidiário está sendo fotografado. Um erro de foco enquadra Buster Keaton por trás das grades da janela e não o criminoso. Quando o criminoso foge, cartazes são espalhados pela cidade com a foto de Buster Keaton e a inscrição: “Procurado vivo ou morto.” O título do filme, “the goat”, faz alusão a uma gíria utilizada quando alguém se tornava o bode expiatório.  

A partir dessa solução visual, o pobre e maltrapilho personagem perambula pelas ruas da cidade provocando uma série de mal entendidos que resultam em algumas das gags mais divertidas da era das comédias mudas. A todo momento ele é identificado como o criminoso foragido e, sem entender nada, começa a ser perseguido, primeiro por três policiais, em uma série de encontros e desencontros hilários; depois, pelo chefe de polícia local – mais uma vez, a genialidade de Buster Keaton em trabalhar com esses acasos do cotidiano, rende um dos finais mais engraçados destes adoráveis filmes curtos.

O solar dos prazeres noturnos

O solar dos prazeres noturnos (Brasil, 2024), de Matheus Marchetti. 

O filme abre com plano fechado em Rodrigo Escher (Bruno Germano) pintando um retrato. O modelo é um jovem jornalista, interessado em escrever uma história sobre Rodrigo, ex-ator mirim de sucesso que abandonou a profissão após um surto psicótico no set de um dos programas.

O próprio Rodrigo conta sua história, assumindo seus problemas psicológicos como uma herança da família. Seus antepassados foram sádicos assassinos, sua mãe sofre com delírios e alucinações, assim como sua irmã. Todos vivem enclausurados em uma suntuosa casa, onde os surtos se convertem em pesadelos de filmes de horror. 

Referências a contos de Edgar Allan Poe compõem a narrativa. As cenas de sadismo remetem ao universo sedutor dessa histórias do gênero, mesclando sangue e sexo em ousadas cenas do universo LGBTQ+. O final em aberto é outra demonstração que o cinema brasileiro contemporâneo assumiu as convenções estéticas e narrativas do gênero, com a ousadia erótica que marca nosso cinema desde a pornochanchada e o terrir de Ivan Cardoso e José Mojica Marins. 

Elenco: Com Bruno Germano, Anna Preto, Tuna Dwek, Natan Cardoso,Natt Mazzoni, Vinícius Précoma.