A tortura do medo

O filme quase acabou com a carreira do influente Michael Powell (Sapatinhos vermelhos). A crítica e a sociedade não aceitaram o tema e o tratamento visual ousado: através do ponto de vista subjetivo, o espectador se vê diante do terror. 

Lewis Mark é um cameraman assistente em um estúdio de cinema. Logo na primeira sequência, o espectador acompanha, pela lente de sua câmera cinematográfica, o assassinato de uma prostituta. Na abertura, Michael Powell apresenta um psicopata que filma seus assassinatos. Desejos sexuais, traumas de infância, a incontrolável ânsia de matar, cena a cena Mark revela sua mente atormentada, com uma surpresa nos momentos finais. Martin Scorsese declarou que A tortura do medo é “um dos grandes filmes sobre cinema.”

“Talvez tenham sido as motivações ambíguas do personagem que afastaram as plateias, ou talvez o fato de que um diretor tão querido quanto Powell tivesse voltado seus olhos para um tema tão sinistro e surpreendente. Mas também poderia ter sido o fato de que está sutilmente implícito que o espectador, um colega voyeur, é de certa forma um cúmplice de Mark em seus feitos mortíferos, ao se sentir atraído por suas atrocidades perversas e por estar, de certa forma, permitindo que aconteçam.”

A tortura do medo (Peping Tom, Inglaterra, 1960), de Michael Powell. Com Karlheinz Bohm (Mark Lewis), Anna Massey (Helen Stephens), Moira Shearer (Vivian), Maxine Audley (Mrs Stephens). 

Referência: 1001 filmes para ver antes de morrer. Steven Jay Schneider. Rio de Janeiro: Sextante, 2008.

A um passo da liberdade

O filme começa com um mecânico debruçado sobre o motor do carro. Ele se volta para a câmera e diz: “Olá. Meu amigo Jacques Becker recriou uma história verdadeira em todos os seus detalhes. Minha história. Ela se passou em 1947, na prisão de La Santé.” 

A um passo da liberdade é o último filme do diretor Jacque Becker. Ele esteve doente durante toda a produção e montagem do filme e faleceu antes da mixagem do som, aos 53 anos de idade. É baseado na história real de José Giovani, que também colaborou no roteiro. 

Giovani e outros quatro detentos planejam uma fuga do presídio de La Santé quando são surpreendidos com a transferência de outro detento, Claude Gaspard, para a cela deles. Os quatro amigos precisam decidir se levam o plano adiante, incluindo Gaspard na tentativa de fuga. 

Todos os atores do filme são amadores, um deles foi inclusive um dos detentos na vida real. É um filme de planos longos, evidenciando o cotidiano claustrofóbico dos cinco detentos cuja única opção é confiar uns nos outros enquanto dividem o lento processo de escavar paredes. Uma cena de quatro minutos de duração mostra os amigos batendo com um objeto na pedra quase intransponível, enfatizando a luta pela liberdade. 

“Nosso envolvimento é intensificado, também, por compartilharmos, de forma desconfortável e jamais plena, do ponto de vista de Gaspard (Marc Michel), um prisioneiro que, transferido de outra cela, aparece de surpresa entre os fugitivos originais. Sua chegada força os demais a decidirem se devem desistir do plano ou confiar no estranho. Embora escolham a última opção, Gaspard jamais se integra plenamente ao grupo: ele não é excluído apenas por conta de sua educação e maneiras, mas também, de maneira sutil, pelo fato de que somos informados apenas dos detalhes do seu caso. A tensão que sua presença gera dá ao filme seu principal atrativo psicológico e, no impressionante desfecho, lhe permite atingir uma dimensão trágica.”

Depois da morte de Becker, o produtor do filme cortou cerca de 30 minutos (jamais recuperados) da versão original. A um passo da liberdade consagrou-se, mesmo com esse crime perpetrado pelo produtor, como uma obra-prima. 

A um passo da liberdade (Le trou, 1960, França, ), de Jacques Becker. Com Michel Constantin (Geo), Jean Keraudy (Roland), Philippe Leroy (Manu), Raymond Meunier (Monsenhor), Mark Michel (Gaspard).

 
Referência: 1001 filmes para ver antes de morrer. Steven Jay Schneider. Rio de Janeiro: Sextante, 2008.

Atirem no pianista

François Truffaut disse que não se sentiu confortável com a história de Atirem no pianista, pois descobriu, durante o processo, que detestava filmes de gângsteres. Sua opção, para fugir dos clichês tradicionais do gênero, foi dosar a narrativa com humor, quase um pastiche.  O diretor francês declara um dos principais motivos para realizar seu primeiro filme noir:

“Fui profundamente influenciado pelo cinema americano e eu queria demonstrar minha gratidão. Atirem no pianista contém muitos temas que admiro em filmes americanos: uma mulher que se joga pela janela, um homem que foi famoso e hoje está totalmente esquecido. Havia o clima, a música, o piano. Eu gostava muito de tudo isso.”

