15 de agosto

15 de agosto (Le 15/8, Bélgica, 1973), de Chantal Akerman.

“Esta manhã, tentei ficar bem quieta. Tomei café da manhã na cozinha. Sai e caminhei por horas. Quando voltei, Chantal já havia se levantado. E fiquei na cozinha. Eu ficaria lá. Tive que pegar o mapa e tudo, os endereços das agências e tudo mais. Mas ela me disse para vir aqui e sentar nesta sala.” A narração em off que abre o filme é acompanhada do reflexo da imagem de Chris Myllykoski em um espelho. É agosto e nesse pequeno apartamento em Paris, a atriz passa o filme em um monólogo, refletindo sobre a vida cotidiana composta por pequenos gestos e atitudes. 

Chantal Akerman prenuncia, de certa forma, em 15 de agosto a sua obra-prima Jeanne Dielman (1975), cuja narrativa também é centrada no cotidiano da personagem Jeanne, em seu apartamento. O estilo da diretora é demarcado em 15 de agosto pelos planos longos, fixos, a estética em preto e branco, a câmera ligeiramente à distância deixando espaço para momentos de silêncio e reflexão das personagens. 

Não é um filme caseiro

O documentário Não é um filme caseiro (No home movie, França, 2015), de Chantal Akerman, foca em Natalia Akerman, mãe da diretora, sobrevivente de Auschwitz. As duas conversam em casa ou por chamadas de vídeo quando Chantal está fora. 

É o último filme da diretora belga, não por acaso tem como tema sua relação com a mãe, que já fora central em Notícias de casa (1976). Mãe e filha rememoram a vida em comum, conversam sobre gênero, sexo, identidade cultural, exploram questões recorrentes na vida das duas como solidão e tédio. Natalia Akerman faleceu pouco depois da realização do filme e Chantal Akerma cometeu suicídio em 2015, aos 65 anos. meses depois do lançamento do filme. 

A loucura de Almayer

A loucura de Almayer (Almayer ‘s folly, França/Bélgica, 2011), de Chantal Akerman, é uma adaptação do conto de Joseph Conrad. O filme começa com um assassinato. O chinês Chen entra em um bar, onde o jovem cantor Dain está se apresentando com um grupo de dançarinas. Ele sobe no palco e esfaqueia o cantor no coração. Todos correm, menos Nina que continua dançando como se nada tivesse acontecido. 

A narrativa retrocede. O holandês Kaspar Almayer é um comerciante ambicioso que sonha em encontrar uma mina de ouro na Malásia. Vive à beira do rio com sua esposa e sua filha Nina. É a década de 50, a Malásia ainda é colônia da Inglaterra. O Capitão Lingard, explorador e amigo de Almayer, além de padrinho de Nina, chega de barco pelo rio. Contrário à vida de Nina naquele lugar, ele leva a criança à força para um internato, onde terá uma educação europeia. É o início da loucura de Almayer, que não suporta viver longe da filha e fica cada vez mais obcecado com o enriquecimento.

No entanto, o ponto de vista do filme é de Nina, que se rebela cada vez mais com o internato. Na adolescência, ela abandona a escola e começa um romance com o criminoso Dain, que vive foragido em barcos pelo rio. 

“Ao verter a trama para o século XX e voltar-se os olhos para a educação e rebeldia da filha Nina em vez da loucura megalomaníaca do mercador Almayer (o que, talvez, daria num filme de Herzog), a diretora não se detém unicamente no tema civilizatório, mas desnuda um outro tópico que faz pleno sentido dentro de sua obra: a liberdade feminina, sua função crucial no processo histórico e sua potência de rebeldia. Quando sai do colégio europeu que odeia, Nina acende um cigarro como um sinal de confronto; mais adiante, ela foge dos domínios do pai com Naïn não porque ama o príncipe malaio ou porque tem um orgulho ufanista de sua raiz indígena, mas porque odeia tudo que Almayer tentou fazer por ela. No belo plano final, Almayer caminha em direção à câmera que, sábia, já conhece o desenrolar de tudo. Ao parar, ele chora por um longo tempo. Este gesto não é apenas a derrocada do processo de civilização e de catequese, mas, principalmente, de um processo que aprisiona o outro em sonhos de tesouros secretos. E é também este o projeto que criou os conflitos entre chineses e malaios armados nos momentos iniciais.” – Pedro Henrique Ferreira (Cinética).

