A troca

Sou fã do cinema clássico americano, da narrativa simples, linear, na qual a técnica está sempre a serviço do roteiro. Portanto, assisto a qualquer filme dirigido por Clint Eastwood com a certeza de estar diante de uma história bem contada.

Clint Eastwood é dos últimos cineastas que têm a completa noção da importância do faroeste, do filme de gangster, do filme policial, do drama, do romance, para consolidação da narrativa cinematográfica. O gênero cinematográfico bem definido estipulou as regras básicas da linguagem do cinema, aquelas que bem aplicadas estimulam a participação do público. Todo mundo sabe que western caminha para o duelo, que comédia romântica é feita de encontros e desencontros, que filme policial tem perseguições nas ruas, que suspense é marcado por câmera subjetiva. Nesse mundo, Clint Eastwood foi criado.

Ele nasceu como ator nas mãos de diretores como Sergio Leone e Don Siegel, mestres dos filmes de faroeste e de ação. Consolidou-se como diretor aplicando em seus filmes ensinamentos primários, como montagem paralela, cortes secos, fotografia sem afetações – usando apenas o jogo de luz e sombra, interpretações concisas. Com essa aparente simplicidade, Eastwood dirigiu importantes filmes: Perversa paixão (1971), Cavaleiro solitário (1985), Os imperdoáveis (1992), As pontes de Madison (1995), Sobre meninos e lobos (2003), Menina de ouro (2005), Gran Torino (2008). A troca (Changeling, EUA, 2008) não faz parte destes clássicos, mas é um filme de Clint Eastwood.

O filme narra a história real de Christine Collins (Angelina Jolie) que, em 1928, se confronta com o desaparecimento de seu filho, provavelmente por seqüestro, em Los Angeles. Meses depois, a polícia  encontra o menino e convoca a imprensa para presenciar o encontro entre mãe e filho. Mas Christine Collins declara que o menino não é seu filho, afirmação repudiada tecnicamente pela polícia.

Esta trama central apresenta outros fatos: a corrupção da polícia de Los Angeles, políticos se aproveitando de dramas humanos para conquistar eleitores, médicos-psiquiatras e enfermeiras sádicos, um pastor anglicano (John Malkovich) cuja “missão” é combater as atrocidades cometidas pelo departamento policial da cidade, um assassino em série que remete a M – O vampiro de Dusseldorf (1931).

Esses fatos se cruzam à medida que Christine Collins empreende a luta para provar que seu filho ainda está desaparecido. É aí que se destaca o trabalho do diretor criado pela narrativa clássica: à medida que a narrativa caminha, personagens e fatos aparecem naturalmente, elucidando de forma coerente a história . Tramas paralelas se descortinam na tela, a cada revelação o espectador se envolve mais com o filme. Estamos diante de outra característica básica dos grandes diretores clássicos: a capacidade de provocar emoções no espectador sem recorrer a subterfúgios como imagens escatológicas ou intrincados efeitos narrativos.

A troca é um filme sobre a crueldade humana estampada em momentos do cotidiano, como a indiferença do capitão da polícia ou em momentos do mais profundo sadismo, como as sequências que envolvem o serial killer. É um filme sem esperanças, pois estamos diante do horror praticado por pessoas próximas, incluindo vizinhos, policiais, médicos. Filme sem data, a elaborada reconstituição da Los Angeles das décadas de 20 e 30 alerta que as ruas não mudaram em nada, continuam belas na aparência para esconder os mais obscuros propósitos da mente humana.

Gran Torino

Gran Torino (EUA, 2008), de Clint EastwoodDaisy deita o focinho entre as patas. Seus olhos tristes se concentram no fim da escada, três degraus abaixo, seu pescoço sentindo a coleira. Na outra extremidade, a correia está amarrada no pé da cadeira de balanço ocupada por uma senhora idosa que senta-se todas as tardes na varanda para ver o movimento da rua.

Walt Kowalski (Clint Eastwood), o dono de Daisy, se afasta lentamente e sequer volta os olhos. Dessa vez, Daisy não vai acompanhá-lo, como o faz rotineiramente, sentada no banco do carona, língua de fora, olhos extasiados ante todo aquele movimento das ruas. Walt entra na pick-up e arranca, deixando a cachorra com os olhos fixos no lance de escadas.  

Esta bela sequência é ponto chave no conflito do filme, como resumo do perfil psicológico do velho Walt. Ele mora sozinho num bairro de Detroit tomado por imigrantes. Afastado da família, ranzinza com os filhos e netos, indesejável para os vizinhos devido ao preconceito que nutre por negros e imigrantes. É veterano da guerra da Coréia, carrega lembranças traumáticas deste passado, mas parece não se importar com isso. Tem armas em casa que não hesita em usar ao menor sinal de ameaça. Quando conhece um jovem asiático, também deslocado do mundo em que vive, Walt começa a rever seu comportamento. Mas as artimanhas do roteiro indicam um desfecho violento.