Truffaut leu o livro de David Goodis em 1957, logo após de escrever o roteiro de O acossado, filmado por Godard em 1959. A adaptação foi seu segundo filme, após Os Incompreendidos (1959). A narrativa começa com um homem sendo perseguido nas ruas de Paris. Ele entra em um bar, onde encontra seu irmão Charlie, o pianista do local. Charlie foi um famoso pianista que abandonou a profissão após uma tragédia em seu casamento. O encontro com o irmão o coloca no caminho de dois gângsteres, plot para uma série de acontecimentos ora bem humorados, ora trágicos. 

Atirem no pianista incorpora uma das principais marcas da nouvelle vague, a mistura de gêneros. É comédia, filme de detetive, drama, melodrama e romance. A película estreou em 1960 e foi um fracasso de bilheteria, no entanto, com o tempo, se tornou cult, principalmente nos EUA. 

Atirem no pianista (Tirez sur le pianiste, França, 1960), de François Truffaut. Com Charles Aznavour (Charlie), Marie Dubois (Lena), Nicole Berger (Thérèse), Michèle Mercier (Clarisse).

A negra de…

Um casal de franceses contrata Diouana, em Dakar, para trabalhar como babá de seus três filhos pequenos. Ela é escolhida nas ruas da cidade, onde outras mulheres estão à procura de emprego. Quando chega na casa de seus patrões, no sul da França, Diouana é surpreendida com novas funções: ela trabalha como empregada doméstica, fazendo faxina, cozinhando…

O primeiro longa do premiado diretor Ousmane Sembène é um relato cruel da exploração trabalhista, do racismo. Diouana aceita o emprego sonhando em conhecer a França, em melhorar de vida, mas começa a ser tratada praticamente como uma escrava, sem direito sequer a sair de casa. Seu trágico gesto final, após revoltar-se, é um protesto que deveria ecoar fundo na consciência de todos que, mesmo décadas após o fim da escravidão, continuam a perpetuar o racismo estrutural.

A negra de… (La noire de…, Senegal, 1966), de Ousmane Sembène. Com Mbissine Thérèse Diop (Diouana), Anne-Marie Jelinek (Madame), Robert Fontaine (Monsieur). 

O carroceiro

Todos os dias, Boron Sarret (Ly Abdoulay) sai para trabalhar como carroceiro nas ruas de Dakar. A narrativa acompanha sua jornada por um dia, pontuada por suas reflexões sobre o trabalho, sobre sua condição de vida, sua família. A disparidade social é expressa em suas andanças, nos passageiros que recebe, na sua trágica falta de sorte neste dia: ele aceita uma corrida para um bairro proibido para carroceiros e tem sua carroça apreendida pela polícia. 

Ly Abdoulay compõe seu personagem com um certo humor misturado a uma desesperançada resignação. A câmera documental registra rua a rua a miséria social de Dakar, de seus habitantes que vivem a luta diária por trocados. 

O carroceiro (Borom sarret, Senegal, 1963), de Ousmane Sembène.

Os amantes da Ponte Mac Donald

Este curta-metragem mudo, na verdade um mini filme de cerca de quatro minutos de duração, foi inserido no longa Cléo das 5 às 7. É uma grande homenagem aos primórdios do cinema e conta com uma atração à parte: Jean-Luc Godard como protagonista, ainda sem seus marcantes óculos escuros. 

A narrativa segue uma aventura burlesca às margens do Sena, Godard e Anna Karina interpretam um casal que se despede na ponte e um pequeno acidente acontece, de forma repetida, quando a jovem enamorada está de saída. A fotografia em preto e branco, montagem acelerada, interpretações caricatas, é puro cinema mudo, com certeza uma divertida experimentação para os jovens da nouvelle-vague francesa.  

Os amantes da Ponte Mac Donald (Les fiancés du Pont Mac Donald, França, 1961), de Agnès Varda. Com Jean-Luc Godard e Anna Karina.

Andrei Rublev

Andrei Tarkovski se debruçou na biografia do famoso pintor de ícones russos, que viveu na Idade Média, para construir uma narrativa poderosa, que dialoga com o passado e o presente vivido pelo cineasta na então União Soviética. 

A narrativa é dividida em oito capítulos. O prólogo, desconectado da vida de Andrei Rublev, mostra um indivíduo tentando voar em um balão. Tarkovski prepara o leitor para a história que começará, pois o esforço sobrehumano na tentativa do voo é formado por imagens que misturam os mais belos sonhos, seguidas do pesadelo da queda e morte. 