Elenco: Almayer (Stanislas Merhar), Capitão Lingard (Marc Barbé), Aurora Marion (Nina), Zac Andianas (Dain), Sakhna Oum (Zahiira). 

Notícias de casa

Notícias de casa (News from home, França, 1976), de Chantal Akerman.

No início de sua carreira, Chantal Akerman morou em Nova York. Ela abandonou a faculdade de cinema logo no primeiro período para seguir um rumo experimental, retratando em seus primeiros filmes sua própria vivência. Em Hotel Monterey, Chantal explora os ambientes fechados onde morou por algum tempo. Em Notícias de casa, a diretora leva a câmera para fora, registrando a cidade de Nova York. Em ambas as películas, percebe-se o sentimento de solidão e melancolia que marcou a diretora em sua passagem pelos Estados Unidos. 

As imagens da cidade, grande personagem do filme, são acompanhadas de cartas de sua mãe, lidas pela própria Chantal. As cartas tratam de banalidades, falam de dinheiro enviado pela mãe, da imensa saudade, sugere os cuidados de sempre das mães. O documentário se entrega ao experimentalismo, deixando Nova York se expressar livremente. 

“Apesar de inicialmente se tratar de um filme “difícil”, dado seu reduzido material narrativo, “Notícias de Casa”, de Chantal Akerman, consegue comunicar. Num primeiro nível, funcionando como uma espécie de exposição fotográfica, formada por registros de paisagens um tanto desoladoras da Nova York dos anos 1970. Cenas cotidianas de uma cidade totalmente desglamourizada, que evocam uma decadência típica das grandes metrópoles. Há uma segunda camada comunicacional, com o olhar cinéfilo em parte formado pelos filmes da Nova Hollywood. Neles, a Nova York suja e violenta desse período é personagem corriqueiro. É a cidade de “Caminhos Perigosos” (1973), “Taxi Driver” (1976), “Serpico” (1973), “Um Dia de Cão” (1975) e tantos outros, reconstruída recentemente em “Coringa” (2019). O imaginário povoado por esse cinema, aliás, alimenta no espectador certo receio de que algo de ruim aconteça com Chantal Akerman e sua equipe em algum momento de “Notícias de Casa”, enquanto trafegam por ruas e vagões de metrô com uma câmera na mão. Mas a vida em grandes cidades costuma ser muito mais multifacetada que a imagem pública associada a elas. Os males que acometem Akerman são outros: a solidão e o tédio, impressos nas imagens do filme, e principalmente a relação de simultâneas saudade e rejeição da família, que se encontra distante, na Bélgica.” – Wallace Andrioli (Plano Aberto).

Hotel Monterey

Difícil classificar Hotel Monterey (EUA, 1973), de Chantal Akerman. Documentário, ficção, experimentalismo puro. A câmera passeia pelos corredores, quartos, recepção e demais dependências do hotel acompanhada do silêncio, nem mesmo trilha sonora. Pessoas passam ao fundo, saem do quarto, entram em outro, até mesmo paredes são focos para o filme.

Para seu primeiro longa-metragem, Chantal Akerman escolheu como locação o barato hotel onde morou por quatro semanas, em Nova York. Foram apenas duas pessoas na equipe: Chantal e Babette Mangolte, diretora de fotografia. Planejaram apenas um dia de filmagem e acabaram concluindo o trabalho em uma tarde. 

O estilo destaca os enquadramentos estáticos, com poucos movimentos de câmera, quase como se fosse mais uma câmera fotográfica registrando os ambientes. Em um ou outro relance, percebe-se, por janelas, o exterior. A experiência de Chantal Akerman exige a entrega do espectador ao magnetismo das imagens, do cinema. 

Os encontros de Anna

Os encontros de Anna (Les rendez-vous d’Anna, França, 1978), de Chantal Akerman

A cineasta Anna (Aurore Clément) percorre algumas cidades da Europa, cumprindo compromissos de promoção de seu mais recente filme. A estrutura do filme segue essa jornada demarcada por encontros com várias pessoas: amigos e amigas, familiares, profissionais da área, amores do passado e do presente. 

Com essa história fragmentada, como se Anna vivesse uma série de histórias curtas, Chantal Akerman reflete sobre o próprio processo criativo do cinema, contando histórias que não se concluem, recheadas de personagens solitários, frugais, que buscam uma conexão mesmo que por uma noite. Anna caminha entre eles vivendo suas próprias experiências pessoais e profissionais, em um processo que evidencia a solidão em que vive, solidão melancólica que pode ter consequências imprevisíveis, talvez como um filme de final aberto. 