Tudo indica que Walt Kowalski é um homem comum. É o velho solitário que sente a presença do fim após a morte da mulher. É incapaz de se relacionar com a família, seu afeto reprimido é direcionado para a cachorra Daisy, a quem alimenta e afaga com carinhos enternecedores. Gasta seu tempo em tarefas rotineiras. Corta cuidadosamente a grama do jardim. Trabalha na garagem com as inúmeras ferramentas colecionadas durante a vida. Senta-se na varanda no fim do dia para fumar e tomar cerveja. Entabula conversas superficiais com os colegas de bar. Lava e encera com paixão seu carro Gran Torino 72.    

Basta olhar na minha rua, na sua, na nossa própria família, para nos depararmos com personagens assim. Experimente entrar no bar de um bairro de classe média, final de tarde: Kowalskis estão reunidos nas lembranças do passado. É claro, não andam armados. Mas é nesse ponto que reside o poder do cinema de um diretor apegado às tradições.

O Walt Kowalski de Clint Eastwood é o legítimo personagem do cinema clássico. É o cidadão comum que enfrenta situações limites, muitas vezes por puro acaso, e se transforma. Um homem perseguido que luta para salvar sua própria vida e das pessoas a quem deve proteger. Não faz isso por heroísmo ou coragem, faz por necessidade.   

Alfred Hitchcock, John Ford, Frank Capra são grandes nomes desse cinema. Criaram personagens comuns em inúmeros filmes que em determinados momentos, movidos pelas circunstâncias, se transformam em heróis, mártires, criminosos.

Clint Eastwood é o último representante deste cinema. Um diretor que ainda busca no passado a beleza de um cinema que vai sendo vencido aos poucos. Vencido por personagens superficiais, pela tecnologia digital, por ação desprovida de sentido para seus atores, por coreografias insanas de morte e violência. Uma cena tão simples quanto o cão se despedindo de seu dono me faz pensar que Clint Eastwood é o diretor que ainda traz sentido para o cinema.

15H17 – Trem para Paris

O diretor Clint Eastwood fecha espécie de trilogia baseada em atos heroicos perpetrados por soldados e pessoas comuns, incluindo Sniper Americano e Sully: o herói do Hudson. A história na qual se baseia 15H17 – Trem para Paris aconteceu em 2015, quando um marroquino aterrorizou os passageiros de trem que ia de Amsterdã para Paris. Três amigos americanos à bordo impediram a tragédia e foram saudados como heróis por autoridades e pela população. 

Clint Eastwood escalou os próprios salvadores para interpretarem seus papéis no filme. A primeira parte da trama narra a relação de amizade entre os três no colégio, depois os caminhos separados que seguiram até o encontro em uma viagem pela Europa. Nesse ponto, embarcam no trem e protagonizam o combate contra o terrorista. O mérito do filme está em colocar atores não profissionais vivendo suas próprias odisseias, sem a exigência de interpretação. É quase uma reconstituição registrada pelas câmeras, sem grandes sequências de ação, pois dentro do trem quase tudo foi movido pelo acaso. Não é o melhor de Clint Eastwood, mas o diretor continua com seu olhar clássico para o cinema.  

15H17 – Trem para Paris (The 15:17 to Paris, EUA, 2018), de Clint Eastwood. Com Anthony Sadler, Alek Skarlatos, Spencer Stone. 

A mula

Clint Eastwood é o mais longevo e produtivo diretor americano. Perto de completar 90 anos, entrega pelo menos um filme por ano, apesar de atuar cada vez menos. Em A mula, Eastwod dirige e protagoniza. Ele é Earl Stone, senhor de 90 anos obcecado pelo cultivo de orquídeas. Está em conflito com a ex-mulher e a filha que o acusam de ter abandonado a família. Stone trabalhou a vida inteira como motorista nas estradas e se vangloria de jamais ter ganhado uma multa. Desempregado e sem dinheiro, ele é despejado de sua casa e acaba se envolvendo com cartel de drogas do México, transportando drogas em sua picape. 

O filme é baseado na vida de Leo Sharp que ficou conhecido como a “mula de 90 anos”. Clint Eastwood se baseou em reportagem do The New York Times para contar essa inusitada história. Earl Stone transporta as drogas como se viajasse a passeio pelas estradas do meio-oeste americano: para em lanchonetes, conversa cordialmente com todos, ajuda uma família a trocar pneus na estrada, ouve música e canta descontraidamente enquanto dirige. Impossível suspeitar de uma mula assim e Stone acaba caindo nas graças do chefe do cartel. 

Como em outras películas, Clint Eastwood tece críticas sobre temas controversos: o sistema político e econômico americano, a estrutura familiar, a acelerada entrega dos jovens à tecnologia, o tráfico de drogas, a emigração, preconceito racial. O velho Earl Stone transita por tudo isso nas estradas, na sua vida cotidiana, um retrato dos EUA. 

A mula (The mule, EUA, 2018), de Clint Eastwood. Com Clint Eastwood, Bradley Cooper, Michael Pena, Alison Eastwood, Diane Wiest.