Após o prólogo, começa a história de Rublev. Ele é escolhido para criar os afrescos de uma catedral. Durante a viagem, ele presencia a inacreditável violência que impera na Rússia medieval. Ao salvar uma jovem prestes a ser estuprada, Rublev mata o agressor e, como autopunição, se impõe ao silêncio durante anos. A jornada termina com o episódio mais espetacular: ele acompanha a construção de um sino gigantesco por um jovem que, descobre-se depois, não sabia como fazê-lo. 

“Andrei Rublev destoa de todas as vidas de artista já levadas ao cinema. No lugar da habitual progressão dramática e das cenas que tentam dar concretude à ideia de genialidade mostrando a criação de uma obra, Tarkovski escolheu mostrar o personagem vagando em meio a horrores, testemunhando perseguições, dominações e crueldades e, como reação, renegando seu talento para a alcançar a beleza.” – Cássio Starling Carlos

A analogia entre passado e presente encontra ressonância no começo da carreira de Tarkovski. O cineasta realizou seu primeiro longa, A infância de Ivan (1962), em processo de rígido controle dos dirigentes do cinema soviético. Enfrentou, como Rublev, uma jornada marcada pela tentativa de impor sua visão pessoal sobre a arte. A repressão à arte na União Soviética foi retratada simbolicamente na trajetória de crueldades vividas por Andrei Rublev. 

“Quando concluiu Andrei Rublev (1966) a era do degelo já havia sido substituída pela era da estagnação, fase em que o regime soviético se fecha num conservadorismo que inviabiliza a liberdade de expressão esboçada no início da década. Depois de pronto, o filme foi taxado de ‘sombrio’, ‘violento’ e ‘pessimista’, portanto, inadequado ao espírito festivo dos 50 anos da Revolução de 1917 e ficou censurado até 1971.” – Cássio Starling Carlos. 

Andrei Rublev (Rússia, 1966), de Andrei Tarkovski. Com Anatoly Solonitsyn (Andrei Rublev), Ivan Lapikov (Kirill), Nikolay Sergeyev (Theophanes), Mikhail Koronov (Foma), Irina Tarkovskaya (Durochka). 

Referência: Andrei Tarkovski. Andrei Rublev. Coleção Folha Grandes Diretores no Cinema. Cássio Starling Carlos e Pedro Maciel Guimarães. São Paulo: Folha de S. Paulo, 2018.

Ó sol

O filme abre com nove homens negros com semblantes sérios, braços cruzados, olhando para a câmera. Narração em off: “Somos nós, os africanos, que viemos de longe. Já tínhamos nossa própria civilização. Forjávamos o ferro. Tínhamos nossas danças e canções populares. E éramos muito bons em esculpir madeira e modelar o ferro, em fiar algodão e lã, na tecelagem e cestaria. Nosso comércio não era só permuta. Tínhamos moedas de ouro e prato. Tínhamos cerâmica e talheres. Fabricávamos nossas ferramentas e utensílios domésticos, utilizando latão, bronze, marfim, quartzo e granito. Tínhamos nossa própria literatura. Tínhamos nossa terminologia jurídica, nossa religião, nossa ciência, e nossos métodos de ensino.” 

A primeira parte do filme é uma viagem surrealista, com forte teor contestatório. Na sequência seguinte, esses nove homens estão sendo batizados por um padre católico branco. Cada um ganha um nome em francês, após declaração do padre “Ser batizado é fazer parte da igreja e compartilhar a fé cristã”. Após o batismo, cada um pede perdão por falar seu dialeto local. 

As sequências seguintes mostram esses homens em cenas caricaturais, grotescas, transitando pelos campos e ruas da cidade. Marcham como soldados empunhando cruzes de madeira. Em uma analogia fascinante, viram as cruzes que se transformam em espadas. Duelam entre si com a cruz/espada aos olhos de um militar branco. A sucessão de cenas caricaturais termina com todos deitados no chão e o militar caminhando entre os combatentes. 

Corta para Jean, um dos batizados pela igreja, desembarcando de um trem, na cidade de Marselha. Ele caminha pela cidade com uma pequena maleta na mão, o espectador ouve seus pensamentos: “Um dia, comecei a estudar sua escrita, ler seus pensadores, falar de Shakespeare e Molière, e dissertar Rousseau. Doce França, sou embranquecido por sua cultura, mas continuo sendo negro, como eu era no início. Eu trago saudações da África. Me contenho em caminhar sobre sua terra e descobrir sua primeira cidade que também é a minha capital. Doce França, eu venho até você. Eu venho até mim.”  

A segunda parte do filme é uma jornada de Jean à procura de emprego na França. No caminho, encontra preconceito, discriminação, olhar fascinado de mulheres brancas que o vêem apenas como uma experiência sexual. 