A prisioneira

A prisioneira (La captive, França, 2000), de Chantal Akerman.

Chantal Akerman faz uma ousada e arriscada incursão pelo universo de Marcel Proust, adaptando o quinto volume de Em busca do tempo perdido. Ao mesmo tempo, busca inspiração em Alfred Hitchcock, colocando Simon, protagonista do filme, na posição de um obsessivo voyeur, bem referenciado em John Ferguson, de Vertigo

O jovem, rico e possessivo Simon (Stanislas Maerhar) tem uma amante, Ariane (Sylvie Testud), que ao contrário se mostra passiva aos desejos do namorado durante a narrativa. Simon acredita que Ariane está tendo um caso com uma mulher e infringe a ela uma ostensiva vigilância. O relacionamento caminha por uma jornada de desejo consumido pelo ciúme, podendo terminar em um processo de autodestruição.  

“Akerman está mais interessada em explorar em detalhe a matéria crua que compõe a relação entre Ariane (Syilvie Testud) e Simon (Stanislas Merhar) — i.e. diálogo, encontro e desencontro, sexo; enfim, o cotidiano de um casal — do que nos tempos fortes da narrativa ou nos símbolos (aos quais volta e meia recorre) para dar forma à obsessão de seu protagonista. Dois universos distintos, por certo, homem e mulher obedecem aqui à eterna e estranha lógica da aproximação e do convívio amoroso: um mundo feminino fechado, em segredo, cercado de muralhas intransponíveis para o homem, sempre na tentativa de invadi-lo, torná-lo claro, conhecido, regrado. A liberdade narrativa do filme serve, em suas elipses, em sua variação de tempos, a duas causas distintas mas complementares: a investigação do desejo de Simon, sua vontade de descobrir, sua vocação para o fetiche e para o autoerotismo; e a construção sutil do universo de Ariane, condicionada a ser objeto amoroso de Simon, prisioneira de sua condição como de um labirinto existencial cuja fuga improvável equivale à morte.” –  Fernando Verissimo (Contracampo)

La chambre

La chambre (França, 1972), um dos filmes da fase inicial de Chantal Akerman, ainda na sua fase de curta-metragista, é uma experiência radical em plano sequência. Durante cerca de 11 minutos, a câmera gira em uma panorâmica de 360° por um quarto. O cenário é composto por móveis e objetos dispersos ao acaso e, a cada final do giro, Chantal Akerman está deitada na cama, em situações diferentes: está debaixo das cobertas, come uma fruta, lê um livro, está ligeiramente sentada. 

É, de certa forma, um tema recorrente na obra da diretora belga: a câmera lenta, planos longos em ambientes fechados; a cozinha em Saute ma ville, o quarto em La Chambre, o apartamento em Eu, tu, ele, ela os ambientes do Hotel Monterey. Experimentalismo, palavra determinante no cinema de Chantal. 

Toda uma noite

Toda uma noite (Toute une nuit, França, 1982), de Chantal Akerman. 

A câmera de Chantal Akerman acompanha vários casais durante uma noite quente do verão de Bruxelas. A narrativa fragmentada tem como tema o romance, encontros que acontecem em bares, restaurantes, quartos, conversas ao telefone. O silêncio e a atmosfera escura da noite ditam o tom do filme, um mosaico de encontros e conflitos que não se desenvolvem, não se resolvem, apenas anunciam aquilo que atormenta os casais: o sexo, o amor, a rejeição. 

Saute ma ville

Saute ma ville (França, 1971) é o primeiro curta-metragem de Chantal Akerman, realizado quando ela tinha 18 anos e estava cursando o primeiro período da faculdade de cinema em Bruxelas (Chantal abandonou o curso logo no primeiro período para seguir na carreira como autodidata).

A própria diretora interpreta uma jovem que chega em seu apartamento com as compras do dia e começa uma série de atividades rebeldes: abre e esvazia gavetas, espalha coisas pelo chão, joga água no piso, expulsa seu gato para a varanda. É um filme silencioso que termina com a jovem vedando todas as frestas de janelas e portas e ligando o gás de cozinha. Impactante e perturbador curta de estreia de Chantal Akerman.