O diretor Med Hondo causou furor com seu filme de estreia, revelando um cinema vindo da Mauritânia que escancarou violentas questões raciais, revelando as relações cruéis entre as nações europeias e suas colônias africanas. Na Mauritânia, os personagens são forçados a assumir a cultura do colonizador; na França, são excluídos da sociedade que foram obrigados a aceitar. 


Ó, sol (Soleil O , Mauritânia, 1967), de Med Hondo. Com Robert Liensol, Théo Légitimus, Ambroise M’Bia, Gabriel Glissant, Akonio Dolo, Greg Germains.

Educação sentimental

Frédéric está flanando por uma praia na costa da Normandia, França. Ele vê um carro esportivo parado na estrada e se depara com Anne, brincando com um cachorro na praia. Anne volta para o carro e pergunta a Frédéric o caminho para o porto de Le Havre. Ele responde de forma ríspida, afirmando que ela não sabe ler mapas.

Alguns dias depois, os dois voltam a se encontrar na mansão de Charles e Catherine. Anne é casada com Didier que vive de negócios escusos. Frédéric é um estudante de engenharia que não liga para dinheiro e mora temporariamente em um quarto da casa de sua prima Catherine. O grupo de aristocratas e jovens que transitam em torno se completa com a amante de Didier, Barbara.

O diretor Alexandre Astruc foi um dos principais teóricos do cinema francês, seus pensamentos e textos influenciaram a jovem geração de cineastas da nouvelle-vague. Ele considerava o cinema similar à literatura, suas teorias apontavam para o que chamou de “caméra-stylo”. Falava de si mesmo como um “cineasta que escrevia livros ou um escritor que realiza filmes.” 

Educação sentimental é sua adaptação do clássico romance de Gustave Flaubert, tratado com tons modernos da Paris dos anos 60. A liberdade de Frédéric e Anne, dois jovens idealistas, retratada na abertura idílica na costa francesa, transita de forma cruel para a sociedade aristocrática à qual eles não pertencem, mas não têm forças para romper com aquelas pessoas frívolas e manipuladoras, cuja única diversão parece ser colecionar amantes. O romance entre os dois caminha para a impossibilidade. 

A estrutura circular da narrativa não deixa espaço para o idealismo amoroso. No início, Frédéric vê Anne no porto de Le Havre recebendo seu marido Didier. Ela finge que não nota a presença da amante de seu marido, Barbara. No final, no mesmo porto, Frédéric se despede de Anne, que decide partir para o Canadá com Didier. Didier também finge não notar a presença do amante de sua mulher e os dois se afastam lentamente em direção ao navio. 

Educação sentimental (Éducation sentimentale, França, 1962), de Alexandre Astruc. Com Jean-Claude Brialy (Frédéric), Marie-José Nat (Anne), Dawn Addams (Catherine), Pierre Dudan (Charles), Carla Marlier (Barbara), Michel Auclair (Didier).

A lei da fronteira

O novo cinema dos anos 60 se espalhou mundo afora renovando até mesmo cinematografias pouco difundidas. Na Turquia, o diretor Lutfi Omer Akad revisitou o gênero western, criando uma narrativa que mescla os clichês do gênero com o estilo neorrealista rico em conflitos sociais.  

Hidir é o líder de uma aldeia próxima à fronteira com a Síria. Ele atua como contrabandista, cruzando a fronteira, trazendo mercadorias e ovelhas para os poderosos chefes da cidade. É uma jornada arriscada, pois a divisa entre a Turquia e a Síria é recheada de minas terrestres. O comandante da policia tenta convencer Hidir a abandonar o contrabando, liderando a aldeia para aceitar a construção de uma escola para as crianças e no trabalho agrário. No entanto, os chefes locais forçam violentamente Hidir a continuar no contrabando. 

A progressão da trama levanta um aspecto decisivo para a renovação do cinema de gênero nos anos 60: o poder corrupto e opressor, representado por Ali Cello, dono das terras, não permite que os “pistoleiros” abandonem seu passado violento – representado por Hidir e seus comparsas. A única alternativa é o confronto mortal entre os dois lados. A polícia assiste a tudo com impotência, enquanto a esperança reside na jovem professora da escola e em Yusuf, filho de Hidir, que acompanha a trágica luta de seu herói. 

A lei da fronteira (Hudutlarin kanunu, Turquia, 1966), de Lutfi Omer Akad.Com Yilmaz Guney (Hidir), Ayse Ogretmen (Pervin Par), Erol Tas (Ali Cello), Tuncer Necmioglu (Aziz), Muharrem Gurses (Duran Aga), Aydemir Akbas (Abuzer).